As elites enriquecidas com finanças e a produção agrícola passavam a morar em luxuosas mansões urbanas, mandar seus filhos para serem educados na Europa e consumir artigos de luxo importados e vendidos a preços exorbitantes nas lojas dos centros urbanos.
Unidade 1
Do Império à Primeira República: o surgimento da saúde pública
Novos atores e novos contextos
As últimas décadas do século XIX marcam um momento de transformação econômica e de formas de vida das elites do Sudeste do Brasil. A queda do regime monárquico e estabelecimento da República Federativa se vinculam a um contexto de intenso dinamismo da economia agroexportadora nacional, marcado principalmente pelo desenvolvimento do setor cafeeiro e pelo predomínio das forças políticas a ele ligadas.
O café havia se tornado o nosso principal produto de exportação. As plantações, aos poucos, abandonavam as terras fluminenses do Vale do Paraíba, migrando para a região do Oeste Paulista, onde iria gerar novas fortunas.
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A expansão da lavoura cafeeira deu origem a um novo bloco de poder centrado na aristocracia paulista. Com atuação destacada no processo abolicionista e tendo como objetivo a assim chamada modernização do país, com a República, esse grupo comporia o núcleo do poder nacional, consolidando-se, a partir de 1902, com a política café com leite.
Tal política determinava a rotatividade das oligarquias paulistas e mineiras na direção do país pela alternância de seus representantes na presidência.
Atenção
Para essa elite, a continuidade da entrada de mão de obra estrangeira pelos principais portos do país, a manutenção da importação de produtos industrializados e a entrada de capitais estrangeiros no Brasil, através de firmas exportadoras e de serviços, eram interesses fundamentais a serem resguardados.
Tudo de acordo com a lógica do neocolonialismo, onde as novas áreas econômicas periféricas funcionavam como mercados para os produtos industrializados e serviços oriundos das nações centrais que também as usavam como fonte de matéria-prima barata para suas indústrias.
A expansão econômica também se relacionava a novas formas de vida das camadas mais altas da população. O mundo agrário do período colonial passava a ser tido como antigo inconveniente.
"Nos meses de calor que favoreciam a proliferação dos mosquitos, morreram em 1850 mais de quatro mil pessoas no Rio. Entre aquele ano e o de 1902, o número de mortes superou 58.000 (...) os estrangeiros pareciam ser a presa preferida, talvez por falta de imunização trazidas por formas frustras. Artistas, diplomatas, tripulações de navios mercantes ou de guerras (ficou célebre o caso de um barco de guerra que perdeu parte considerável de sua população) vinham ao Rio para morrer, espalhando a fama sinistra que acompanhava o nome da capital brasileira".
Mello e Franco, 1973
"Aos interesses da imigração, dos quais depende em máxima parte o nosso desenvolvimento econômico, prende-se a necessidade do saneamento desta capital. É preciso que os poderes da República, a quem incumbe tão importante serviço, façam dele a sua mais séria e constante preocupação (...) A capital da República não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo“.
mensagem do Presidente Rodrigues Alves. O País, RJ, 14 de novembro de 1906
O processo de reorganização física da cidade foi comandado pelo engenheiro Pereira Passos; no cargo de prefeito, ele empreendeu intensa reforma do centro urbano, alargando ruas, demolindo cortiços, retirando morros e construindo novas edificações e avenidas, como a Central (hoje Rio Branco), que cortava a cidade de uma ponta a outra. O objetivo do prefeito era transformar o Rio numa espécie de Paris dos trópicos.
O saneamento da cidade foi realizado pelo médico Oswaldo Cruz, diretor do Instituto Soroterápico Federal (futuro Instituto e Fundação Oswaldo Cruz). Em 1903, Cruz assumiu a chefia da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) com a intenção de enfrentar as doenças epidêmicas utilizando estratégias diferentes das que eram antes empregadas.
Formado em Paris na tradição científica da microbiologia, o jovem médico queria resolver as questões sanitárias agindo sobre as causas das doenças e impedindo seu alastramento.
Oswaldo Cruz objetivava controlar as principais doenças infecciosas que atacavam mais a cidade, melhorando a situação sanitária e, em virtude disso, a economia e as condições de vida. Veremos na aula três que suas propostas, embora tenham alcançado ótimos resultados, geraram muitas tensões e conflitos.
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Febre Amarela
Foi alvo de uma gigantesca campanha contra os mosquitos, tendo como base o uso de inseticidas e a desinfecção das residências e prédios públicos. Era completada pelo isolamento e vigilância dos doentes para impedir a contaminação dos mosquitos.
Peste
Deveria ser combatida pelo extermínio dos ratos e pela utilização do soro e vacina em áreas portuárias.
Varíola
Foi objeto de uma nova legislação que tornava a vacinação e revacinação contra a doença obrigatórias.
Em suas campanhas sanitárias, Cruz utilizou-se de instrumentos legais de coerção, dando o caráter militar ao que era visto como verdadeira guerra contra as doenças epidêmicas.
O Rio de Janeiro foi repartido em diferentes distritos sanitários, cada qual com sua Delegacia de Saúde responsável pelas visitas de casas para destruição de focos de mosquitos, vacinação, etc. Concomitante a esse processo, a cidade passava pela reestruturação que ficou conhecida como “bota-abaixo”.
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O conjunto de obras transferiu ou desabrigou um grande número de pessoas que moravam em moradias consideradas inadequadas nas zonas centrais. Além disso, um grande conjunto de normatizações urbanas – como a proibição de vendas de produtos em quiosques, de criação de porcos nos quintais e a proibição de venda de artigos alimentares nas ruas – passou a dificultar a vida dos cariocas.
A junção das medidas urbanas com as sanitárias começou a dificultar em muito a vida da população de menor renda, ampliando a resistência às medidas de Oswaldo Cruz.
“Longe de unânimes, as reformas despertaram sentimentos diferenciados entre os moradores do Rio de Janeiro, reunindo, de um lado, aqueles que, como o poeta Olavo Bilac, saudavam o surgimento de uma Paris tropical e, de outro, aqueles que, partilhando as opiniões do escritor Lima Barreto, argumentavam preferir um Rio belo e sujo, esquisito e harmônico, a um Rio de boulevards, estranho e pouco propício a acolher boa parte de sua população”.
Pontes e Faleiro, 2010, p. 61.
Aprovada em 1904, a Lei da Vacinação Obrigatória desencadeou grande levante popular, conhecido como a Revolta da Vacina. As manifestações espalharam-se pela cidade, com muito quebra-quebra, bondes incendiados, barricadas e enfrentamentos com a polícia.
Após alguns dias conturbados, o governo decretou estado de sítio, e a revolta foi violentamente sufocada. O governo desistiu da lei, e a vacina continuou a ser pouco utilizada, possibilitando que novos surtos de varíola surgissem na cidade pelos anos seguintes.
“Às quatro horas, a multidão enchia o largo, e um orador trepava aos degraus, para repetir, sem chapéu e sem gramática, os artigos do Correio, com frases de Barbosa Lima. Declamava que a vacina obrigatória atentava contra a liberdade individual; que o povo se sentia ameaçado nessa liberdade; que não tardava os ‘cafajestes de esmeralda’ invadirem o domicílio do cidadão, que a Constituição assegura inviolável, para inocular o veneno sacrílego nas nádegas das esposas e das filhas. Cumpria-lhes, a todos, o dever de garantir a liberdade do corpo humano”.
VIEIRA, José. O Bota-abaixo. Rio de Janeiro: Selma Editora, s/d.
O Rio se revolta
A revolta da vacina é tema constantemente visitado pelos historiadores brasileiros. Vários estudiosos, como Jaime Benchimol, Sydney Chalhoub e Nicolau Sevcenko se dedicaram a estudá-lo. Um resumo simplificado e interessante sobre o evento encontra-se no livro Corda Bamba de Sombrinha (Ponte e Falleiros), sendo reproduzido a seguir.
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Para saber mais sobre o assunto, seguem algumas sugestões de leitura:
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BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e revolta da vacina na cidade do Rio de Janeiro. In: Jorge Ferreira; Lucilia de Almeida Neves. (org.). Brasil republicano. Economia e sociedade, poder e política, cultura e representações. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003, v.1, pp. 231-286.
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CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1991, pp. 91-139.
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CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 97-185.
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SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984, 93 p.
A gestão de Rodrigues Alves transformou a cidade do Rio de janeiro. Ao seu final, em 1906, sua estrutura urbanística e perfil epidemiológico haviam se transformado radicalmente. A nova capital era agora um centro moderno, cortado por largas avenidas pontuadas de belos prédios de estilos arquitetônicos variados e diversos jardins e bulevares. Tudo parecia bonito e chique, mas a reforma teve seu custo.
As camadas mais pobres foram expulsas das zonas mais pobres da cidade, tendo que gastar tempo e recursos em transporte, muitas formas de viver e sobreviver foram colocadas na ilegalidade, transformando trabalhadores informais em malandros ou biscateiros.
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Para uma parte da população, as reformas tiveram um alto custo. No campo da saúde a febre amarela havia sido controlada, quase desaparecendo do obituário da cidade, da mesma forma que a peste.
Por outro lado, algumas doenças, que não foram alvo das grandes campanhas, como a tuberculose e as infecções intestinais, continuaram fazendo milhares de vítimas na cidade. De qualquer forma, o controle das grandes epidemias transformaria Oswaldo Cruz em um ídolo, o símbolo do saneamento da cidade pelo uso racional da ciência.
Em 1907, a vitória de Oswaldo Cruz e sua equipe frente às epidemias no Rio de janeiro foi premiada no Congresso de Higiene em Berlim; dois anos mais tarde, as imagens das campanhas contra os mosquitos foram apresentadas na seção científica da Exposição Internacional de Higiene em Dresden (Alemanha). Oswaldo foi alçado à posição de herói nacional.
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Cinematógrafo Brasileiro em Dresden
Sinopse:
Com imagens de época e entrevistas com pesquisadores de história da saúde e do cinema, o documentário resgata dois filmes exibidos em 1911 no pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene em Dresden (Alemanha). Tematizando o combate à febre amarela no Rio de Janeiro e a recém-descoberta doença de Chagas em Lassance (MG), são os primeiros filmes científicos brasileiros conhecidos, marcando o pioneirismo do Brasil e do Instituto Oswaldo Cruz na utilização de imagens em movimento na comunicação e informação em saúde.
Roteiro e direção: Eduardo Thielen e Stella Oswaldo Cruz Penido
Ano: 2011
Legendas: inglês e alemão
Estado Novo: queima das bandeiras estaduais, 1938
Fonte: YouTube