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Módulo 2 | Aula 2

letramento racial para trabalhadores do sus

Tópico 1

Branquitude: o lugar do branco nas lutas antirracistas

Vejamos um fato que aconteceu e foi noticiado em fevereiro de 2024, no Brasil, e que é um exemplo interessante para aprofundarmos o conceito do pacto narcísico da branquitude e os seus resultados:

Fonte: Freepik.

Fonte: Freepik.

No cenário temos uma mulher negra, médica neurologista, durante uma consulta virtual com um paciente, homem e branco. De acordo ela, após entrar na sala, o homem saiu e retornou exigindo o número de registro dela no Conselho Regional de Medicina, mesmo o site disponibilizando os dados antes da consulta.

Nessa situação, acreditamos que o outro lado dessa fala do paciente é: uma mulher negra não pode ocupar uma profissão de privilégio - ser médica neurologista.

O pacto narcísico é isso, a dificuldade mesmo de pensar que negros podem ocupar esses cargos, porque a imaginação social que elaboramos e as características esperadas das pessoas que ocupam esses cargos são atributos simbolicamente identificados às pessoas brancas.

Dito de outra forma, ela não poderia adentrar um espaço que pertence aos brancos e, nesta lógica, os brancos estariam vigilantes para se protegerem mutuamente e protegerem este espaço de “elementos estranhos”, que põem em questão o “normal” e “universal” que seria ser atendido por uma médica branca.

Pode ser que você já tenha visto ou ouvido alguma situação parecida, no trabalho ou no cotidiano, e que foi interpretada como “inveja”, “despeito”, “egoísmo”, “falta de educação” ou até um “mal-entendido”. Agora, tente relembrar e pense racialmente as pessoas envolvidas na cena.

  • Será que essa lógica da branquitude se aplicava em tal situação?

  • Você consegue perceber por que é importante identificar esses mecanismos quando eles estão em ação?

Vejamos a seguir o que acontece quando ignoramos os pactos da branquitude nos serviços de Saúde:

Reforçamos as desigualdades que já existem e que contribuem para que o racismo se perpetue como um conjunto de desigualdades cumulativas que são transmitidas de uma geração a outra;

Reforçamos estereótipos que contribuem para incluir um grupo social em um conjunto de atributos e ao mesmo tempo excluí-lo de certos lugares por esses atributos a ele associado;

Colaboramos para a invisibilização de demandas legítimas, bloqueando acessos aos direitos da população negra a uma vida digna;

Estruturamos uma oferta de serviço público a partir de uma postura racialmente neutra que é incapaz de dar conta das necessidades de saúde;

Deixamos de coletar dados e informações que iluminam as desigualdades e, assim, deixamos de promover medidas que encarem essas desigualdades, mesmo que as reconheçamos;

Deixamos de agir continuamente diante de eventos que acarretam adoecimento, morte ou subtração de direitos sociais, individuais e coletivos da população negra.

Discutir branquitude é colocar no centro da análise questões econômicas, políticas, sociais e uma hegemonia que toda vez que é discutida desperta medo, porque, justamente, fala da estrutura societária que foi construída a partir da expropriação de quase quatrocentos anos, com a escravização da força de trabalho indígena e negra.

Fonte: Clay Banks. Unsplash.com.
Fonte: Clay Banks. Unsplash.com.

Logo, como bem afirma a professora Angela Davis: “Não basta apenas não ser racista, é preciso ser antirracista”. E, para isso, é muito importante pensar e implementar práticas/ações antirracistas, principalmente em nossos locais de trabalho.

Ouça o Podcast abaixo e saiba mais acerca da responsabilidade das pessoas brancas para a promoção de diálogos antirracistas e apoio a ações concretas, como movimentos pela igualdade racial. Lembre-se que o movimento antirracista requer o engajamentos de todos os grupos raciais, incluindo aqueles que têm privilégios reconhecidos na sociedade e que historicamente foram beneficiados pela escravidão.

podcast Letramento racial para uma prática antirracista na saúde
Atuação de pessoas brancas na construção de uma atenção à saúde antirracista

[Narradora] - Olá! Vamos iniciar agora o Podcast Letramento Racial no SUS. Nesse episódio, trataremos sobre a atuação de pessoas brancas na construção de uma atenção à saúde antirracista.

Esse Podcast faz parte do Curso de Letramento racial para trabalhadores do SUS, desenvolvido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz.

Eu sou a Mizraim Mesquita e vou trazer algumas reflexões sobre esse assunto para que você consiga compreender a responsabilidade de pessoas brancas em relação ao que o racismo produz na sociedade e à luta antirracista, com destaque para campo da saúde.

Vamos começar nossa conversa resgatando uma notícia publicada no Portal Terra.com.br:

No dia 10 de junho de 2023, no Rio de Janeiro, um homem negro com as duas pernas amputadas, de sonda e fralda, recebeu alta do Hospital Municipal Dom Pedro II. Depois das tentativas frustradas dos profissionais do hospital para conseguirem o contato com a família, o senhor Bernardo foi descartado pelos maqueiros na calçada próxima ao hospital e ficou lá por três horas sem assistência.

Ele contou que a assistente social o informou que não poderia fazer mais nada e que ele precisava sair para que outros pacientes ocupassem o leito.

Depois de toda repercussão que o caso teve, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou que não é dessa forma que a unidade age e que iria apurar os fatos, mas que, por enquanto, alguns funcionários seriam responsabilizados.

Ao ouvir essa notícia, você consegue perceber problemas na conduta dos profissionais?

Você acredita que o fato do senhor Bernardo ser negro influenciou na condução que os profissionais tiveram com ele?

Pensar nessa situação vai nos ajudar a amadurecer as reflexões que propomos neste podcast.

Você já se perguntou o que você tem a ver com o racismo?

Percebe as relações raciais estabelecidas ao seu redor?

Consegue reconhecer que compartilha com ações ou práticas racistas?

Consegue identificar em que posição você está nas relações raciais?

Essas são perguntas difíceis, porque muitas vezes reconhecer o caráter estrutural do racismo pode ser paralisante. E essa nossa conversa vai ser importante principalmente para as pessoas brancas, para aquelas pessoas que de alguma forma, acabam sendo privilegiadas por essas relações.

No Brasil, o branqueamento é frequentemente considerado como um problema das pessoas negras. Acredita-se erroneamente que elas, descontentes e desconfortáveis com sua condição de sujeito negro, procuram identificar-se como brancas, procuram miscigenar-se com brancos para diluir as suas características raciais.

Perceba então que, sob esse ponto de vista, a pessoa branca pouco aparece, exceto como um modelo universal de humanidade, como um ponto de referência, que é alvo da inveja e do desejo de outros grupos raciais não brancos, que são encarados como não tão humanos.

Apesar disso, nós acreditamos que é possível desenvolver uma identidade racial branca não-racista, mas isso depende de a pessoa refletir sobre sua própria branquitude e as implicações culturais, políticas e socioeconômicas de ser branca, definindo uma visão do “eu” branco como um ser racial.

Então, uma das inquietações que pretendemos provocar aqui é convocar as pessoas brancas para a responsabilidade em relação ao que o racismo produz na sociedade. É preciso reconhecer que o racismo é, antes de tudo, uma invenção dos brancos colonizadores, para validar a invasão, domínio, escravização e extermínio de povos, territórios, populações e culturas.

O que queremos reforçar é a importância de as pessoas brancas reconhecerem que vivemos em um país onde impera o mito da democracia racial, que esconde o racismo nosso de cada dia.

Mas, afinal, o que é o mito da democracia racial? Você já ouviu falar disso?

Bom, o mito da democracia racial se refere à ideia equivocada que nos convence a acreditar que brancos e negros têm oportunidades iguais na sociedade.

Essa crença se manifesta em falas comuns do dia a dia, por exemplo: “somos todos brasileiros”, “não existe racismo no Brasil”, “no Brasil não há negros ou brancos, somos todos misturados” ou “somos todos iguais”.

Note que o mito da democracia racial reforça a ideia de harmonização dos povos, mas ao mesmo tempo esconde uma violenta dinâmica de retirada de direitos sociais.

Para que houvesse uma democracia racial de fato, seria preciso ter um país sem racismo, onde a democracia garantisse a igualdade e equidade de direitos para todos os sujeitos, independentemente da cor da pele ou origem étnica.

Mas ao observar cuidadosamente nossa realidade, percebemos que a democracia racial nunca existiu.

Apesar de todos os avanços em relação à construção e implementação de políticas públicas voltadas à promoção da equidade racial, notamos que o racismo persiste na sociedade brasileira, expresso de formas distintas e sofisticadas. Podemos identificar pelo menos cinco fenômenos que impactam no existir dos corpos negros: o genocídio, o encarceramento em massa, a violência obstétrica, a retirada compulsória dos filhos e o suicídio da juventude negra.

No campo da saúde, especificamente, podemos citar também algumas situações em que o preconceito ou as práticas racistas podem se manifestar nos cotidianos dos serviços de saúde, por exemplo:

Quando o profissional profere xingamentos que manifestam hostilidade racial ou endossa esses tratamentos;

Quando o profissional evita ter o contato físico com pessoas negras;

Quando a igualdade de tratamento é negada às pessoas negras e nota-se nitidamente elas sendo abordadas de formas diferentes em relação às pessoas não negras;

Quando a instituição não oferece serviço profissional adequado às pessoas negras;

Quando há desprezo pela vida das pessoas negras, como a banalização da violência que recai sobre elas na sociedade;

Quando há recusa em implantar o quesito raça/cor na coleta dos dados de saúde.

Essas são situações que demonstram a necessidade de haver não apenas um comprometimento pessoal na luta antirracista, mas também um compromisso institucional, para a implementação de uma política de promoção da igualdade racial.

Essa política, para ser eficaz, precisa dimensionar e legitimar as medidas a serem adotadas pela instituição e, ao mesmo tempo, orientar a construção de ações antirracistas, a partir das diretrizes contidas em seus planos, programas e projetos.

Para a implementação dessas políticas, é fundamental a identificação das relações raciais existentes dentro das instituições do Sistema Único de Saúde, o nosso SUS.

Você consegue perceber essas relações se observar, por exemplo:

O perfil dos profissionais. Como são os profissionais de medicina ou de enfermagem nas unidades de saúde em que você trabalha ou que você frequenta? E como são as pessoas que trabalham com os serviços gerais nesses ambientes?;

Você pode observar também o quantitativo e a posição hierárquica de negros e brancos. Quantos são os profissionais de medicina negros nesses ambientes? Quantas pessoas na gestão são negras?;

Podemos observar também as formas de inserção e de mobilidade funcionais. Quais as formas de contratação dos profissionais de medicina nesses lugares? E os profissionais de serviços gerais? Essas pessoas têm possibilidades iguais de evolução da carreira nesses ambientes?;

E podemos notar também a forma como o tema do racismo está presente nas ações realizadas com os usuários do serviço. Há conversas sobre racismo e ações de combate ao racismo nesses ambientes ao longo do ano ou apenas em datas específicas em que, nacionalmente, se dá ênfase a essas temáticas?

É importante que os profissionais que atuam nos serviços de saúde, principalmente na Atenção Primária, reflitam sobre esses questionamentos e pensem sobre a questão racial na instituição.

Uma proposta interessante para isso é a formação de grupos de referência com o objetivo de levar as conversas sobre a temática racial nas ações realizadas no SUS para todos os grupos envolvidos no cuidado em saúde.

Também é importante promover capacitações continuadas sobre as iniquidades raciais e o acompanhamento de situações de discriminação racial, buscando a inclusão das temáticas raça e gênero não somente em projetos específicos, mas sim em todos os projetos desenvolvidos no âmbito das instituições.

Com essas reflexões sobre as quais conversamos até aqui, você consegue pensar em como pessoas brancas podem atuar na construção de uma atenção à saúde antirracista?

Primeiramente, é preciso trabalhar na desconstrução do imaginário de inferioridade da população negra, isto é, afastar aquelas imagens mentais que nos fazem pensar nas pessoas negras sempre atreladas a situações desfavoráveis ou em posições de marginalização. Essa é uma tarefa que os brancos precisam internalizar. Os desafios são muitos, mas abandonar as idealizações e naturalizações racistas é primordial, sobretudo para o antirracismo branco.

O antirracismo branco também tem o papel de identificar e responsabilizar juridicamente a hegemonia da branquitude que se encontra presente em cada ato de discriminação racial vivenciado pela população negra no acesso à saúde.

É somente a partir do reconhecimento dos privilégios da branquitude e da existência de valores voltados à distinção de gêneros que podemos inverter a lógica instaurada, fundada na produção e reprodução das desigualdades sociais e raciais que estruturam as iniquidades em saúde.

Como você pode perceber, e queremos reforçar, as ações da luta antirracista dependem de um conjunto de agências públicas e da sociedade civil, cada uma com suas diferentes responsabilidades diante do enfrentamento ao racismo no trabalho em saúde.

E estamos focando o setor de saúde porque ele tem um papel crucial a ser exercido no enfrentamento ao racismo. A saúde é um direito fundamental do ser humano e, por isso, as abordagens de atenção aos impactos do racismo na saúde devem ser implementadas de forma transversal nas políticas de saúde, com ênfase nas ações voltadas para o bem-estar físico, mental e social.

Essas dimensões são estratégicas para trabalharmos os aspectos conceituais e práticos sobre ações antirracistas na atenção à saúde da população negra.

É indispensável também o compromisso com a garantia da informação sobre saúde da população negra, tanto nas atividades individuais quanto nas atividades em grupo realizadas na Atenção Primária à Saúde, de tal forma que sua atuação possibilite integração e participação ativa das pessoas negras como sujeitos de direito dos serviços.

As ações desenvolvidas pelos profissionais do SUS podem promover espaços privilegiados de enfrentamento do racismo na saúde da população negra.

Para resumir, pensar no papel da pessoa branca na construção de uma atenção à saúde antirracista perpassa por:

Refletir, individualmente e coletivamente, sobre o que se tem feito para ter atitudes antirracistas e direcionadas à promoção da saúde da população negra.

Planejar ações profissionais considerando a categoria étnico-racial, aliada ao gênero, classe e geração.

Analisar o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito no ambiente de trabalho.

Analisar como está o empenho na defesa e efetiva implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.

Refletir, individual e coletivamente, sobre os conhecimentos que se tem acerca das relações raciais estabelecidas na instituição em que atuamos.

É por meio de um olhar atento para os espaços que ocupamos que podemos fazer diagnósticos situacionais, com a ajuda de instrumentos qualitativos e quantitativos, e identificar os pontos em que podemos promover ações no escopo da luta antirracista e, como consequência, promover espaços de cuidado em saúde mais justos e acolhedores para todos, todas e todes!

Assim encerramos nossa conversa por hoje. Até a próxima!

Esse podcast é uma produção original da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Campus Virtual da Fiocruz. O episódio faz parte do Curso de Letramento racial para trabalhadores do SUS.

O projeto é coordenado por Regimarina Soares Reis. A validação pedagógica do conteúdo foi realizada por Paola Trindade Garcia. O roteiro e a narração foram realizados pela Designer Instrucional Mizraim Nunes Mesquita. O conteúdo Educacional foi elaborado pelos professores Marcos Vinícius Ribeiro de Araújo e Daniel de Souza Campos.