Saúde é Desenvolvimento: A perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Uma sociedade equânime e com qualidade de vida, comprometida com os direitos sociais e o meio ambiente, não pode prescindir de uma base produtiva, tecnológica e de inovação em saúde que lhe dê sustentação em função da relação intrínseca que existe entre a dimensão social e econômica do desenvolvimento.

Há 20 anos, foi desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) o conceito e o programa de pesquisa do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) que une o campo da saúde coletiva com a economia política. Ao longo desse tempo, o programa tornou-se translacional, com a aplicação prática da investigação científica por meio da implementação de políticas públicas que objetivam a garantia do acesso universal à saúde com a promoção da produção de bens, insumos e serviços de saúde no Brasil.

Desenvolvimento é Saúde

Para o economista político Joseph Alois Schumpeter, desenvolvimento não é fazer mais do mesmo e sim um processo qualitativo relacionado à transformação. No Brasil, temos como exemplo de desenvolvimento na saúde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), uma inovação que transformou radicalmente a organização do sistema de saúde no Brasil e ampliou o acesso à saúde no país.

Marx observou as consequências do processo de desenvolvimento sobre a dimensão social. Segundo Marx, o desenvolvimento das relações capitalistas gerou um aumento extraordinário da riqueza material da sociedade, através da revolução incessante dos meios de produção, das comunicações e dos transportes. Entretanto, esse mesmo desenvolvimento gerou, simultaneamente, enormes assimetrias entre classes, regiões e nações.

A razão fundamental é que o desenvolvimento das forças produtivas tem como objetivo principal a reprodução e ampliação do capital, e não, necessariamente, a satisfação das necessidades da população. Denominamos esse processo inerentemente contraditório do desenvolvimento no capitalismo como a dialética do desenvolvimento capitalista.

Exemplo da dialética do desenvolvimento na saúde

A atuação da indústria farmacêutica pode ser usada como um exemplo da dialética do desenvolvimento na área da saúde. A indústria farmacêutica tem papel importante no desenvolvimento de produtos para garantir a saúde humana, mas nem sempre seus interesses estão alinhados com o da sociedade em geral. Nesse sentido, o Estado sempre terá um papel primordial para estimular os esforços privados a convergirem com o interesse público.

O desenvolvimento das vacinas para COVID-19 em tempo recorde é um exemplo claro dessa dialética do desenvolvimento na saúde. Sem o acúmulo de conhecimento gerado na academia, financiado principalmente com recursos públicos, e sem subsídios públicos que assumiram o risco financeiro dos projetos, não seria possível acelerar em tempo recorde o desenvolvimento das vacinas. A expertise da iniciativa privada para o escalonamento, aprovação e distribuição também foram fundamentais para que as vacinas chegassem ao mercado. Nesse sentido, foi a parceria virtuosa entre Estado e iniciativa privada que permitiu o desenvolvimento das vacinas para o novo coronavírus.

Contudo, a distribuição das vacinas não seguiu uma lógica de saúde pública global. Os países de maior renda ou com capacidade de produção e inovação de vacinas, adquiriram antecipadamente a maior parte da produção global. Adicionalmente, apesar dos subsídios públicos que receberam, diversas empresas anunciaram aumento nos preços das doses em meio à pandemia, mesmo registrando aumento de lucros no período.

Fonte: G1 Notícias

Fonte: RFI

A dinâmica captada por Marx e Schumpeter para caracterizar o capitalismo como um sistema em permanente transformação é apreendida no âmbito da saúde na perspectiva do CEIS. A adoção dessa perspectiva dialética permite demonstrar como o desenvolvimento produtivo e tecnológico pode gerar a expansão do investimento, da renda e do emprego, ao mesmo tempo em que gera exclusão, desigualdade e instabilidade.

O sistema se desenvolve na medida em que se transforma, destruindo incessantemente velhas estruturas para a criação de novas. Esse processo constante de transformação da base produtiva e social, observado tanto na percepção marxista da “dialética do desenvolvimento” quanto no processo schumpeteriano de “destruição criadora”, pode ser captado pelo conceito de inovação. O conceito de inovação é adotado na abordagem do CEIS, incorporando a transformação social, política, econômica e institucional associada à mudança da base produtiva e tecnológica.

A análise histórica permite evidenciar como as forças sociais e políticas lidaram com a dinâmica contraditória entre expansão e acumulação de capital e a tendência imanente ao sistema capitalista de gerar assimetrias, exclusão, desigualdade, perda de legitimidade social e insustentabilidade. Através da análise histórica, torna-se evidente que não existem modelos gerais e abstratos de organização da sociedade e do mercado que levem à expansão da economia e à convergência dos interesses de todas as pessoas.

Keynes, por sua vez, demonstrou teoricamente as contradições entre as decisões individuais de investimento e o benefício obtido pela sociedade. Sob a influência do espírito de sua época, forneceu a base conceitual para a formação de um pacto entre mercado e sociedade, revelando que a ação da sociedade e do Estado são decisivos para promover a transformação das condições prévias e impedir que o sistema produtivo e social fique trancado no passado (lock in effect).

Celso Furtado também associou o desenvolvimento a um processo de transformação tecnológica, de diferenciação do sistema produtivo. Entretanto, Furtado nos lembra que o desenvolvimento é um processo de mudança social com o objetivo de atender às necessidades humanas. Furtado, em seu livro Dialética do desenvolvimento, de 1964, afirma que o desenvolvimento econômico pode ser definido como ”um processo de mudança social pelo qual o crescente número de necessidades humanas, preexistentes ou criadas pela própria mudança, são satisfeitas através da diferenciação no sistema produtivo, decorrente da introdução de inovações tecnológicas”.

Ao realizar essa distinção, Furtado conseguiu recolocar a discussão do desenvolvimento em um campo que permite articular endogenamente a dimensão econômica e a social. Portanto, podemos depreender que desenvolver é transformar, mas transformar para atender às necessidades humanas mediante um processo de transformação social.

Ao longo das últimas décadas, foi se tornando cada vez mais evidente que o processo de desenvolvimento, além de atender às necessidades humanas atuais, também deve ser sustentável. A noção de desenvolvimento adotada pelo CEIS considera o ambiente como parte indissociável das dimensões econômica e social, e, portanto, deve ser articulada com a visão de desenvolvimento sustentável.

Um dos marcos da discussão mundial sobre sustentabilidade foi apresentado no relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, denominado “Relatório Brundtland - Nosso futuro comum”, de 1987.

Esse relatório consolidou o uso do termo “desenvolvimento sustentável”. Dentre os principais trechos do texto está o que define o termo:

O desenvolvimento sustentável é um desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as próprias necessidades.

Acesse a publicação ONU e o meio ambiente, se quiser saber mais sobre o tema.

As contribuições de Marx, Schumpeter, Keynes, Celso Furtado e do relatório Brundtland para pensar o desenvolvimento nos permitem entender de forma mais precisa a relação entre saúde e desenvolvimento. A partir da visão apresentada, podemos afirmar que saúde é desenvolvimento por aliar as seguintes dimensões:

Perspectiva Social

A saúde como expressão concreta das necessidades sociais que são objetivos do processo de desenvolvimento (direitos sociais, cidadania). O SUS é o promotor do acesso universal à assistência, à tecnologia, à vigilância sanitária e às políticas sociais que garantem a saúde da maior parte da população brasileira.

Perspectiva Econômica

A saúde como conhecimento, inovação e soberania produtiva para geração de renda, emprego e inovação. a capacitação tecnológica para produzir e fornecer os bens e serviços essenciais para que a atenção à saúde seja realizada. Exemplos: tecnologias para monitorar necessidades de saúde emergentes nos territórios, equipamentos de diagnóstico e tratamento, instrumentos e materiais hospitalares, medicamentos, dentre outros, é fundamental para garantir acesso universal, equânime e integral à saúde.

Perspectiva Ambiental

A saúde como desenvolvimento sustentável. Não existe desenvolvimento sustentável sem bem-estar (qualidade de vida), assim como não existe saúde se o ambiente não for sustentável. Um sistema produtivo e tecnológico soberano, que gere empregos qualificados e utilize o potencial de nossos biomas e ecossistemas para a geração de novas tecnologias que atendam às necessidades de nossa sociedade.

VÍDEO: Desenvolvimento, saúde e inovação

Para entender melhor a relação entre desenvolvimento, saúde e inovação, assista a vídeoaula do professor Carlos Gadelha: Saúde e ciência em tempos de pandemia

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PARA SABER MAIS: DIMENSÃO AMBIENTAL DA SAÚDE

Para saber mais sobre a dimensão ambiental, leia o artigo Estagnação predatória ou desenvolvimento sustentável?, do livro Saúde é Desenvolvimento: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde como opção estratégica nacional.

Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)

Foi a partir da característica indissociável entre as dimensões econômicas, sociais e ambientais da saúde que se conformou o conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), uma concepção inovadora que associa o campo econômico, tecnológico e da inovação para ser pensado junto com o direito à saúde. A tese central é que não é possível garantir o direito ao acesso universal à saúde sem uma base produtiva, tecnológica e econômica robusta e soberana.

O desafio da dinâmica econômica, produtiva e da ciência, tecnologia e inovação (CTI) se reproduz por dentro dos sistemas de bem-estar social: gerar transformações políticas, sociais e ambientais e, simultaneamente, investigar como as transformações políticas sociais e ambientais condicionam a dinâmica econômica, produtiva e de ciência, tecnologia e inovação.

O processo de desenvolvimento: dimensões endógenas

Representação visual do desafio da dinâmica   econômica, produtiva e da ciência, tecnologia e inovação

Fonte: GADELHA,2021 - p. 36

Em outras palavras, a perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde aponta que o Estado de Bem-Estar possui uma base material concreta que está intrinsecamente vinculada à dinâmica do capital e a todas suas contradições.

• O que é o Complexo Econômico-Industrial da Saúde

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde representa o espaço sistêmico no qual a produção e inovação em bens e serviços de saúde se realiza. Podemos observar claramente que existe um conjunto de atividades e setores econômicos diversos que estão inseridos em um contexto produtivo e de serviços característico da área da saúde. Essas atividades podem ser realizadas por organizações e instituições públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos. Exemplos: Hospitais públicos e privados, Instituições de Ciência e Tecnologia, Indústria Farmacêutica, Indústria de equipamentos médicos, laboratórios de diagnóstico, etc.

Por adotar a dinâmica captada por Marx e Schumpeter, que caracterizam o capitalismo como um sistema em permanente transformação, a abordagem do Complexo Econômico-Industrial da Saúde está centrada no processo de inovação, produção e realização da base material da saúde. Essa perspectiva envolve, necessária e simultaneamente, uma forte articulação entre a geração e difusão de tecnologias, a dinâmica institucional e social, a estruturação do Estado e as relações público-privadas na saúde.

Assim, podemos concluir que a decisão econômica e dos investimentos em saúde embute um modelo de sociedade, ao mesmo tempo em que um modelo de sociedade inclusivo e equânime exige determinada estrutura produtiva e de ciência, tecnologia e inovação em saúde.

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)

Apresenta a conformação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Fonte: GADELHA,2021 - p. 42

Na conformação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, os subsistemas interagem sistemicamente em um espaço de desenvolvimento produtivo e tecnológico para garantir o acesso universal.

São subsistemas do Complexo Econômico-Industrial da Saúde:

  • Subsistema da indústria - de base química e biotecnológica: atividades e setores econômicos envolvidos no desenvolvimento e produção de medicamentos de síntese química e biológica, insumos farmacêuticos ativos, vacinas, hemoderivados e reagentes para diagnóstico.

  • Subsistema da indústria - de base mecânica, eletrônica e de materiais: atividades e setores envolvidos no desenvolvimento e produção de equipamentos médico-hospitalares, insumos, próteses e órteses, dispositivos de diagnóstico, equipamentos de proteção individual.

  • Subsistema de informação e conectividade: atividades e setores envolvidos no desenvolvimento e produção de serviços para gerar, processar e transformar em conhecimento dados na área da saúde; e permitir a conexão entre produtos dos diferentes subsistemas.

  • Subsistema de serviços: atividades e setores envolvidos na produção de serviços de atendimento à saúde, abrangendo a produção hospitalar, ambulatorial, os serviços de diagnóstico e tratamento e os serviços de varejo e distribuição de bens em saúde.

Apesar da variedade de instituições, organizações e agentes vinculados à saúde, de bases tecnológicas distintas, a produção de bens e serviços de informação e conectividade em saúde conflui para mercados fortemente articulados que caracterizam a prestação de serviços de assistência à saúde.

A articulação entre os distintos subsistemas do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, entretanto, vai muito além dos fluxos comerciais e de utilização de serviços durante a realização do atendimento à saúde. O desenvolvimento de inovações e da própria produção de bens e serviços em saúde é marcado por uma forte interação entre os subsistemas do complexo.

VÍDEO: A crise da COVID-19 e a necessidade de um enfoque sistêmico para a inovação

Para entender melhor a característica sistêmica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, assista a videoaula do professor Felipe Kamia: A crise da COVID-19 e a necessidade de um enfoque sistêmico para a inovação.

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Veja exemplos de interações entre os diferentes subsistemas

• Atenção Primária

A atenção primária apresenta um elevado grau de conexão entre os diferentes subsistemas do CEIS. É preciso capacidade de conhecimento, tecnologia e inovação para baratear as ações de saúde, introduzir inovações e gerar conhecimentos que sejam mais acessíveis e muitas vezes até mais simples. É necessário conectar os agentes de saúde que atendem a população com sistemas de saúde via aplicativos destinados à área da saúde. Por outro lado, o uso de Big Data e Inteligência Artificial pode permitir, por exemplo, que decisões importantes sejam tomadas com base em dados coletados e que a ação pública do SUS ocorra antes de emergências sanitárias.

• Revolução 4.0

As novas tecnologias digitais de informação e comunicação (conhecidas como Revolução 4.0), em convergência com as ciências da vida, atingem de forma transversal a saúde. As tecnologias de comunicação e conectividade passam a fazer parte do processo de desenvolvimento de vacinas e medicamentos, dos equipamentos e da atenção primária, da vigilância assentada em inteligência artificial e grandes bases de dados. O SUS não terá sustentabilidade se não lidar com o contexto nacional e global de transformações científicas e tecnológicas.

• Inovação nos hospitais

Os hospitais são agentes fundamentais para o desenvolvimento de inovações em saúde. Grande parte dos ensaios clínicos realizados no desenvolvimento de novos medicamentos e intervenções em saúde são realizados em hospitais. Adicionalmente, a prática clínica é fundamental tanto para evidenciar efeitos colaterais não observados nos testes clínicos como para encontrar novos usos para soluções desenvolvidas.

• Plano de expansão da radioterapia no SUS

O plano de expansão da radioterapia no SUS, por meio da centralização das compras dos equipamentos pelo governo federal, permitiu a instalação de uma fábrica de aceleradores lineares no território nacional e qualificação de recursos humanos no setor, gerando emprego de qualidade, renda e desenvolvimento, ao mesmo tempo em que ampliou o acesso.

Do ponto de vista institucional, as múltiplas atividades produtivas do Complexo Econômico-Industrial da Saúde se organizam por meio de diversas políticas, programas, protocolos e ações cujas decisões, implícita ou explicitamente, condicionam práticas, serviços e produtos.

• Perspectiva Sistêmica

O conceito de sistema pode ser definido como um “conjunto ou arranjo de componentes relacionados ou conectados de forma produzir um conjunto orgânico ou uma unidade” (Carlson et al.,2003). As palavras totalidade e estrutura também são utilizadas para se referir a sistemas. Uma característica essencial do sistema é que não pode ser reduzido à soma total de seus componentes, dado que é constituído também pela forma como os componentes são arranjados ou estão relacionados.

A perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde é sistêmica porque considera que transformações na dinâmica de uma atividade ou subsistema provocam alterações na dinâmica de outras atividades ou subsistemas do complexo.

A perspectiva sistêmica da saúde deveria ser uma decorrência natural da visão da saúde coletiva, já que o sistema de saúde não pode ser pensado simplesmente como uma soma dos níveis de atenção à saúde.

Se o SUS é pensado como sistema, sua base material, de produção de bens, serviços e conhecimentos, também deve ser analisada de modo sistêmico para captar as interdependências e interações com o sistema de saúde. Restringir o tema da base produtiva aos “insumos em saúde” significa, inadvertidamente, assumir uma inaceitável relação em que o “produto” industrial é o “insumo” e a saúde - ou mesmo os serviços - o seu resultado natural.

Dessa forma, também é necessário um enfoque sistêmico para tratar a base material de produção e inovação em saúde, levando em conta o papel da política, das instituições, da sociedade e o papel do Estado para organizar os sistemas de saúde. Restringir o tema da base produtiva apenas à geração de novos produtos e serviços oriundos do processo de geração de conhecimento em instituições científicas e tecnológicas significa, implicitamente, entender que a translação do conhecimento científico e tecnológico para novos produtos e serviços em saúde é neutro e isento de interesses.

A lógica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde permite captar a interface entre os sistemas nacionais de saúde e os sistemas nacionais de inovação. Assim, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde constitui a arena central na qual a tensão entre os interesses do capital e os sociais se concretizam na saúde.

Ao integrar a base produtiva e de inovação em saúde com a organização dos sistemas de saúde de forma sistêmica, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde torna-se o espaço translacional concreto onde a geração de conhecimento, o desenvolvimento de inovações em saúde e o processo de incorporação tecnológica se conectam aos sistemas de saúde, podendo gerar, uma maior concentração e segmentação do acesso, ou mais desenvolvimento e universalização do acesso.

Espaço translacional do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Representação visual do Espaço translacional do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Fonte: Elaboração dos autores, com base em Gadelha (2020)

Evidências apontam que um Complexo Econômico-Industrial da Saúde fortalecido e soberano é condição essencial para garantir a sustentabilidade do SUS. A análise da balança comercial do Complexo Econômico-Industrial da Saúde é uma destas evidências que demonstra que uma base produtiva enfraquecida cria obstáculos para a sustentabilidade do SUS.

Em 2020, Balança Comercial do Complexo Econômico-Industrial da Saúde mostra que, de 2000 a 2021, o déficit quadruplicou, saltando de US$ 5 bilhões para US$ 20 bilhões. No mesmo período, o déficit do subsistema de base química e biotecnológica, da qual fazem parte o setor de fármacos, medicamentos, vacinas e outros, saltou de US$ 4,6 bilhões para US$ 17,6 bilhões, representando mais de 90% do déficit de 2021.

Balança Comercial do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Gráfico representando a Balança Comercial do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, entre 1997 e 2021. No gráfico, a importação tem linha ascendente, o déficit tem linha descendente e a exportanção, uma linha com contínua.

Fonte: Gadelha (2022).

A análise desses dados mostra que a ampliação do acesso à saúde no país ao longo das últimas décadas se deu de forma crescentemente dependente das importações, sem gerar uma ampliação da capacidade produtiva e de inovação dentro do país. Em outras palavras, nos tornamos vulneráveis do ponto de vista da tecnologia em saúde, que é fortemente baseada em conhecimento científico e tecnológico.

Outra evidência da dependência tecnológica pode ser visualizada por meio da análise dos depósitos de patente no mundo. Os indicadores de patentes refletem o perfil produtivo tecnológico do futuro. Se as patentes estão concentradas no atual contexto, significa que a concentração e as assimetrias produtivas e tecnológicas para enfrentar desafios futuros aumentarão, restringindo nossa capacidade de enfrentar os desafios da saúde no futuro (novos tratamentos para doenças crônicas, novas vacinas para doenças infecciosas emergentes, novas tecnologias de vigilância sanitária, etc.).

Dados de patentes na área da saúde mostram que apenas dez países concentram 88% das patentes em saúde, evidenciando a tendência de aumento das assimetrias no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e uma fragilidade ainda maior para o futuro.

PARA SABER MAIS: Assimetrias tecnológicas globais

Fonte: Scielo.

Para saber mais sobre as assimetrias tecnológicas globais, leia o artigo Transformações e assimetrias tecnológicas globais: estratégia de desenvolvimento e desafios estruturais para o Sistema Único de Saúde.

Pandemia de COVID-19: os efeitos da dependência nacional de insumos e serviços em saúde

A pandemia de COVID-19 configura-se, até o momento, como o maior desafio enfrentado pela humanidade no século XXI. A frase do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, é emblemática para entendermos como a COVID-19 mostrou vulnerabilidades estruturais que dificultaram o combate à pandemia no Brasil e no mundo.

“A COVID-19 é como uma radiografia que revelou fraturas no frágil esqueleto das sociedades que construímos e que por toda parte está trazendo as falácias e falsidades à luz. A mentira de que o livre mercado pode proporcionar assistência sanitária para todos;A ficção de que o trabalho de cuidados não remunerado não é trabalho;O engano de que vivemos em um mundo pós-racista;O mito de que estamos todos no mesmo barco” - António Guterres, Secretário Geral da ONU

O enfrentamento da COVID-19 demonstra como a realização da atenção em saúde depende de uma base material que envolve um conjunto de setores:

  • Os dados coletados nos diferentes estabelecimentos de atenção à saúde (incluindo o trabalho dos agentes comunitários de saúde na atenção básica) são fontes de dados primordiais para que os serviços de vigilância epidemiológica possam identificar novos focos de emergenciais da doença, envolvendo uma articulação entre atividades do subsistema de serviços de atenção à saúde e serviços de informação e conectividade.

  • Para conter a transmissão do vírus, foi necessário ampliar de forma considerável a oferta de equipamentos de proteção individual (EPIs) e material de higiene e limpeza.

  • A confirmação de casos de COVID-19, por sua vez, depende da execução de testes por profissionais de saúde (subsistema de serviços), com uso de testes de diagnóstico (subsistema de base química e tecnológica), processados em equipamentos laboratoriais (subsistema de base mecânica, eletrônica e de materiais).

  • Em casos de agravamento do quadro clínico, os pacientes infectados com COVID-19 precisaram ser internados em Unidades de Tratamento Intensivo (subsistema de serviços de atenção à saúde). O tratamento envolve a utilização de equipamentos de ventilação, medicamentos, insumos hospitalares e muitos outros produtos desenvolvidos nos demais subsistemas.

Todo esse conjunto de medidas demandam uma elevada capacidade de coordenação do setor público para articular as diversas necessidades do sistema de saúde, especialmente com o bloqueio das exportações de bens e produtos essenciais por diversos países, inclusive os mais desenvolvidos, para o combate à pandemia.

Para PENSAR

A ausência de equipamentos de proteção individual, testes de diagnóstico, ventiladores, leitos, kits de intubação, vacinas e outros itens necessários durante a pandemia é um problema econômico ou social? Ou os dois?

A dependência produtiva e tecnológica em saúde é uma expressão econômica da vulnerabilidade estrutural do SUS. A falta/escassez de produtos e tecnologias de saúde no país implica em restrições à capacidade de garantir o acesso a saúde no país. O mapa abaixo traz mais um exemplo dessa lógica. O mapa apresenta os países que restringiram a exportação de produtos essenciais para o combate a pandemia. Como a demanda global por alguns produtos era maior que a oferta global, diversos países implementaram políticas para direcionar a produção local para o abastecimento interno de sua população. O outro lado dessa decisão, no entanto, é que os países sem capacidade de produção local ficaram sem acesso aos mesmos produtos no mercado internacional, criando graves vulnerabilidades em seus sistemas de saúde. Este é um exemplo do prejuízo causado pela dependência externa de produtos e serviços em saúde.

Mapa do bloqueio das exportações de bens e produtos essenciais para o combate à pandemia

Mapa do bloqueio das exportações de bens e produtos essenciais para o combate à pandemia. No mapa à dois tons de cinza, o mais claro são os que praticaram as medidas protecionistas em execução total ou parcial pelo menos até outubro de 2020, e o cinza mais escuro são os que praticaram medidas protecionistas, mas já as tinham suspendido completamente até outubro de 2020. No total 9,2 jurisdições, sendo 89 países e três blocos comerciais (União Europeia, União Aduaneira da África Austral e União Econômica Eurasiática) barraram exportações de dispositivos médicos e medicamentos em algum período de 2020.

Fonte: Fonte: Gadelha et al. (2021). Adaptação de Global Trade Alert (2020).

A pandemia mostrou que a sustentabilidade e resiliência dos sistemas de saúde estavam intrinsecamente relacionadas à capacidade de coordenar e mobilizar esforços, especialmente da base produtiva, tecnológica e de inovação em saúde, demonstrando que:

  • A fragilidade e a dependência externa do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) se impôs como um grande problema de saúde pública para o Brasil, deixando clara a interdependência entre as dimensões econômica e social do desenvolvimento.

  • A capacidade de mobilizar a base material da saúde, que possui alta complexidade e envolve de forma sistêmica diversas indústrias e serviços, é fundamental para a garantia do direito à vida no país.

É preciso que as políticas de saúde articulem a capacidade tecnológica, de inovação e produção com o compromisso com o acesso universal, sem deixar ninguém para trás.

A Fiocruz e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde na pandemia

O enfrentamento a pandemia de COVID-19 no Brasil contou com a atuação decisiva de instituições públicas de ciência e tecnologia, em particular a Fiocruz, o Instituto Butantan e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Foi feito um processo de Encomenda Tecnológica (ETEC) inovador e de grande relevância para os países em desenvolvimento. O processo foi considerado a mais rápida transferência de tecnologia de todo ciclo produtivo, do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) à vacina com produção 100% nacional. Neste sentido, o Brasil avançou, de modo importante em sua soberania nesta área, incluindo a capacidade para o desenvolvimento de novas vacinas em uma plataforma de terceira geração.

Em apenas 50 dias, a Fiocruz construiu e colocou em operação a segunda maior UTI do país dedicada à COVID-19, com 195 leitos, uma estrutura que permanecerá como um legado para o Sistema Único de Saúde (SUS) na atenção às doenças infecciosas. O primeiro teste molecular RT-PCR entregue pela Fiocruz ao Ministério da Saúde ocorreu em março de 2020, com um intervalo de apenas 8 dias após o primeiro caso de coronavírus detectado no País. A Fiocruz produziu mais de 21 milhões de kits e realizou mais de 9,7 milhões de diagnósticos RT-PCR, o que corresponde a 33% de todos os testes PCR realizados pela rede pública de laboratórios em território nacional.

Essas informações e mais conteúdo sobre o assunto estão no Relatório Balanço de Gestão/ Atuação da Fiocruz na pandemia 2020-2022.

A pandemia também evidenciou o acerto de uma trajetória de políticas públicas inovadoras, amparadas por um marco regulatório que permitiu o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no passado recente.

O Brasil só foi capaz de produzir as vacinas para COVID-19, em território nacional, porque promoveu políticas públicas no passado que articularam a capacitação de produção de vacinas em instituições de ICTs públicas como a Fiocruz e o Butantan, com a gestão ao acesso às vacinas no maior programa de vacinação pública do mundo, o Programa Nacional de Imunização (PNI) do SUS. Ao mesmo tempo, promoveu avanços no marco legal da ciência, tecnologia e inovação que sustentavam a realização de políticas desse tipo.

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde e as políticas para o fortalecimento do SUS

O conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde possibilita perceber a existência de um ambiente econômico, político e institucional em saúde que permite caracterizar mercados fortemente interligados e interdependentes. Portanto, os mercados e atividades que fazem parte do Complexo Econômico-Industrial da Saúde podem ser coordenados para induzir a geração de inovações em saúde que satisfaçam as necessidades humanas e gerem desenvolvimento social, econômico e ambiental.

Com base no desenvolvimento desse marco teórico, foi possível desenvolver, ao longo dos anos 2000, um conjunto de ações que possibilitaram a construção de uma política industrial e de inovação para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde verdadeiramente sistêmica, orientada a atender os interesses da sociedade.

Entre 2003 e 2015, foi possível construir uma institucionalidade importante para conceber e implementar políticas de apoio aos setores do Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

PARA SABER MAIS

Para saber mais sobre as Políticas de apoio aos setores do Complexo Econômico- industrial da Saúde, leia o artigo Soberania em saúde para garantia do acesso universal: o CEIS na política pública para a sociedade, do livro Saúde é Desenvolvimento: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde como opção estratégica nacional.

Você pode acessar o livro no site do Centro de Estudos Estratégicos Fiocruz ou baixar aqui.

Um dos elementos mais inovadores dessas políticas industriais foi a subordinação da política industrial e de inovação pelo Ministério da Saúde, permitindo que a política de desenvolvimento econômico fosse direcionada às necessidades do SUS.

Abordagem Sistêmica para a Política Industrial e de Inovação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Organograma laranja sobre a Abordagem Sistêmica para a Política Industrial e de Inovação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. No centro está escrito “Acesso universal, sustentabilidade, produção e inovação”, ao redor do título no centro tem 8 quadrados, cada um que um tema escrito nele. O primeiro no topo é “Política econômica”, do lado direito é a “Indução, financiamento, estímulos”, seguindo para “Política comercial”, “Educação”, “Estabilidade institucional para produção e inovação”, “Ciência, tecnologia e inovação”, “Regulação” e por último “Poder de compra do estado”.

Fonte: Gadelha et al (2022).

Através desse desenho inovador, foi possível articular as políticas comerciais de compras públicas, de financiamento, propriedade intelectual, suporte tecnológico, regulação sanitária e outras para induzir inovações orientadas ao Acesso Universal no âmbito do SUS.

Um dos exemplos de política pública inovadora no período citado é o das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). As PDPs são parcerias entre instituições públicas e empresas privadas destinadas a atender a demanda por produtos considerados estratégicos para o SUS. A centralização de compra pelo poder federal para viabilizar estas parcerias confere ao Estado brasileiro grande poder de barganha para mitigar a dependência tecnológica de produtos estrangeiros.

A imensa demanda do SUS se converte em um incentivo para a cooperação tecnológica entre a instituição pública e a empresa privada e adicionalmente, permite uma redução nos preços praticados no mercado. Entre 2011 e 2016, as PDPs permitiram uma economia de R$ 4,5 bilhões para o Ministério da Saúde.

De acordo com a PDP, o Ministério da Saúde garante uma demanda estável de fornecimento do produto estratégico aos parceiros da PDP, que pode variar de 25% a 100%. Em contrapartida, o parceiro deve transferir integralmente a tecnologia para a instituição pública durante o período da PDP.

A transferência de tecnologias para produtores nacionais, por sua vez, permite internalizar plataformas tecnológicas estratégicas e aumenta as capacitações locais, permitindo a redução da dependência externa do SUS. Segundo a definição de inovação adotada nos principais manuais internacionais (Manual de OSLO, Manual de Bogotá), as PDPs podem ser caracterizadas como encomendas tecnológicas e geram inovações para o contexto nacional.

Modelo de articulação produtiva e tecnológica pautado pelas necessidades sociais: PDP e Etec

Diagrama do Modelo de articulação produtiva e tecnológica pautado pelas necessidades sociais: PDP e Etec, são quatro setas que formam um triângulo, a primeira começa no Ministério da Saúde, a outra ponta da seta está em Instituições Públicas e entre as duas está Encomenda Tecnológica (PDP e Etec), a partir do Ministério da Saúde segue outra seta apontando para Empresas Privadas, entre as duas há Processos Rotineiros de Compras (operações comerciais sem conhecimento e tecnologia), a partir de Empresas Privadas tem uma seta que aponta para ICT's Parques Tecnológicos, entre os dois tem Parcerias Tecnológicas, e entre os ICT's e Instituições Públicas há uma pequena seta com o título de Encomendas Tecnológicas.

Fonte: GADELHA et al. (2021), p. 294.

Veja exemplos de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo

• Exemplo 1 - Medicamento Tacrolimo

O Tracolimo é um medicamento imunossupressor de uso contínuo que evita a rejeição de órgãos transplantados (fígado ou rim). No Brasil, mais de 30 mil pacientes fazem uso do medicamento. A PDP realizada com o laboratório LIBBS permitiu que o Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos/Fiocruz) internalizasse a produção do produto. Em 2019, Farmanguinhos garantiu a produção de 90 milhões de doses para suprir a falta momentânea do produto no Sistema Único de Saúde (SUS). Adicionalmente, a PDP permitiu uma economia de quase R$ 1 bilhão em cinco anos para o setor público.

• Exemplo 2 - Vacina COVISHIELD

O Brasil foi capaz de produzir vacinas para a COVID-19 porque a Fiocruz e o Butantan desenvolveram ao longo de sua história a capacidade tecnológica para absorver tecnologia e para construir processos de gestão que possibilitaram parcerias com o setor privado. Destaca-se também o ambiente de segurança jurídica conquistada a partir da promulgação do marco legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, que viabilizou a aplicação de instrumentos capazes de garantir a compra pública de risco tecnológico como o realizado na encomenda tecnológica (ETEC) da vacina Oxford - Astrazeneca, posteriormente registrada como produto nacional pela Fiocruz, como consequência do processo de transferência de tecnologia.

VÍDEO: Gestão da inovação em saúde no contexto do novo marco regulatório de CT&I

Para compreender os avanços no marco regulatório de ciência, tecnologia e inovação que deram suporte às políticas públicas discutidas, assista à videoaula da professora Karla Montenegro.

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O Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a sustentabilidade do SUS diante da 4ª Revolução Tecnológica

O Brasil está inserido em um contexto nacional e global de profundas transformações sociais, tecnológicas e econômicas que terão impacto decisivo para os sistemas de bem-estar social e, em particular, para a área da saúde e para o SUS.

O Brasil deve vivenciar nos próximos anos profundas mudanças demográficas e epidemiológicas. O predomínio de doenças crônicas deve se manter, mas as doenças transmissíveis devem continuar a ter uma presença central nas condições de saúde, especialmente frente ao quadro das transformações ambientais. Adicionalmente, mantidas as tendências atuais, a violência e outras causas externas continuarão relevantes, pressionando nosso sistema de saúde. Portanto, o cenário da saúde no século XXI deve se caracterizar por uma crescente complexidade epidemiológica.

Ao mesmo tempo, podemos observar uma escalada vertiginosa da interconectividade com a quarta revolução tecnológica. O avanço da 4ª revolução tecnológica e de suas tecnologias pervasivas tem na saúde um espaço privilegiado de desenvolvimento e de interação, trazendo enormes ameaças e potencialidades para o cuidado e o acesso universal.

Mantendo a perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, de visualizar a inovação como um processo de transformação política, econômica e social, será essencial compreender como as transformações tecnológicas em curso impactam a produção, inovação e o consumo em saúde, condicionando o cuidado e o acesso universal.

O progresso tecnológico tem potencial para aprimorar de forma expressiva a qualidade de vida. É possível construirmos uma vigilância epidemiológica mais inteligente, desenvolver tecnologias digitais para ampliar as ferramentas dos profissionais de saúde da atenção primária, aprimorar a atenção de alta complexidade com uso da genômica, entre outras possibilidades. Entretanto, a 4ª revolução tecnológica carrega o risco da hipertecnificação e de ampliar a segmentação do cuidado à saúde, reduzindo o espaço para uma visão coletiva da saúde baseada na solidariedade.

A ciência, a tecnologia e a inovação não são neutras. Segundo a perspectiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, a direção da inovação é dada pelo padrão de desenvolvimento adotado pela sociedade. Portanto, o progresso tecnológico pode gerar benefícios, mas também aumentar a fragmentação, a exclusão e a desigualdade, dependendo da forma como as tecnologias forem incorporadas.

Impactos da 4ª revolução tecnológica sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Organograma sobre os Impactos da 4ª revolução tecnológica sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde. No organograma um círculo foi formado pelas palavras: Manufatura Aditiva, Nanotecnologia, Biotecnologia, Inteligência Artificial, Edição Genética, Big Data, Internet das coisas. Dentro do círculo no topo está a Geração de conhecimento - Instituições Científicas e Tecnológicas, uma seta vertical liga esse título à Complexo Econômico-Industrial da Saúde, abaixo tem uma seta horizontal que liga Setores Industriais ao Serviço de Saúde, seguindo do Complexo Econômico-Industrial da saúde com uma seta para baixo tem a Inovação, Incorporação Tecnológica, por último seguindo para baixo o Desenvolvimento Econômico e Social.

Fonte: GADELHA (2021).

Outros exemplos da quarta revolução tecnológica em saúde são:

  • Inteligência Artificial (IA) - para auxiliar o diagnóstico precoce de doenças

  • Robotização - para maior precisão em cirurgias mediadas por robô

  • Telecirurgia (Robotização + Telemedicina) - para procedimentos realizados por meio de robôs e com participação de profissionais fisicamente distantes

  • Adesivos e aplicativos aderentes ou acoplados ao corpo (“tecnologia vestível”) - para várias medições e monitoramentos em saúde

PARA SABER MAIS: Veja um exemplo de tecnologia vestível

Os aparelhos de medição de glicose, geralmente, são desenvolvidos por empresas farmacêuticas, combinando conhecimentos de base química e biotecnológica com os de base mecânica, eletrônica e de materiais.

As últimas versões têm incorporado sensores para leitura não invasiva, monitoramento constante e transmissão dos dados remotamente para equipes de saúde.

A 4ª revolução tecnológica torna as fronteiras entre os campos do conhecimento, entre o mundo biológico e o material, e entre os setores relacionados à produção de bens e serviços para a saúde cada vez menos visíveis, provocando uma radicalização do caráter sistêmico da saúde. Adicionalmente, o desenvolvimento de inovações se torna cada vez mais complexo e acelerado, levando ao aumento da distância tecnológica e da base de conhecimento entre os países.

As transformações em andamento possuem o potencial de transformar radicalmente a saúde, tanto em sua base social como produtiva, revelando novos desafios para a discussão da relação entre desenvolvimento e saúde no contexto capitalista. A compreensão desses fenômenos é vital para pensarmos uma nova geração de políticas públicas que sejam sistêmicas, estruturantes, eficazes e eficientes que aproveitem as possibilidades dos novos paradigmas para promover a sustentabilidade do SUS. Nesse esforço, é vital a aproximação dos distintos campos dos saberes.

“Relegar a direção das transformações [da 4ª Revolução Tecnológica] apenas a uma lógica mercantil fragmentada, significa, de um lado, perder efetividade nas políticas de desenvolvimento econômico e tecnológico em saúde e, de outro lado, perpetuar apenas um padrão compensatório - quando possível - de políticas públicas em saúde, que reforça a segmentação da sociedade”

(extrato do artigo O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0: por uma visão integrada do desenvolvimento econômico, social e ambiental, página 30).

PARA SABER MAIS: Sistemas de reconhecimento de imagens e a reprodução de assimetrias entre países

Estudo do laboratório de inovação do Facebook revelou que os algoritmos de reconhecimento de imagens têm mais dificuldade em interpretar itens de consumo comuns dos países de baixa renda. O percentual de erro aumenta conforme a renda das famílias diminui. O estudo aponta que a maioria dos desenvolvedores desses algoritmos são brancos, com elevado nível educacional e oriundos de países de renda alta e que, portanto, os algoritmos apresentam restrições geográficas e dificuldade para reconhecer diferenças culturais.

O resultado para o reconhecimento de imagens para sabão em barra, mais comuns nos países em desenvolvimento, e de sabão líquido, comum em países de renda alta é um exemplo. Enquanto a maior parte dos algoritmos foi capaz de reconhecer com sucesso o sabão líquido, nenhum foi capaz de reconhecer o sabão em barra.

O exemplo simples mostra o risco da adoção indiscriminada de tecnologias desenvolvidas fora do contexto de sua aplicação e aponta para necessidade de construção de base sólida de conhecimento em tecnologias 4.0 no país para utilização de tecnologias voltadas para realidade e necessidade da população.

Foto de um sabonete líquido dentro de um vidro de plástico em cima da pia.
O que é de fato: sabão / UK (renda per capita 1890 $/mês)

Sistemas de reconhecimento de imagem e o que eles identificaram

Azure: banheiro, design, arte, pia

Clarifai: pessoas, torneira, sanitários, lavatório, lavanderia

Google: produto, líquido, água, fluido, acessório de banheiro

Amazon: pia, dentro de casa, garrafa, torneira de pia

Watson: tanque de gás, tanque de armazenamento, sanitário, dosador, dosador de sabão

Tencent: loção, saboneteira, dispensador de sabão, dispensador, pós-barba

Foto de um porta sabonete com dois sabonetes, um laranja e um verde e uma bucha.

Fonte: Facebook AI Development Lab, apud Gadelha et al (2022, no prelo).

O que é de fato: sabão / Nepal (renda per capita 288$/mês)

Sistemas de reconhecimento de imagem e o que eles identificaram

Azure: comida, queijo, pão, bolo, sanduíche

Clarifai: comida, madeira, culinária, deliciosa, saudável

Google: comida, prato, culinária, comfort food, spam

Amazon: comida, confeitaria, doces, hambúrguer

Watson: alimentos, produtos alimentícios, açafrão, tempero

Tencent: comida, prato, matéria, fast food, nutrição

Fortalecer o SUS e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde como saída para a crise sanitária, social, econômica e ambiental

“O Futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo”

Paulo Freire

VÍDEO: Saúde como vetor para sair da crise

Para compreender o complexo Econômico-Industrial da Saúde como ser um vetor importante para enfrentamento da crise social, econômica e ambiental, veja vídeoaula Saúde como vetor para sair da crise.

Transcrição

Compreender a saúde como desenvolvimento nos permite visualizar que o Complexo Econômico-Industrial da Saúde é um sistema econômico, produtivo e tecnológico, com elevado dinamismo e alto impacto social. A saúde representa 9% do produto interno bruto (PIB); 9% dos empregos formais; 1/3 do esforço de pesquisa do País; e é uma das principais áreas de inovação tecnológica.

Através do estudo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde foi possível compreender que uma base de ciência, tecnologia, inovação e produção em saúde sólida, capaz de identificar e responder às demandas da sociedade brasileira é fundamental para garantir a sustentabilidade do direito ao acesso universal, equânime e integral à saúde pelo SUS.

De forma inversa, podemos pensar um padrão de desenvolvimento com objetivo de garantir a concretização do acesso universal, equânime e integral à saúde pelo SUS, por meio de políticas que promovam o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Adotar um projeto de desenvolvimento que vincule as políticas públicas na área da saúde com o fortalecimento da base de geração de conhecimento, produção e inovação em saúde, base do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, se mostra uma saída concreta para gerarmos renda e empregos de boa qualidade com a promoção de mais saúde e qualidade de vida para a população.

A construção de um Estado de Bem-estar no Brasil pode se constituir em uma alavanca para promovermos um modelo de desenvolvimento que gere saúde, emprego e proteja o meio ambiente. É necessário desenvolver políticas que relacionem de forma estratégica as questões estruturais do crescimento econômico para enfrentar as enormes desigualdades e carências do País. Como afirma Gadelha, os "direitos sociais não apenas cabem no PIB, mas, ao convertê-los em grandes desafios nacionais, são fontes estruturais de demanda para o setor produtivo e polo de modernização tecnológica do País".

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    Desenvolvimento é saúde

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    Complexo Econômico-Industrial da Saúde

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    Pandemia COVID-19: os efeitos da dependência nacional de insumos e serviços em saúde

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    O Complexo Econômico-Industrial da Saúde e as políticas para o fortalecimento do SUS

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    Fortalecer o SUS e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde como saída para a crise sanitária, social, econômica e ambiental

REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS:

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GADELHA, C. A. G.; TEMPORÃO, J. G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1891-902, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/vBqrtdjpbqDjh9ZBTycxyrj/?format=pdf&lang=pt

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