Módulo 5 | Aula 1 Normas e legislações vigentes relacionadas ao enfrentamento do estigma, da discriminação e das legislações discriminatórias

Tópico 1

SUS e os direitos cidadãos

Na Constituição Federal de 1988, na Seção II – Da Saúde, o Artigo 196 diz: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A luta pelo direito à saúde de forma ampla foi uma conquista que começou no período da redemocratização brasileira, principalmente pelo Movimento da Reforma Sanitária (com médicos e profissionais da saúde). Um marco importante desse movimento foi a participação de diversos atores na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, presidida por Sérgio Arouca (presidente da Fiocruz na época) e que abordou temas importantes, como:

  1. Saúde como direito.
  2. Reformulação do Sistema Nacional de Saúde.
  3. Financiamento setorial.

As discussões na 8ª CNS, em conjunto com a sociedade civil e políticos, serviram de base para o debate sobre a saúde na Assembleia Constituinte, para a criação do SUS e foram incorporadas à Constituição Federal. Esse contexto democrático buscou um estado de bem-estar social, transformando a saúde como um direito à cidadania, dando origem a criação de um sistema de saúde público, universal e descentralizado.

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Você sabia que antes do SUS, somente aqueles que trabalhavam formalmente e contribuíam com a Previdência Social conseguiam acesso ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), deixando milhões de brasileiros desassistidos, que contavam com a assistência das Santas Casas de Misericórdia? Veja o vídeo do PenseSUS sobre o “Direito à saúde” com a professora Lígia Bahia (IESC/UFRJ):

Ícone de balança

A partir da vitória do direito constitucional à saúde, foi criada a Lei Nº 8.080, de 1990, chamada de “Lei Orgânica da Saúde”, que abordou as condições para promoção, proteção e reocupação para a saúde dos brasileiros, como a organização e funcionamento dos serviços. No mesmo ano foi sancionada a Lei Nº 8.142, que garantiu a estrutura e financiamento do novo sistema de saúde (Municipal, Estadual e Federal), além da participação comunitária em sua gestão.

A criação e a estruturação do SUS foi concretizada a partir da Constituição Federal e de diversas Leis, Normas Operacionais Básicas (NOBs), Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS), Programas, Comissões, Planos, Pactos, Emendas Constitucionais, entre outros.

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Para entender melhor o processo de concepção do nosso sistema de saúde, assista ao vídeo:

Veja todos os princípios na Lei Nº 8.080:

A Cartilha “O SUS pode ser seu melhor plano de saúde” indica que o sistema deve garantir três princípios. Clique nos cards para saber mais.

Universalidade

É universal, porque deve atender a todos, sem distinção, de acordo com suas necessidades; e sem cobrar nada, sem levar em conta o poder aquisitivo ou se a pessoa contribui ou não com a Previdência Social.

Integralidade

É integral, pois a saúde da pessoa não pode ser dividida e deve ser tratada como um todo. As ações de saúde devem estar voltadas para o indivíduo e para a comunidade e para a prevenção e o tratamento, sempre respeitando a dignidade humana.

Equidade

Garante equidade, pois deve oferecer os recursos de saúde de acordo com as necessidades de cada um, ou seja, dar mais para quem mais precisa.

Ilustração de multidão

Segundo a “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde” – CNS, lançada em 2009 e atualizada em 2017, “É direito da pessoa, na rede de serviço de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação. Assim, é direito dos cidadãos ter um atendimento sem restrição/negação em função de diversos fatores, como: “idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência”.

Material complementar

Aqui, você encontrará um vídeo com os princípios do SUS e poderá acessar a Carta dos Direitos e Deveres da Pessoa Usuária da Saúde na íntegra.

Participação e controle social no SUS

A Constituição Federal de 1988 já previa (Artigo 198, Inciso III) a participação da comunidade na gestão do novo sistema de saúde. A Lei Nº 8.080/1990 reafirma a “participação comunitária”, mas foi a Lei Nº 8.142/1990 que especificou a participação comunitária na gestão do SUS e nos recursos para o financiamento da saúde, sendo citadas algumas instâncias colegiadas, como:

Conferência de Saúde

A Conferência de Saúde deverá se reunir a cada quatro anos com representantes de vários segmentos sociais para avaliar a situação de saúde e propor diretrizes para a formulação de políticas de saúde em diversos níveis.

Conselho de Saúde

O Conselho de Saúde possui caráter permanente e deliberativo, sendo um órgão colegiado e com representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. Tem por princípio atuar na formulação de estratégias e nas políticas de saúde (controle da execução), como em suas instâncias correspondentes (aspectos econômicos e financeiros).

As Conferências e Conselhos de Saúde são espaços importantes para o exercício da participação e controle social nas políticas de saúde no país. São organismos democráticos em que a sociedade protege o direito à saúde dos brasileiros e fiscaliza os recursos financeiros do setor, seja no âmbito Federal, Estadual e Municipal, com seus respectivos conselhos.

Os conselheiros devem ser representados por: 50% de usuários; 25% de representantes do governo/prestadores de serviço de saúde e 25% de profissionais de saúde. Atualmente o Conselho Nacional de Saúde conta com 48 conselheiros (titulares e suplentes), com eleições a cada três anos; veja a distribuição dos seus representantes:

Conselho Nacional de Saúde
Conselho Nacional de Saúde.
Material complementar

Lei Nº 8.142/1990 em:

Publicação “Para entender o Controle Social na Saúde”

Vídeo do PenseSUS sobre os “Desafios para participação social em saúde”:

Informação e transparência

A “Carta dos Direitos e Deveres da Pessoa Usuária da Saúde” foi distribuída e divulgada para popularizar o acesso à informação aos usuários do SUS. Pensada de forma didática, teve como base a Constituição Federal e as leis que implementaram o novo sistema de saúde, indicando, entre outros, o direito dos usuários de:

  • Obter informações sobre o seu estado de saúde de forma objetiva, respeitosa e compreensível, sendo repassada adequadamente;
  • Ter o sigilo e a confidencialidade de suas informações pessoais (mesmo após a morte), com exceção dos casos que podem ter risco à saúde pública (como na pandemia de Covid-19);
  • Ter acesso ao conteúdo do seu prontuário e com fornecimento de cópia para os casos que precisam de encaminhamento ou de mudança de domicílio, além de laudo/relatório/atestado de sua situação de saúde;
  • Conseguir informações claras para a compreensão de qualquer pessoa.

No SUS, a busca por informações pode garantir o acesso dos cidadãos aos serviços de saúde e desenvolver a capacidade de identificar as portas de entrada disponíveis (atenção primária, secundária e terciária). O direito ao sigilo do diagnóstico deve ser respeitado pelos profissionais de saúde.

A manutenção do sigilo pode estimular o vínculo entre profissional de saúde e paciente, beneficiando a adesão ao tratamento e a tomada de decisão de forma autônoma (sem expor a vida pessoal do usuário).

Ícone de luta contra HIV

O sigilo cabe a todos que trabalham nos serviços de saúde: médicos, enfermeiros, técnicos, agentes comunitários de saúde e os que têm acesso ao prontuário, como arquivistas, auditores etc. A quebra do sigilo do diagnóstico, em diversas enfermidades, pode levar ao estigma e à discriminação, principalmente quando ocorre em serviços próximos da residência dos usuários, como no caso da Atenção Básica.

A questão do sigilo torna-se frágil pela necessidade de outros profissionais de saúde utilizarem ou checarem os dados dos usuários durante o atendimento. Como abordado no primeiro módulo, o processo de estigmatização de determinadas doenças pode ser construído a partir da percepção equivocada do comportamento das pessoas.

Ícone de arquivos confidenciais

No caso de HIV/Aids o estigma relacionado às pessoas infectadas está vinculado a diversos marcadores sociais, ou intersecção de fatores, como: homofobia; rejeição aos usuários de drogas e às pessoas que praticam sexo por dinheiro; pertencimento a determinada classe social e/ou identidade de gênero etc.

Recentemente foi aprovada a Lei Nº 14.289, de 03 de janeiro de 2022, que torna obrigatório o sigilo da condição das pessoas que vivem com HIV, com hepatites crônicas (HBV e HCV), com hanseníase e com tuberculose no âmbito I – dos serviços de saúde; II – dos estabelecimentos de ensino; III – dos locais de trabalho; IV – da administração pública; V – da segurança pública; VI – dos processos judiciais; VII – da mídia escrita e audiovisual.

Material complementar

Lei Nº 14.289/2022

Você sabia que a pessoa que revelar o diagnóstico pode ser enquadrada na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei Nº 13.709/2018 e no Artigo 927 da Lei Nº 10.406/2002 (Código Civil)? Ela pode sofrer uma “pena pecuniária” (pagamento em direito por crime de menor potencial ofensivo) e/ou ter suas atividades suspensas, além da possibilidade de pagar indenização por danos morais à vítima.

Outro exemplo é a Lei Nº 12.984/2014, que protege as pessoas vivendo com HIV/Aids contra a discriminação, contendo dois incisos importantes para os trabalhadores da saúde: “V. divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de Aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade”; “VI. recusar ou retardar atendimento de saúde”. A legislação de proteção é fundamental na descentralização do tratamento e teste de HIV no Brasil.

Saiba mais...

Para saber mais da atuação do proficcional de saúde junto a pacientes com HIV, assista ao vídeo “Profissionais da Saúde e o HIV e a Aids, Parte 01: Estigma, Preconceito e Discriminação”.

E o que essas leis trouxeram como benefícios aos usuários de saúde?

Bom, as leis que garantem o direito ao sigilo de marcas estigmatizantes - como o caso da recente lei 14.289, que torna obrigatório o sigilo da condição das pessoas com HIV, hepatites crônicas (HBV e HCV), hanseníase e tuberculose - são muito relevantes para proteger as pessoas de situações de discriminação, que geram sofrimento. Mas, devemos lembrar que outra maneira importante e efetiva para enfrentar o estigma é a ação política coletiva ilustrada pela atuação de movimentos sociais organizados voltados para a defesa dos direitos das pessoas estigmatizadas.

Várias pessoas apontando os dedos para uma mulher negra, que está sentada, encolhida e cabisbaixa, no centro da imagem e com todos esse braços, mãos e dedos que apontam para ela, ao seu redor.

Essas ações implicam em tornar visível a marca estigmatizante com o propósito de dissociá-la de atributos morais negativos. Ou seja, é possível questionar a relação entre a marca e seus significados desqualificantes a partir de mobilizações coletivas que apostam na sua visibilidade e ressignificação, ao invés do anonimato ou ocultamento desses atributos.

Papel dos profissionais e gestores no cumprimento das normas e divulgação
Logomarca do serviço de ouvidoria do SUS: uma cruz azul com rosto sorridente utiliza um fone de ouvidos com microfone. Abaixo escrito em azul: Ouvidoria SUS.
Fonte: maracaju.ms.gov

A partir dos direitos da população brasileira ao acesso à saúde, cabe aos trabalhadores e gestores da saúde cumprir a regulamentação das leis e normas para a proteção dos usuários dos serviços contra a discriminação (ética profissional).

É igualmente importante divulgar os mecanismos de proteção/denúncia nos serviços de saúde.

Para os trabalhadores da saúde o cumprimento das leis/normas pode ser um exercício diário e um aprendizado em conjunto com os usuários. A escuta ativa e o atendimento humanizado possibilitam entender as queixas e encaminhar as denúncias. O papel desses profissionais é defender os direitos humanos fundamentais dos usuários dos serviços, visando alcançar a equidade. Assim, os trabalhadores da saúde devem se colocar no lugar dos usuários para que possam perceber as suas distintas necessidades.

Fotografia de uma mão de uma pessoa branca, com o desenho de um coração de papel com as cores na horizontal, formando um arco-íris  (vermelho, laranja, amarelo, verde, roxo e azul)
Fonte: freepik.com

Um exemplo de como os direitos de determinadas populações devem ser respeitados é o uso do nome social nos serviços de saúde pela população transsexual regulado pela Portaria Nº 1.820/2009, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Segundo o Artigo 4º, Inciso I da Portaria a pessoa pode se identificar: “[...] pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras formas desrespeitosas ou preconceituosas”. Há também a possibilidade de pedir que no Cartão SUS conste o nome social para as pessoas que não retificaram o nome civil.

Material complementar

Os profissionais de saúde devem garantir o direito da população e agir contra a discriminação. Leia os conteúdos sobre Zero Discriminação nos serviços de saúde.

Para além das intervenções estruturais e culturais, necessárias para o enfrentamento do estigma e da discriminação, no âmbito institucional deve ser criado e estimulado diversos canais de comunicação entre usuários e gestores, como: ouvidorias; linhas telefônicas para orientação; sensibilização dos Conselhos Locais e Municipais de Saúde; espaços para os trabalhadores de saúde discutirem as conexões sobre as formas de discriminação, a produção de desigualdades sociais e pensarem maneiras de enfrentar tais situações.

Para refletir...

Quais estratégias para o cumprimento das normas/legislações contra a discriminação poderiam ser desenvolvidas no serviço de saúde em que trabalha?

Exitem outras “estratégias-chaves” possíveis para a redução do estigma no acesso à saúde.

As diretrizes da Política Nacional de Humanização (PNH), criada em 2003, assinalam a importância da sensibilização das equipes para os preconceitos que podem emergir no âmbito da saúde.

Aprender meios de conscientização sobre estigma e discriminação, como o entendimento de seus danos físicos e/ou psíquicos nas diferentes populações, discutidos nesse curso.

Ensinar aos próprios usuários enquanto sujeitos que podem passar por situações de estigma e/ou discriminação, sobre os seus efeitos para a saúde.

Desafiar preconceitos enraizados na população (combatendo mitos e crenças negativas/erradas) e possibilitar o desenvolvimento de atitudes afirmativas relacionadas às pessoas estigmatizadas e discriminadas.

Apoiar escolas nas necessidades de saúde dos estudantes e auxiliar na implementação de programas que abordem o tema do estigma e da discriminação.

Trabalhar a evitação, o desconforto, a desconfiança e o medo de determinadas populações e estimular intervenções de contato, sobretudo para facilitar as conexões e interações de forma positiva entre os grupos.

Desenvolver estratégias para reduzir tanto o “estigma público” quanto o autoestigma de determinadas populações, a partir de atividades diárias, trabalhando junto com as equipes de saúde (estimulando o não julgamento).

Durante a formulação e implementação das legislações foram criados mecanismos protetivos contra a discriminação para a população geral e grupos específicos. Em outras palavras, o combate à discriminação direta pode ser realizado a partir de medidas positivas (acomodação das diferenças ou ações afirmativas). Por isso, os “critérios proibidos de discriminação” podem ser uma resposta jurídica a distintas situações de discriminação, como a criminalização da discriminação intencional, exemplificada na Lei Nº 12.984/2014, que protege as pessoas vivendo com HIV/Aids contra a discriminação.

Intersetorialidade

A Lei Nº 8.080/1990, no Artigo 12, determina que: “Serão criadas comissões intersetoriais de âmbito nacional, subordinadas ao Conselho Nacional de Saúde, integradas pelos Ministérios e órgãos competentes e entidades representativas da sociedade civil. Parágrafo único. As comissões intersetoriais terão a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não compreendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

A partir dessa lei foram criadas diversas comissões. As Comissões Intersetoriais possuem diversas competências e cada uma é composta por 36 membros que podem ser conselheiros do CNS, especialistas e representantes de instituições de entidades e movimentos sociais.

Saiba mais...

Atualmente existem 18 Comissões Intersetoriais das quais podemos citar algumas a partir do site do CNS (triênio 2019-2022):

  • Comissão Intersetorial de Atenção à Saúde das Pessoas com Deficiência - CIASPD;
  • Comissão Intersetorial de Saúde Indígena - CISI (fundada em 1999);
  • Comissão Intersetorial de Saúde Mental - CISM (fundada em 1999);
  • Comissão Intersetorial de Atenção à Saúde das Pessoas com Patologias - CIASPP (IST-Aids, Tuberculose, Hanseníase e Hepatites Virais).

Algumas Comissões foram encerradas ou aglutinadas em outras Comissões, como:

  • Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra - CISPN;
  • Comissão Intersetorial para Acompanhamento das políticas em DST/Aids - CIAPAIDS;
  • Comissão Intersetorial de Saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - CILGBTT;
  • Comissão Intersetorial de Eliminação da Hanseníase - CIEH.
Para refletir...

Para refletir sobre o tema veja o vídeo “O dia em que o SUS visitou o cidadão”: