Módulo 2 | Aula 1

Enfrentamento da COVID-19
No contexto dos povos indígenas

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Módulo 2 - Aula 1

Epidemias e as vulnerabilidades dos povos indígenas no contexto da pandemia

Nesta aula, vamos falar sobre as múltiplas vulnerabilidades dos povos indígenas no contexto da pandemia da COVID-19.

Ao final, você vai ser capaz de:

  • Reconhecer os impactos históricos das epidemias em povos indígenas.
  • Explicar as diversas vulnerabilidades dos povos indígenas no contexto da pandemia.
  • Entender a situação de (in)segurança alimentar dos povos indígenas no contexto da pandemia e suas estratégias de enfrentamento.
  • Reconhecer os impactos dos conflitos ambientais na saúde dos povos indígenas, e particularmente nos riscos para os povos isolados e de recente contato.

Epidemias e povos indígenas

Há inúmeros registros históricos do expressivo e devastador impacto de doenças infecciosas em povos indígenas, como gripe, sarampo e varíola, particularmente naqueles isolados ou de recente contato, doenças essas que chegaram a dizimar alguns grupos étnicos.

Cataclismo Biológico - epidemias na história indígena

Fonte: Instituto Socioambiental (ISA)

O jornalista Felipe Milanez registrou depoimentos de sertanistas sobre o quão letal pode ser o sarampo, numa aldeia:

“Os Kararô, no Porto de Moz, era um grupo de 48 índios. (...) A aldeia tinha uma picada. Levaram o índio para acompanhar, e era para ele voltar para a aldeia. Só que ele não foi, e lá tinha sarampo. Quando voltou, para a aldeia, já tinha pegado sarampo, daí espalhou. Contaminou os outros. Morreram quase todos. Ficaram só oito, que escaparam. Dos 48 índios”

(MILANEZ, 2015; et. al pp. 125-126)

"A história das relações entre índios e brancos no Brasil ensina que as armas de conquista foram alguns apetites e ideias, um equipamento mais eficiente de ação sobre a natureza, bacilos e vírus – sobretudo vírus."

Darcy Ribeiro

Já vimos que as epidemias são reconhecidamente um dos principais fatores para a redução demográfica dos povos indígenas desde o início da ocupação do atual território nacional pelos colonizadores (Módulo 1 - História, direitos e diversidade).

Há algumas décadas os pesquisadores discutem o motivo para essas altas mortalidades dos povos indígenas frente às epidemias introduzidas pelo contato. Coimbra Júnior (1987) aponta que diversos aspectos devem ser considerados como:

  • Após instalada uma epidemia em comunidade indígena, pode ocorrer carência de alimentos, pois como as doenças transmissíveis rapidamente afetam praticamente toda população, as pessoas podem não ter condições de ir à roça, coletar alimentos, caçar ou pescar. Dessa forma, uma consequência importante das epidemias, que agravam seus impactos, é a fome.
  • As respostas que as comunidades indígenas têm diante de uma doença, particularmente aquelas introduzidas pelo contato, afetam o curso dela. Coimbra Júnior (1987: 27) observa três padrões de comportamento: dispersão e fuga das pessoas; aglomeração em uma mesma habitação coletiva; interrupção das atividades de subsistência. Esses comportamentos podem tanto dificultar a oferta de assistência médica, potencializar a transmissão da doença e comprometer seu estado nutricional.
  • Está bastante documentado que a provisão de recursos médicos adequados reduz, de maneira importante, as taxas de letalidade das epidemias em povos indígenas. Ou seja, a oferta de atenção primária é capaz de alterar os impactos das epidemias.

Evidências têm sido acumuladas no sentido de demonstrar que a provisão de recursos médicos adequados, por si, é capaz de reduzir significantemente as taxas de mortalidade”

(Coimbra Júnior,et. al 1987:23)

Histórias da Pandemia

Carlos Fausto, professor de antropologia do Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, lê seu texto: "Sarampo do tempo de meu avô, memórias do etnonício na pandemia".

No texto, ele relata conversas e apresenta como tem sido a realidade das doenças em populações indígenas, ao longo da história.

Ouça o áudio:

O texto original foi publicado no Nexo Jornal, em abril deste ano (a matéria é restrita a assinantes).

As vulnerabilidades dos povos indígenas à pandemia da COVID-19

O coronavírus é um novo vírus que aflige a população mundial. Nessas circunstâncias todos nós, indígenas e não indígenas, somos suscetíveis à doença. Neste caso, a vulnerabilidade dos indígenas está relacionada com as iniquidades previamente instaladas em suas condições de vida e situações de saúde, que tende a afetá-los de modo mais negativo perante a pandemia. Os povos indígenas não estão apenas expostos ao novo coronavírus, mas também à adversidade do contato interétnico, que promove acentuada vulnerabilidade social que dificulta o enfrentamento do processo epidêmico.

Assim, a chegada da COVID-19 aos povos e territórios indígenas no Brasil trouxe preocupação para diversas organizações e autoridades. A Organização Panamericana da Saúde (OPAS) publicou um Alerta Epidemiológico (Alerta Epidemiológica: COVID-19 en pueblos indígenas en las Américas - 15/07/2020). A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), por meio do Grupo Temático Saúde Indígena (GTSI/Abrasco) e Comissão de Assuntos Indígenas (CAI/ABA), se manifestou pelo documento A COVID-19 e os povos indígenas: desafios e medidas para controle do seu avanço (21/03/2020). A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) também fez um comunicado à imprensa, sobre o assunto - Indígenas amazônicos estão “em grave risco” frente ao COVID-19, alertam ONU Direitos Humanos e CIDH (04/06/20).

Veja as principais preocupações em relação aos povos indígenas e a COVID-19:

  • Globalmente, povos indígenas são altamente vulneráveis às infecções respiratórias agudas (La Ruche et al., 2009; Flint et al., 2010). Evidências recentes confirmam que a introdução de vírus respiratórios em comunidades indígenas suscetíveis apresenta elevado potencial de espalhamento, resultando em altas taxas de ataque e de internações, com potencial de causar óbitos, como foi o caso da Influenza A (H1N1)pdm09 e do Vírus Sincicial Respiratório, em 2016 (Cardoso et al., 2019).
    Surto de doença respiratória aguda em uma aldeia indígena

    Pesquisadores da Fiocruz investigaram surto de doença respiratória aguda em uma aldeia indígena no Brasil. Os resultados foram relatados no artigo Investigation of an outbreak of acute respiratory disease in an indigenous village in Brazil: Contribution of Influenza A(H1N1)pdm09 and human respiratory syncytial viruses.

  • As iniquidades pré-existentes nas condições de vida e saúde indígenas os tornam mais suscetíveis a complicações decorrentes da COVID-19 (Módulo 2 - Perfil Epidemiológico e a COVID-19 nos povos indígenas). Diversos estudos mostram que existem elevadas prevalências de diferentes doenças e agravos à saúde da população indígena - como desnutrição e anemia em crianças, doenças infecciosas como malária, tuberculose, hepatite B, entre outras, além da cada vez mais frequente a ocorrência de hipertensão, diabetes, obesidade e doenças renais em adultos.
  • Não sabemos como a epidemia poderá se comportar na população indígena, em termos de evolução e gravidade dos casos. Epidemias anteriores mostram que doenças infeciosas tendem a se espalhar rapidamente e atingir grande parte dessas populações, com manifestações graves em crianças e idosos. Essas situações desestruturam a organização da vida cotidiana, podendo agravar a insegurança alimentar e a manutenção dos cuidados de saúde, pois atingem elevadas proporções de pessoas do grupo comunitário.
  • Considerando as características de transmissão do Sars-Cov-2, são enormes os desafios para implementar as medidas preventivas no contexto dos povos indígenas. Os modos coletivos de vida, convívio domiciliar e compartilhamento de utensílios e objetos de uso pessoal podem favorecer a transmissão, portanto, as orientações têm que ser disseminadas em idioma e linguagens adequadas aos contextos. Ademais, devido à precariedade do acesso ao saneamento básico e de compra de insumos, as comunidades têm dificuldades em implementar as medidas de higienização das mãos e objetos.
  • Em muitas comunidades indígenas, as pessoas residem em habitações com grande número de moradores, dificultando medidas de isolamento social, que precisam de estratégias específicas. A manutenção do isolamento social das comunidades indígenas depende da garantia de condições adequadas e dignas necessárias, particularmente quanto à segurança alimentar. A insegurança alimentar pode ser um motivador para o deslocamento dos indígenas de suas comunidades para centros urbanos, onde existe maior risco de transmissão da doença.
  • Muitos povos indígenas residem em locais remotos e frequentemente próximos de municípios com precária estrutura de serviços e saúde, dificultando o acesso a meios de diagnóstico e assistência hospitalar, requeridas para enfrentamento da pandemia. Dessa forma, a atuação do SASI-SUS precisa ser coordenada com estados e municípios e com suficientes aportes financeiros para estruturar a atenção, a fim de garantir a integralidade da atenção.
  • As populações indígenas urbanas estão particularmente vulneráveis pois se encontram inicialmente mais expostas à transmissão da COVID-19. Por outro lado, estão desassistidas tanto pelas políticas indígenas, do subsistema de saúde indígena e da Funai, quanto enfrentam barreiras no acesso a serviços de saúde e políticas sociais nas cidades, além de preconceito e discriminação nesse processo.
  • A garantia da demarcação e proteção dos territórios indígenas é um fator protetor para essas populações. Assim, as ameaças aos territórios, como as invasões ilegais por atividades garimpeiras e agropecuárias, que levam a contaminação ambiental e conflitos violentos, também favorecem a disseminação de epidemias. Os povos indígenas isolados e em recente contato são mais gravemente afetados por essas invasões. Por outro lado, as populações indígenas em terras e áreas não homologadas têm sua vulnerabilidade agravada globalmente.
Vulnerabilidades, impactos e o enfrentamento à COVID-19

As vulnerabilidades dos povos indígenas e a saúde Indígena frente à pandemia de coronavírus foi a pauta no webinar organizado pelo Observatório COVID-19 da Fiocruz e APIB.

Mapeando as vulnerabilidades dos povos indígenas à pandemia de COVID-19

Na busca de promover subsídios para a resposta ao enfrentamento da COVID-19 em terras indígenas, alguns pesquisadores desenvolveram estudos para mapear a vulnerabilidade segundo alguns indicadores. Destacamos os seguintes estudos:

Modelagem da vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil ao COVID-19 - Nota Técnica

O estudo monitora a vulnerabilidade das Terras Indígenas na resposta aos impactos da COVID-19. Para isso ele integra dados de vulnerabilidade social, disponibilidade de leitos hospitalares, números de casos por município, número de óbitos, perfil etário da população indígena, vias de acesso e outros fatores relacionados com a estrutura de atendimento da saúde indígena e mobilidade territorial. Diante da urgência, o modelo preditivo identifica e prioriza regiões mais vulneráveis. Você pode ver a nota técnica dessa modelagem no site do Instituto Socioambiental.

Essa modelagem é usada pelo Instituto Socioambiental para criação do Mapa de vulnerabilidade nas Terras Indígenas a COVID-19.

O Mapa destaca a vulnerabilidade social na transmissão do vírus, apontando as Terras Indígenas no estado de Roraima, e particularmente o território Yanomami, com maior risco, diante da intensa invasão de garimpeiros. Ressalta também a situação da Terra Indígena Vale do Javari, que possui o maior número de registros de povos isolados.

A TI Jaraguá, na cidade de São Paulo, desponta com destaque no perfil demográfico por possuir 18% da população com idade acima de 60 anos, além do problema da marginalização social e confinamento territorial.

Esse estudo também destaca as fragilidades na estruturação da assistência à saúde diante do baixo número de leitos e grandes distâncias.

Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à COVID-19

Na análise, os pesquisadores apresentam a construção de um Índice de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à COVID-19 (IVDIC) para facilitar as ações de prevenção e gestão de impactos à pandemia instalada. O índice foi construído considerando:

  • o comportamento da transmissão do vírus;
  • a disponibilidade de atendimento em Unidades de Terapia Intensiva (nos hospitais para casos graves da doença);
  • a capacidade de manter isolamento social;
  • a capacidade de manter uma rotina de prevenção;
  • os fatores de risco associados à letalidade (faixa etária);
  • a segurança da situação de regularização fundiária da Terra Indígena.

Você pode ter acesso à análise no site do Núcleo de Estudo de Populações "Elza Berquó"

As análises partiram de fontes já publicadas pelo IBGE dos dados do Censo Demográfico 2010 e desagregáveis por Terras Indígenas por estados.

A partir dessas informações se classificou às terras indígenas em vulnerabilidade crítica, intensa, alta ou moderada, conforme mostra a figura Mapa das terras indígenas do Brasil.

Esse estudo se desdobrou numa proposição de estruturação da proposta de Municípios estratégicos para instalação de estruturas de atendimento emergencial aos povos indígenas no enfrentamento à COVID-19”, com a listagem de 17 cidades prioritárias: São Gabriel da Cachoeira/AM, Tabatinga/AM, Itacoatiara/AM, Pacaraima/RR, Boa Vista/RR, Paulo Afonso/BA, Água Boa/MT, Redenção/PA, Jacareacanga/PA, Oriximiná/PA, Altamira/PA, Amambai/MS, Grajaú/MA, Guajará-Mirim/RO, Tarauacá/AC, Oiapoque/AP e Itarema/CE.

Segurança Alimentar e Nutricional

No Brasil, a alimentação adequada é um direito humano, sendo que a Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006 cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN , definindo:

“Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.

No que se refere à segurança alimentar dos povos indígenas, é preciso reconhecer que ela está diretamente relacionada com os processos de territorialização e de demarcação de terras indígenas, que garantem a manutenção dos modos nativos de produção dos alimentos. Insegurança territorial, conflitos e invasões de terras, de acampamentos ou de áreas de retomadas indígenas, resultam, além de violências e transmissão de doenças, na insegurança alimentar. Terras indígenas em constante ameaça, falta de acesso à água, efeitos das mudanças climáticas, uso de agrotóxicos vão interferir diretamente nas condições de insegurança alimentar

“O problema da produção de alimentos em áreas indígenas possui ainda outros agravantes. Entre eles podemos mencionar a presença ilegal de posseiros em terras indígenas e a retirada ilegal de recursos das reservas por não-índios, como é o caso da atuação das madeireiras e de garimpeiros. Nesses casos, além dos conflitos entre índios e invasores, há a degradação ambiental que resulta dessas atividades: grandes áreas podem ficar comprometidas por décadas, sem que seja possível utilizá-las na produção de alimentos. Além disso, em muitos casos as populações indígenas são inicialmente expulsas de seus territórios e só conseguem retornar se for feita a demarcação de suas terras. Por vezes, o retorno acontece quando as áreas já foram intensamente desmatadas e exploradas, o que também significa solos empobrecidos e comprometimento da fauna e flora.”

“BARROS; SILVA; GUGELMIN, 2007, epub)”

Ademais, as ações voltadas à segurança alimentar dos povos indígenas devem partir dos marcos do etnodesenvolvimento, ou seja, que se iniciem a partir do diálogo com os povos indígenas e garantam a participação social deles nas diferentes etapas das intervenções. Ações devem valorizar o uso de recursos locais, sejam eles naturais, técnicos ou humanos, e que respeitem o meio ambiente. Mas também devem considerar o processo de transição alimentar, inerente aos processos de industrialização e urbanização, que também afetam os povos indígenas no contato interétnico e transformaram suas práticas alimentares.

Assim, o acesso e a introdução de alimentos industrializados como parte da dieta alimentar já são realidade nas comunidades indígenas. Desse modo, nutrição e alimentação se distinguem: dietas empobrecidas do ponto de vista nutricional devido a inserção ou grande consumo de industrializados, e a alimentação como o processo sociocultural de escolha dos alimentos, o que significa inclusive optar pelo consumo de alimentos de baixo valor nutricional.

As ações de enfrentamento da COVID-19 devem garantir o acesso de forma permanente e estável a alimentos culturalmente adequados e saudáveis.

Segurança alimentar no contexto da COVID-19

Desde os primeiros alertas da disseminação do SARS-CoV-2 em território nacional, diversas comunidades e organizações indígenas têm iniciado um isolamento voluntário e a redução da circulação de pessoas das aldeias para os centros urbanos (#ficanaaldeia). A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) têm recomendado, como medidas de contenção da transmissão do vírus, a diminuição do trânsito aldeia-cidade. O isolamento voluntário dos povos indígenas tem sido implementado, mas gera diversas preocupações quanto à segurança alimentar e nutricional, principalmente, naqueles contextos em que a produção de alimentos é precária ou insuficiente.

A maior parte da população indígena do país hoje vive em aldeias, cujo acesso à alimentação varia entre a produção local de alimentos e a aquisição comercial nos centros urbanos. Em ambos os casos, a pandemia traz ameaças concretas à segurança alimentar e nutricional. Além disso, o acesso aos recursos de programas de transferência de renda também é relevante para muitas famílias para garantir alimentos e seu acesso depende da ida aos centros urbanos - a acessibilidade aos meios de comunicação digital territórios indígenas é baixa.

Diante dessas questões, a FUNAI, diversas prefeituras e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos anunciam a distribuição de cestas básicas, havendo ainda a inclusão dos indígenas nas medidas de transferência de renda emergenciais. Essas medidas são fundamentais no contexto de urgência que estamos, mas também geram preocupações seja pela falta de clareza dos procedimentos para evitar a transmissão do vírus, e porque estimulam a ida dos indígenas aos centros urbanos, e, portanto, colocando-os em risco de contaminação.

Fonte: Funai

Fonte: Funai

A distribuição de cestas básicas em períodos como o do COVID-19 é fundamental, desde que em caráter emergencial e provisório. A medida deve ser avaliada localmente pelas comunidades, através de suas lideranças ou organizações indígenas. O repasse direto dos recursos às organizações indígenas ou a compra coletiva de alimentos e seu transporte até as comunidades podem ser alternativas - mas com especial atenção para a logística de transporte e higienização, de acordo com a Nota Informativa Sesai 03/2020.

Também é fundamental que os alimentos adquiridos devem estar em conformidade a cultura alimentar de cada região, dando preferência a alimentos agroecológicos produzidos e cultivados pelas comunidades indígenas, evitando a distribuição massiva de produtos ultraprocessados.

Nota Pública da Abrasco e ABA sobre COVID-19 e Segurança Alimentar

A nota pública traz recomendações para garantia da segurança alimentar dos povos indígenas no contexto da pandemia.

A produção alimentar indígena local, usualmente, exige trabalho em caráter quase cotidiano - incluem a abertura de roças, o plantio e a colheita, bem como as atividades de coleta, caça e pesca. Em um cenário epidêmico como o da COVID-19, há uma chance maior de muitas pessoas adoecerem ao mesmo tempo, inviabilizando a produção alimentar indígena. Nesse sentido, o papel da vigilância alimentar e nutricional é de promoção de ações de enfrentamento para que não ocorram agravos de saúde e identificação de situações que necessitem de intervenção.

A garantia de saneamento e abastecimento de água potável em territórios indígenas é outro ponto fundamental não só por ser um direito social, como para garantir a segurança alimentar e as ações de higienização para o enfrentamento da COVID-19.

Saneamento e COVID-19: Desafios e Estratégia

Rosana Lima Viana, engenheira sanitarista da Fundação Nacional de Saúde e pesquisadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa com Populações e Comunidades Rurais, Negras, Quilombolas e Indígenas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Ela faz um alerta sobre a necessidade urgente de criação de planos de ação nos distritos sanitários, já que muitas comunidades indígenas não possuem sistema de abastecimento de água, aprofundando a vulnerabilidade dessa população ao coronavírus.

Sustentabilidade e segurança alimentar em Terra Indígenas

os impactos positivos na saúde das comunidades (online)(2:24:02)

A discussão apresenta as preocupações e alternativas que os próprios povos indígenas têm apontado para lidar com a insegurança alimentar no contexto da pandemia. O evento fez parte do Acampamento Terra Livre (ATL) virtual de 2020.

Direitos Territoriais, conflitos socioambientais e a proteção de povos isolados no contexto da COVID-19

O primeiro óbito de um indígena, um Yanomami de 15 anos de idade, em Boa Vista, ganhou repercussão nacional e trouxe à luz a preocupação com os impactos dos conflitos socioambientais nas vulnerabilidades dos povos indígenas à COVID-19 - como é o caso das invasões ilegais de madeireiros e garimpeiros na terra indígena Yanomami.

Historicamente, sabe-se que invasores ilegais, como garimpeiros, madeireiros e grileiros, acarretam o aumento de risco de transmissão de doenças, além de gerarem situações de conflito e violência, e causarem danos ao meio ambiente que afetam direta ou indiretamente a saúde.

As relações entre garimpo ou mineração com a consequente desestruturação do modo de vida e os impactos sobre o bem-estar dos povos indígenas na América são coetâneas ao próprio processo de colonização do continente”

(Rocha e Firpo, 2020:07)

Entretanto, estudos do Instituto Socioambiental demonstram que nos últimos anos, e particularmente no período da pandemia, as invasões de territórios e desmatamento de terras indígenas estão em expansão.

Em 2019, o aumento do desmatamento na Amazônia foi de 34,41%, mas nas Terras Indígenas, esse aumento foi de 80%. O aumento significativo da perda de vegetação no interior das TIs nos dois últimos anos é um indicativo grave de invasão com as finalidades de exploração ilegal dos recursos naturais e de apropriação fundiária”

(Oviedo et al, 2020: 1-2).

Oviedo aponta também o aumento da degradação florestal, desde 2018, e o desmatamento advindo da mineração, que cresceu 107% entre 2018 e 2019. Esses fenômenos têm alto impacto ambiental e de saúde.

A presença de garimpeiros e invasores em terras indígenas é um fator de transmissão da COVID-19 e exige medidas sanitárias e de fiscalização.

A demarcação dos territórios indígenas é fundamental para a proteção das condições necessárias para sua reprodução sociocultural e subsistência.

Terras Indígenas: bens da União

Confira o artigo do sócio fundador do ISA Márcio Santilli sobre a importância e a proteção legal das Terras Indígenas.

Povos isolados e de recente contato (PIIRC)

O Brasil é um dos países da América Latina com maior número de registro de povos isolados e de recente contato. São 114 registros citados pela FUNAI e compete a ela, por meio da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados – GIIRC e das Frentes de Proteção Etnoambiental proteger esses povos “sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los” (art.2º, inciso II, alínea "d", Decreto nº 7778/2012)” (Funai).

Povos em isolamento

"os povos em isolamento são povos ou segmentos de povos indígenas que não mantêm contatos regulares com a população maioritária, evitando todo tipo de contato com pessoas de fora de seu grupo.” (ONU)

A orientação da FUNAI e especialistas é que não se promova o contato com esses povos pois, historicamente as evidências mostram que o contato gera adoecimento, morte e depopulação.

Por isso, a primeira recomendação no contexto da COVID-19 é a manutenção do isolamento voluntário desses povos. Entre as medidas para manter o isolamento estão:

  • proteger e ampliar a fiscalização dos territórios onde esses povos vivem;
  • tomar as medidas para a desintrusão das áreas invadidas;
  • ter ação efetiva dos órgãos competentes tanto para desintrusão como para evitar
Sobre poder tutelar do Estado sobre os povos indígenas

Atenção à saúde dos povos isolados

A Portaria Conjunta no 4.094 (20/12/2018), do Ministério da Saúde e Funai, define princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. As ações envolvem, principalmente, SESAI e FUNAI. Destacamos os seguintes artigos:

Art. 4º As situações de contato, surtos e epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato devem ser consideradas emergência em saúde e requerem medidas imediatas e adequadas para reduzir a morbimortalidade associada à quebra de isolamento ou adoecimento.

Art. 7º As ações e medidas urgentes deverão ser norteadas, conforme o caso, por meio do Plano de Contingência para Situações de Contato e do Plano de Contingência para Surtos e Epidemias.”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE; FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO, 2018)

Essa portaria também preconiza que, em contextos de surtos e epidemias, seja ativada uma Sala de Situação para tomada de decisão dos gestores e das ações das equipes locais. No contexto da pandemia da COVID-19, esta Sala de Situação foi ativada a partir de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 709 . Você pode ler a decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, na íntegra, acessando o site do STF.

Coronavírus se aproxima de indígenas isolados da Amazônia

A matéria da National Geographic mostra a situação dos Povos Isolados e contextualiza a decisão do STF, em relação à ADPF 709.

Outra medida tomada para o combate à COVID-19 nos PIIRC foi a recomendação da instalação e manutenção de barreiras sanitárias, que segundo medida cautelar de 24 de agosto de 2020, “devem reunir, no mínimo, os seguintes elementos:

(i) medidas de proteção do território, (ii) EPI para os profissionais que atuarão na área, (iii) quarentena em local adequado para quem for adentrar terras indígenas, (iv) ingresso em tais terras apenas após testagem, (v) redução da movimentação de equipes, (vi) monitoramento epidemiológico do entorno, (vii) retirada de pessoa sintomática não indígena da área, (viii) preferência por tratamento de pessoa indígena na própria área, (ix) condições de comunicação adequadas (radiofonia) e (x) plano de contingência para o caso de contato entre PIIRCs e terceiros. Além disso, os protocolos, princípios e diretrizes aplicáveis às barreiras sanitárias devem considerar as particularidades e vulnerabilidades de cada povo e região, de modo a, mais uma vez, assegurar que tais barreiras cumpram a sua finalidade.

ADPF (709, p. 8)

Cabe aos DSEI e às unidades da FUNAI, que atuam em áreas com registro de PIIRC, antecipar-se na preparação para se reduzir os efeitos de eventuais casos de contato e adoecimento. Para isso é fundamental a elaboração de Planos específicos e detalhados, realizar capacitação das equipes, e preparar a infraestrutura e logística adequada para realizar isolamento e assistência em terra indígenas.

Chegamos ao final da aula

Nessa aula você viu como reconhecer os impactos históricos das epidemias em povos indígenas, impactos dos conflitos ambientais na saúde dos povos indígenas, e particularmente nos riscos para os povos isolados e de recente contato e já pode explicar sobre as diversas vulnerabilidades dos povos indígenas no contexto da pandemia. Também entendeu a situação de (in)segurança alimentar dos povos indígenas no contexto da pandemia e suas estratégias de enfrentamento.

Na próxima aula, você vai saber sobre o Perfil Epidemiológico dos povos indígenas.