Aula 1
História da visão integrada e das diferentes definições de Uma Só Saúde
Objetivos de aprendizagem da aula:
- Conhecer a história das ações integradas de saúde no Brasil
- Conhecer a história do Programa de Controle da Raiva no Brasil
- Conhecer as definições de Uma Só Saúde
Uma Só Saúde: Contexto
Breve histórico das ações integradas de saúde
A visão de que há uma conexão entre a saúde humana e animal existe desde o tempo do médico grego Hipócrates (460 a.C.), conhecido como “pai da medicina”. Mas foi apenas no século 18 que o cientista alemão Rudolf Virchow (1821-1902) descreveu mais claramente esta relação.
E foi ele o responsável por cunhar o termo zoonose (doenças e/ou infecções transmitidas para o homem através dos animais) No séc. 19, vários estudos e pesquisadores constataram similaridade nos processos infecciosos causados por doenças em seres humanos e animais.
No entanto, a medicina humana e a veterinária seguiram trajetórias independentes uma da outra. Somente nos últimos anos, que se teve início a um esforço de aproximação nos estudos entre essas duas áreas.
Com o lançamento da obra “Veterinary Medicine and Human Health” em 1984, o médico veterinário norte-americano Calvin W. Schwabe (1927-2006) discutiu e reforçou a importância da junção entre saúde humana, animal e ambiente. No livro, ele adota a expressão “One Medicine”, que mais tarde passa a ser conhecida como “One Health”. Fonte: Adaptada e atualizado do site Bio em foco: One Health: Você conhece o conceito de saúde única? (junho, 2018).
Porém, somente na década de 1940, foram criados programas de saúde pública veterinária, na Região das Américas. Ao conjugar a disciplina de medicina veterinária com a saúde pública, o controle das doenças zoonóticas, como raiva, brucelose e outras, ganhou mais importância. Nessa região, o primeiro programa com enfoque integrado, que hoje chamamos de Uma Só Saúde, foi o controle da raiva.
Ações integradas de saúde no Brasil e desafios
Integrar diversas disciplinas do campo da saúde foi fundamental para o controle das zoonoses no Brasil, nas esferas municipal, estadual e nacional. Veja a Linha do Tempo com as principais ações integradas no país.
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1900-1901
Fundação do Instituto Soroterápico Federal (atual Fiocruz), no Rio de Janeiro, e do Instituto Butantan, em São Paulo -
1919
Fundação do Instituto Vital Brazil, em Niterói (RJ). -
1940
Fundação da Divisão de Saúde Pública Veterinária, no Centro de Doenças Transmissíveis (atual – CDC), nos Estados Unidos -
1947
Implementação do Programa de Saúde Pública Veterinária (SPV) pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em Washington. -
Década de 1950
Criação do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (Panaftosa), no Brasil (1951), e do Centro Pan-Americano de Zoonose, na Argentina (1956). Nessa época, foi reconhecido o importante papel dos animais na epidemiologia das doenças zoonóticas e como poderiam ser controladas. -
Década de 1970
Criação da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), responsável pelo controle de zoonoses endêmicas, como doença de Chagas, esquistossomose, febre amarela e leishmaniose. -
1984
Calvin Schwabe, epidemiologista veterinário, cunhou o termo “one medicine”. -
1986
Instituição do Programa Nacional de Controle de Acidentes por Animais Peçonhentos. -
1988
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi previsto na nova Constituição Federal. -
1990
Revisão da definição de SPV como “a soma de todas as contribuições para o bem-estar físico, mental e social do ser humano através da compreensão e aplicação da ciência veterinária”. -
2001
Estudo publicado por Taylor, Latham e Woolhouse estimou que 61% dos patógenos humanos em todo o mundo são zoonoses, assim como 75% dos patógenos emergentes. -
2004
Simpósio da Wildlife Conservation Society uniu Organização Mundial da Saúde Animal (OIE), Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e OMS para desenvolver estratégias e ações dentro do conceito de Uma Só Saúde (one health). -
2005
Aprovada pela Assembleia Mundial da Saúde da OMS a nova versão do Regulamento Sanitário Internacional (implantado em 2007).
- Ameaça de Influenza Aviária. -
2006
Primeira Conferência Ministerial Internacional sobre Gripe Aviária e Influenza Pandêmica (Pequim, China).
- Sistema global de alerta precoce para as principais doenças dos animais, desenvolvido e implementado por FAO, OIE e OMS. -
2008
Lançamento da The One Health Initiative (OHI).
- FAO, OIE, OMS, Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Banco Mundial e Unsic produziram o documento colaborativo Contributing to one world, one he alth. -
2009
Formação da One Health Commission, nos Estados Unidos. -
2010
Colaboração entre FAO, OIE e OMS, para abordar os riscos à saúde na interface animalhumano-ecossistemas. -
2011 a 2019
Várias conferências, reuniões e documentos sobre o tema. -
2020
Pandemia de Covid-19.
- Nações Unidas publica vários documentos para prevenir próximas pandemias de doenças zoonóticas. -
2021
Criado pelas Nações Unidas o Painel de Especialistas de Alto Nível em One Health. -
2024
Criado o Comitê Técnico Interinstitucional de Uma Só Saúde pelo Governo Federal do Brasil. Instituído o dia nacional da Uma Só Saúde como 3 de novembro.
Saiba Mais
Leia A evolução da saúde pública veterinária no Brasil: do controle da raiva a Uma Só Saúde
A partir da década de 1990, teve início uma série de novas ameaças relacionadas à interface entre seres humanos, animais e o meio ambiente.
Do ponto de vista da saúde, surgiram doenças como: a encefalopatia espongiforme bovina (BSE), a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), surtos de influenza aviária A (H5N1) na Ásia e a pandemia de Covid-19.
Quanto aos prejuízos econômicos e ao desenvolvimento dos países, bilhões de dólares foram perdidos no mundo por conta da interrupção do comércio, o declínio no turismo internacional, e, principalmente, pelo grande impacto social destes eventos.
Em 2019, Schneider afirmou que o tema da interface entre seres humanos, animais, plantas e o meio ambiente passou a chamar a atenção dos tomadores de decisão e de cientistas, em função das frequentes ameaças registradas globalmente.
Patógenos são organismos que podem causar doenças em um hospedeiro, como seres humanos ou animais. Quando transmitidos entre animais e humanos diz-se que são causadores de doenças zoonóticas. Podem ser bacterianos, virais, parasitários ou fungos. As zoonoses podem ser transmitidas de várias formas, como: Contato direto com animais infectados, Consumo de alimentos ou água contaminada, Picadas de insetos vetores, Inalação de partículas contaminadas.
Em 2001, um estudo de Taylor estimou que 61% dos patógenos humanos em todo o mundo eram classificados como zoonoses. Na década anterior a este trabalho, constatou-se que 75% dos patógenos emergentes eram de origem animal.
Estudos posteriores, de Chomel (2007), e Schneider (2011), com o mesmo enfoque, chegaram a percentuais semelhantes, evidenciando a importância de prevenir e controlar doenças transmitidas entre animais e humanos.
Em 2004, a Sociedade de Conservação da Vida Selvagem — uma organização dos EUA que atua em cerca de 70 países —, promoveu um simpósio com o tema Construindo pontes interdisciplinares para a saúde em um mundo globalizado. A partir daquele ano, a Organização Mundial da Saúde Animal (então OIE), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as Organizações das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) se uniram para desenvolver estratégias e ações conjuntas alinhadas ao conceito Uma Só Saúde (One Health, em inglês). A parceria visa diminuir os riscos emergenciais e a disseminação de doenças infecciosas resultantes da interação entre seres humanos, animais, plantas e o meio ambiente.
O conceito: Uma Só Saúde (One Health)
Existem várias definições para Uma Só Saúde (One Health). A mais utilizada nas Américas, ao longo dos últimos anos, foi proposta pela Associação Americana de Medicina Veterinária:
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O esforço colaborativo de várias disciplinas — trabalhando local, nacional e globalmente — para alcançar a saúde ideal para pessoas, animais e meio ambiente.”
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Uma Só Saúde é uma abordagem colaborativa, multissetorial e transdisciplinar — que atua em níveis locais, regionais, nacionais e globais — para alcançar os melhores resultados de saúde e bem-estar, reconhecendo as interconexões entre pessoas, animais, plantas e seu ambiente compartilhado.” (tradução livre do inglês)
Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) -
É possível integrar esforços em saúde humana, animal e ambiental para prever e controlar certas doenças na interface humano-animal-ecossistema. E, ainda, que abordagens integradas que consideram componentes da saúde humana, animal e ambiental podem melhorar a previsão e o controle de certas doenças.”
Rabinowitz (2013) -
(…) os animais e os seres humanos compartilham seus ambientes (como ecossistema, solo, clima) e estes são afetados pelo interesse socioeconômico dos seres humanos (como produção de alimentos, comércio, turismo) e sofrem pressões externas (como urbanização, migração, demografia). diferentes disciplinas podem, juntas, fornecer novos métodos e ferramentas para pesquisa e implementação de serviços eficazes a fim de apoiar a formulação de normas, regulamentos e políticas em benefício da humanidade e dos animais, conservando o ambiente para as gerações atuais e futuras. essa abordagem melhorará a previsão, detecção, prevenção e controle de riscos infecciosos e outros problemas que afetam a saúde e o bem-estar na interface, contribuindo com os objetivos de desenvolvimento sustentável da onu e ampliando a ajuda para melhorar a equidade no mundo.”
Schneider (2019) -
Uma Só Saúde é uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas. Reconhece a saúde do ser humano, dos animais domésticos e silvestres, plantas e do meio ambiente de forma mais ampla (incluindo ecossistemas), considerando que são estreitamente ligados e interdependentes. A abordagem mobiliza múltiplos setores, disciplinas e comunidades em vários níveis da sociedade para trabalhar em conjunto, a fim de promover bem-estar e combater as ameaças à saúde e aos ecossistemas, com enfoque na necessidade coletiva de água, energia e ar limpos, assim como de alimentos seguros e nutritivos, agindo quanto à mudança climática e contribuindo para o desenvolvimento sustentável.” (tradução livre do inglês)
Além disso, há outras definições, veja a seguir:
Tendo em vista os impactos da pandemia de Covid-19, foi criado, em 2021, o Painel de Especialistas de Alto Nível em Uma Só Saúde (OHHLEP, do inglês One Health Hight Level Expert Pannel).
O grupo — que é formado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) pela Organização Mundial para a Saúde Animal (OIE) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) — apresentou uma definição para o conceito em seu relatório anual.
Uma Só Saúde como a interdependência entre a saúde humana, animal e do meio ambiente.
Como vocês podem ver, as definições de Uma Só Saúde têm em comum a premissa de que diversas disciplinas no campo da saúde devem atuar de forma integrada, a fim de promover a saúde humana e também o bem-estar animal e a preservação do meio ambiente.
Assista ao vídeo a seguir da Professora Doutora Maria Cristina Schneider, que compartilha conosco suas visões a respeito desta abordagem.
Uma só Saúde por Doutora Maria Cristina Schneider
O pensamento de que animais, humanos e o ambiente estão interligados vem desde tempos históricos, foi evoluindo, hoje temos um termo e definições para esta visão integrada, “Uma Só Saúde”, tão importante para presidir, prevenir, e responder a eventos na interface.
Saiba Mais
Leia o texto Uma Só Saúde: onde a medicina humana, a medicina veterinária e as ciências ambientais se encontram
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O programa de controle da raiva no Brasil como exemplo
A raiva foi a primeira zoonose prioritária no Brasil. Em 1973, os Ministérios da Saúde e da Agricultura, a Central de Medicamentos (CEME) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) estabeleceram o acordo de criação do Programa de Controle da Raiva.
Nas primeiras décadas da iniciativa, a maior preocupação era a raiva humana transmitida ou mediada pelo cão. As ações de controle do programa, eram dirigidas tanto às pessoas quanto aos animais, como o acesso gratuito à profilaxia pós-exposição e campanhas massivas de vacinação de cães e gatos. Também havia ações para reforçar a vigilância da raiva em diferentes espécies: humanos; animais domésticos, como cães e gatos; animais de interesse produtivo, como o gado; e animais silvestres.
Nesse sistema de vigilância conjunto, os Ministérios da Saúde e da Agricultura enviavam os relatórios de seus laboratórios para a Opas pelo Sistema de Informação Regional para Vigilância Epidemiológica da Raiva (Sirvera), o sistema de informação, que existe até hoje.
Esta abordagem integrada é um exemplo de que já se utilizava a visão de Uma Só Saúde, naquele momento.
Integração de saúde na prática: a raiva humana transmitida por morcego
Outro exemplo de integração de saúde foi registrado no início dos anos 1990, após surtos de raiva humana transmitida por morcegos no Brasil e em outros países que fazem parte da Amazônia. Na ocasião, o Ministério da Saúde criou um comitê multidisciplinar e intersetorial de especialistas, para tentar identificar a origem dos surtos de raiva humana transmitida por morcego hematófago (Desmodus rotundus) no Brasil e sugerir ações de prevenção e controle.
O grupo de trabalho (GT) que assessorava a Coordenação do Programa de Raiva no Ministério da Saúde desenvolveu uma metodologia que incluía indicadores de saúde humana, animal e mudanças no ambiente, a fim de definir critérios para áreas de risco para a raiva humana transmitida por morcegos, bem como ações intersetoriais para os diferentes níveis de risco. Uma das sugestões foi a vacinação pré-exposição para habitantes de áreas de alto risco na Região Amazônica com difícil acesso aos serviços de saúde.
O GT organizou um curso conjunto de saúde e agricultura, com a finalidade de repassar a metodologia e capacitar os participantes para o controle de populações de morcegos. Também foram publicados trabalhos correlacionando os processos produtivos, alterações no meio ambiente a nível local e o surgimento de casos de raiva humana por morcegos hematófagos, identificando a necessidade dFe mudanças importantes para conter o avanço da doença.
Componentes da raiva humana transmitida por morcegos hematófagos
Componente Humano
Mordidas de
morcego
colocam indivíduos em risco de
contrair o
vírus e requerem atenção do sistema de saúde. A raiva é uma doença fatal.
Componente Animal
Morcegos
infectados
transmitem o vírus da raiva entre si
e
para diferentes espécies, podendo ocorrer perdas econômicas importantes
principalmente
bovinos e equinos.
Componente Ambiental
Morcegos
necessitam de áreas com abrigo e comida abundantes para sobreviver. Mudanças
rápidas no processo produtivo e/ou no meio ambiente como desmatamento, garimpos
e degradação de seu habitat natural podem mudar os hábitos alimentares dos
morcegos hematófagos, causando um potencial desequilíbrio do ecossistema local.
Possíveis ações integradas entre saúde humana, animal e ambiente
- Intercâmbio de informação sobre vigilância a nível local (saúde e agricultura) tanto de casos de raiva em humanos e em animais (evidência da presença do vírus), como de agressões de morcegos (demostra o risco de ocorrer um surto caso haja presença do vírus na população de morcegos)
- Apoiar as autoridades a nível central na predição/identificação de áreas de risco
- Em áreas de maior risco (como na região da Amazônia Legal) o setor ambiental poderia informar o da saúde e da agricultura sobre a ocorrência de eventos que poderiam predizer o aumento das agressões de morcegos (como garimpos, desmatamentos e outros)
- Conjuntamente identificar áreas de vulnerabilidade social e de difícil aceso aos serviços onde as pessoas possam estar sendo agredidas por morcegos e desenvolver ações preventivas intersetoriais antes da ocorrência de um surto
- Para áreas de risco elaborar materiais de informação e educação, assim como capacitações conjuntas para os funcionários dos três setores nos distintos níveis, orientando a vigilância coordenada, investigação de possíveis surtos e ações de prevenção e controle.
O exemplo do projeto realizado nos anos 1990 mostra a interconexão entre os morcegos hematófogos, outros animais, o meio ambiente e a saúde humana. Nas cidades, forros de edificações, dutos de ventilação e tubulação de chaminés são locais que servem de abrigo para os morcegos. Nesses ambientes, os morcegos Desmodus rotundos encontram condições de temperatura, umidade e luminosidade semelhantes a de cavernas, frestas em rochas ou copas de árvores, seu habitat natural. A degradação sistemática desses ambientes e a expansão desenfreada das cidades, são causas comuns para que esses morcegos hematófagos se aproximem demasiadamente das zonas urbanizadas.
Esse projeto implantou as bases para uma atuação conjunta dos ministério da Saúde e da Agricultura e, posteriormente, do Meio Ambiente, a fim de responder e prevenir surtos de raiva humana transmitida por morcegos, um risco que existe até os dias de hoje. Atualmente, por determinação do comitê multidisciplinar, o Ministério da Saúde está vacinando com pré-exposição as pessoas que moram em áreas de alto risco na Região Amazônica.
Programa nacional de controle da raiva
No vídeo a seguir, Dra. Maria Cristina Schneider fala sobre O Programa Nacional de Controle da Raiva e fatores relacionados à ocorrência de casos de raiva no Brasil.
Você chegou ao final da aula!
Nesta aula, você aprendeu sobre a história e os conceitos de Uma Só Saúde. Também viu como essa abordagem foi aplicada pelo Programa de Raiva no Brasil.
Antes de seguir em frente, leia sobre os 50 anos da atuação do Programa de Raiva no Brasil (em inglês), que documenta os esforços integrados em diferentes níveis de atuação, a partir de um estudo publicado em 2023. Veja os resultados: