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MÓDULO 2

A implementação da abordagem Uma Só Saúde para melhores resultados em saúde pública

Aula 3
Exemplos de estudos da interface animal-humano-ecossistema em doenças desatendidas e outros eventos

Objetivos de aprendizagem da aula:

  • Entender os acidentes ofídicos como exemplo da interface animal-humano-ecossistema em ocorrências desatendidas
  • Entender a esporotricose como exemplo da interface animal-humano-ecossistema em doenças desatendidas.

Transdisciplinaridade é o esforço conduzido por profissionais de diferentes disciplinas trabalhando em conjunto a fim de criar inovações conceituais, metodológicas e translacionais, que integram e vão além das abordagens específicas de suas disciplinas, para abordar um problema em comum.

Você já percebeu que esse é um conceito fundamental nesse curso, pois é importante que as diferentes disciplinas envolvidas em Uma Só Saúde atuem juntas desde o início do processo, para formular soluções integradas para questões sanitárias.

Acidentes ofídicos: um exemplo transdisciplinar

A visão de Uma Só Saúde abrange outros temas, além das doenças infecciosas. É o caso do envenenamento por serpentes, considerado importante pela OMS no âmbito das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs). A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a quantidade de pessoas que são picadas por cobras a cada ano no mundo pode chegar a 5,4 milhões. Desses, entre 81.000 e 138.000 morrem e até 400.000 ficam permanentemente incapacitadas ou desfiguradas. Nessa perspectiva, os acidentes ofídicos envolvem uma compreensão integral de como o ambiente, os animais (serpentes) e os humanos interagem, influenciando o surgimento e a gravidade desses incidentes.

Os acidentes por animais peçonhentos, especialmente os acidentes ofídicos, foram incluídos pela OMS na lista das doenças tropicais negligenciadas que acometem, na maioria das vezes, populações pobres que vivem em áreas rurais, desencadeando discriminação, abandono, perda de renda, dívidas, problemas de saúde mental e redução da qualidade de vida.

Devido ao alto número de notificações, esse agravo foi incluído na Lista de Notificação Compulsória do Brasil, ou seja, todos os casos devem ser notificados ao Governo Federal imediatamente após a confirmação. A medida ajuda a traçar estratégias e ações para prevenir esse tipo de acidente. Cerca de 2,7 milhões de casos humanos são estimados anualmente. No Brasil cerca de 30 mil casos são notificados ao SINAN anualmente (Ministério da Saúde 2023).

A abordagem Uma Só Saúde permite um entendimento amplo e integrado dos acidentes ofídicos, promovendo ações mais eficazes que consideram o meio ambiente, o comportamento animal e as necessidades humanas, visando mitigar os riscos e melhorar a resposta a esses acidentes.

Componentes dos acidentes por serpente, na visão de Uma Só Saúde

Componentes dos acidentes

Os fatores ambientais desempenham um papel essencial no comportamento das serpentes e na incidência de acidentes ofídicos.

  • Alterações no habitat:
    Desmatamento, urbanização e agricultura forçam serpentes a se aproximarem de áreas habitadas por humanos.
  • Mudanças climáticas:
    Modificam padrões de migração, reprodução e atividade das serpentes, aumentando a probabilidade de encontros com humanos.
  • Estação chuvosa:
    Aumenta a circulação de serpentes devido à procura por abrigo em locais secos ou alimentos

As serpentes são o principal agente nos acidentes ofídicos. A biologia, o comportamento e a ecologia dessas espécies são essenciais na prevenção e controle.

  • Espécies venenosas:
    No Brasil, as principais são jararacas (Bothrops), cascaveis (Crotalus), corais (Micrurus) e surucucus (Lachesis).
  • Distribuição geográfica:
    A ocorrência de certas espécies é limitada a regiões específicas, o que afeta o tipo de acidente.
  • Relações ecológicas:
    A redução de predadores naturais, como aves e pequenos mamíferos, pode aumentar a população de serpentes.

O comportamento humano e as condições sociais e culturais influenciam diretamente a exposição e o manejo de acidentes ofídicos.

  • Trabalho agrícola:
    Trabalhadores rurais estão mais expostos devido ao contato direto com o ambiente natural.
  • Conhecimento e percepção de risco:
    Falta de informação sobre prevenção e primeiros socorros aumenta o risco e a gravidade dos acidentes.
  • Acesso a tratamento:
    A ausência de antivenenos em áreas remotas agrava as consequências dos acidentes.

Os acidentes ofídicos são um problema relevante para a saúde pública, exigindo esforços de vigilância, prevenção e atendimento médico adequado.

  • Distribuição de antivenenos:
    A logística para disponibilizar soros em locais estratégicos é um desafio para os sistemas de saúde. O soro antiofídico está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).
  • Treinamento de profissionais de saúde:
    É essencial que equipes médicas saibam diagnosticar e tratar corretamente o envenenamento.
  • Epidemiologia:
    Monitoramento dos casos é necessário para a definição de estratégias de prevenção e alocação de recursos.

Intervenções Integradas de Uma Só Saúde

  • Educação comunitária:
    Campanhas para ensinar populações rurais sobre prevenção de acidentes e primeiros socorros.
  • Conservação ambiental:
    A preservação de ecossistemas pode reduzir o deslocamento das serpentes para áreas habitadas.
  • Monitoramento climático e ecológico:
    Antecipar surtos de acidentes durante épocas do ano de maior risco.
  • Parcerias intersetoriais:
    Envolvimento de autoridades ambientais, saúde pública e organizações locais na prevenção e resposta aos acidentes.

Dois estudos foram conduzidos por um grupo transdisciplinar de pesquisadores com o objetivo de apoiar a gestão, principalmente na distribuição do soro antiofídico.

O objetivo do primeiro estudo foi traçar um panorama da situação epidemiológica dos acidentes ofídicos e analisar possíveis fatores ambientais e socioeconômicos (drivers), visando desenvolver um instrumento para categorizar áreas de maior risco. Leia mais sobre o estudo acessando o link abaixo (em inglês).

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Saiba Mais

Overview of snakebite in Brazil: Possible drivers and a tool for risk mapping | PLOS Neglected Tropical Diseases

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Confira a breve fala sobre estudo realizado por Dra Maria Cristina Schneider sobre acidentes com serpentes no Brasil e como o fator temperatura/clima influencia na ocorrência desses acidentes:

Acidente por serpentes no Brasil

Fonte: CVF

Esporotricose

O enfoque de Uma Só Saúde deve ser empregado na esporotricose, que é considerada pela OMS como um importante tema entre as Doenças Tropicais Negligenciadas (NTD).

A esporotricose é a micose de implantação ou subcutânea mais prevalente e globalmente distribuída, causada por fungos do gênero Sporothrix, sendo que a esporotricose de transmissão felina, causada por Sporothrix brasiliensis, além de formas cutâneas e linfocutâneas, também apresenta, com frequência, manifestações oculares e imunorreativas em humanos. Há cerca de 20 anos, vem aumentando sua frequência em diversos estados do Brasil, com epicentro no estado do Rio de Janeiro. Isso decorre da transmissão zoonótica pela espécie emergente S. brasiliensis, acarretando a mudança de padrão epidemiológico e um grande desafio para a saúde pública no País.

As micoses endêmicas não integram a lista nacional de doenças de notificação compulsória no Brasil. Elas também não são objeto de vigilância epidemiológica de rotina, com exceção dos estados brasileiros que instituíram essa notificação de iniciativa do seu âmbito de gestão local. Por isso, não existem dados acerca da ocorrência, da magnitude e da transcendência dessas doenças em nível nacional. Apesar disso, a doença já foi descrita em todas as regiões do País.
Entre 2008 e 2015 foram diagnosticados 6372 casos humanos no Estado do Rio de Janeiro e 12751 casos de esporotricose felina na cidade do Rio de Janeiro entre 2017 e 2021.

Em indivíduos imunodeprimidos, a esporotricose pode ser mais grave, exigindo longos períodos de tratamento. Os principais fatores de risco para esporotricose em imunodeprimidos incluem a infecção pelo HIV, alcoolismo, diabetes, uso de corticosteróides e de imunobiológicos.

No Brasil, entre 1992 e 2015, ocorreram 782 hospitalizações e 65 óbitos. Em 6% das hospitalizações e 40% dos óbitos, havia coinfecção pelo HIV. No Rio de Janeiro, foram 250 hospitalizações e 36 óbitos, com aumento progressivo, ao longo do período. Destacaram-se, ainda, São Paulo e Goiás.

As espécies do fungo causadoras da esporotricose estão distribuídas amplamente no solo rico em matéria vegetal, sob determinadas condições de temperatura e umidade, o que favorece a sua persistência e dificulta o seu controle.

S.brasiliensis é prevalente hoje no Brasil, constituindo uma epizootia em expansão, podendo acometer o ser humano, cães e gatos, sendo esse último o seu principal transmissor.

Na atualidade, os gatos são uma importante fonte de infecção, podendo transmitir a esporotricose por arranhadura, mordedura e contato com secreções de lesões cutâneo-mucosas e respiratórias durante episódios de tosse e espirro. Recentemente, casos de esporotricose transmitidos por procedimentos de tatuagem foram descritos. Não há transmissão inter-humana.

Transmissão da Esporotricose

Ciclo de infecção
Fonte: CDC

A transmissão da espotricose pode ocorrer de diferentes formas. A infecção é geralmente adquirida pela implantação do fungo na pele ou mucosa por meio de um trauma decorrente de acidentes com matéria vegetal contaminada:espinhos, palha ou lascas de madeira; contato com vegetais em decomposição; ou arranhadura ou mordedura por animais doentes.

A esporotricose tem demonstrado ser uma doença relacionada aos hábitos e aos estilos de vida. Os felinos, especialmente gatos, têm se destacado como o principal agente transmissor do fungo no homem, em função de coabitarem com seres humanos e não terem residência fixa ou tutor responsável e, ao mesmo tempo, terem livre circulação na vizinhança ou na comunidade.

A população sob risco vive em locais com determinadas condições ambientais desfavoráveis, como pavimentação incompleta e casas com quintais onde há presença do felino sem assistência adequada, com exposição ao solo (acúmulo de materiais orgânicos e de vegetação em decomposição), ou seja, ciclo de transmissão gato-ambiente-homem.

Como em outras doenças fúngicas, não há vacina disponível para esporotricose. Similarmente a outras micoses de implantação, a prevenção da esporotricose baseia-se na adoção de medidas protetoras a traumas transcutâneos, especialmente nas áreas endêmicas. No caso da esporotricose zoonótica, devem-se adotar estratégias de prevenção e controle estruturadas no contexto de Uma Só Saúde, integrado com ações na saúde humana, na saúde e no bem-estar animal e no meio ambiente.

Para a vigilância da esporotricose, recomendam-se ações sustentadas pelo conceito de Uma Só Saúde, o qual estabelece que problemas de saúde decorrem da interconexão complexa de sistemas sociais e biológicos entre a saúde humana, animal e ambiental, requerendo abordagens multidisciplinares e interdisciplinares.

Um estudo sobre a esporotricose transmitida por felinos concluiu que o controle da doença requer a utilização do conceito de Uma Só Saúde e descreve diversas ações nesse sentido, como o papel do médico veterinário no tratamento dos animais infectados e na educação dos tutores dos animais.

Outro estudo, sobre a expansão da esporotricose no Brasil, também recomenda a utilização do conceito de Uma Só Saúde no controle da doença.

A Fiocruz possui uma página especial em que oferece diversas informações sobre a esporotricose, que é considerada endêmica no Rio de Janeiro e um problema de saúde pública desde 2013, quando a notificação compulsória foi estabelecida.

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Saiba Mais

A One Health Approach to Combatting Sporothrix brasiliensis: Narrative Review of an Emerging Zoonotic Fungal Pathogen in South America

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A importância do trabalho conjunto de várias disciplinas também está presente no SUS. Podemos considerar que as Equipes de Saúde da Família (ESF) têm essa abordagem de Uma Só Saúde e trabalham em conjunto com as diferentes disciplinas, desde a sua essência. Atuam nas Equipes de Saúde da Família médicos, enfermeiros, odontólogos, veterinários, biólogos e outros profissionais.

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Saiba Mais

Saiba mais sobre a interface entre Equipes de Saúde da Família (ESF) e a abordagem de Uma Só Saúde lendo o trabalho (em inglês) A Concrete Example of the One Health Approach in the Brazilian Unified Health System

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Você chegou ao final da aula!

Nesta aula, vimos que a visão de Uma Só Saúde pode ser aplicada a problemas como os acidentes com ofídios e infecções fúngicas. Essa abordagem permite uma melhor compreensão e resposta a diversos eventos que ameaçam a saúde de animais, pessoas e do ambiente, já que estão interligados.

Atualmente, há uma série de iniciativas orientadas pela visão de Uma Só Uma Só Saúde, tendo em vista agravos de potencial epidêmico ou classificados como doenças negligenciadas segundo a OMS. Continue sua trilha de estudos!