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Módulo 2 | Aula 1

letramento racial para trabalhadores do sus

Tópico 3

Relações entre gênero, raça, classe e o cuidado em saúde

São os encontros de raça, classe e gênero na sociedade racista que trarão naturalidade à esterilização em massa de mulheres negras, sob a argumentação racista de que:

Sua reprodução aumenta a pobreza, pois teriam muitos filhos e não disporiam de recursos financeiros e culturais para educá-los;

Tornam normal a vigilância das forças de segurança sobre homens negros, pois estes, por índole, estariam sempre dispostos a praticar delitos;

Assassina transexuais e travestis negras, homens negros gays e mulheres negras lésbicas e que adultizam crianças e jovens negras e negros, retirando-lhes o direito à uma infância protegida, expondo-os ao trabalho infantil e à violência sexual.

A sociedade racista oferece apenas um beco muito apertado e sem saída para a vivência de gênero pelas pessoas negras: a subordinação, aceitando o padrão europeu ou o aprofundamento da marginalização, uma vez que se decida viver o gênero sob suas respectivas identidades raciais, religiosas e territoriais. Nenhuma dessas “opções” produz vida e autonomia. Todas produzem adoecimento e morte.

No âmbito do trabalho, serviços de baixa remuneração, na maioria das vezes precarizados e informais, serão delegados sem distinção de gênero: serviços gerais, portaria, segurança de lojas, construção civil, camelôs, lavoura, recicladores, guardadores de carro etc. Exceto o trabalho doméstico, majoritariamente realizado pelas mulheres negras. Ele conservou quase que intactas as relações coloniais até os dias atuais, com direito, até bem pouco tempo, a uma “mini senzala moderna” (“quartinho de empregada”) dentro dos apartamentos das classes médias brancas nas capitais brasileiras.

Conforme você pode observar na figura abaixo, esse setor emprega 6,2 milhões de pessoas no Brasil, entre homens e mulheres. Destes, 3,8 milhões são mulheres negras (61% do total de trabalhadoras domésticas), que em 2019 tinham rendimento médio mensal de R$869, enquanto a média nacional era de R$921, e o valor médio para trabalhadoras brancas era de R$1.022  (Pinheiro, Tokarski, Posthuma, 2021; IPEA, 2019).

Figura 1. População de 16 anos ou mais de idade ocupada no trabalho doméstico e remunerada, segundo raça/cor (2016-2019)

PINHEIRO, L.; TOKARSKI, C. P.; POSTHUMA, A. C. Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Brasília: IPEA; OIT, 2021. 236 p.

Dessa maneira, mulheres negras em consonância com a dimensão de gênero, são empurradas para posições sociais subalternas e, portanto, inseridas na erosão do trabalho contratado e regulamentado, ficando sem acesso aos diretos sociais e trabalhistas básicos, como aposentadoria, auxílio-doença e licença maternidade. Se ficam doentes, são forçadas a parar de trabalhar, perdendo integralmente sua fonte de renda. Assim, precisamos sempre estar atentos, pois:

  • A violência e a dor miram gênero e cor;

  • Se cortam direitos sociais, quem é preta e pobre sente primeiro;

  • O corte no financiamento da saúde sangra mais a pele negra.

É por aí que também vai se delineando a hipertensão, a diabetes, a sobrecarga mental, ansiedade, alcoolismo, negação dos direitos reprodutivos, aumento de riscos gestacionais, exposição a letalidade por violência por arma de fogo, complicações das doenças crônicas, atraso no tratamento de neoplasias etc.

O trabalho em saúde, sobretudo na APS, exige essa capacidade crítica analítica para avançar:

No âmbito do cuidado assistencial, sustentando o fazer clínico em informações qualificadas que definem a conduta diante dos danos;

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Na diminuição e controle dos riscos, atuando em ações de prevenção às doenças;

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Na promoção da saúde, atuando intersetorialmente sobre as determinações sociais.

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Tudo isso de forma integrada e situada em modelos de gestão que se comprometam com a questão racial, em sua indissociabilidade de gênero e classe, em seus instrumentos e processos de planejamento. A ativista e filósofa Angela Davis, em Conferência realizada em São Luís (MA), na Iª Jornada Cultural Lélia Gonzales, disse a seguinte frase:

É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe”, diz. “Raça é a maneira como a classe é vivida. Precisamos refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.”

Assim, olhar para gênero sem a imbricação com raça e classe, no caso do Brasil, é como salpicar de tinta preta um quadro que não poderia ser redesenhado, mantendo as formas e os mesmos traços, apenas com pinceladas de tinta sobre tela. 

O vídeo abaixo reúne os principais pontos discutidos até aqui, proporcionando uma oportunidade de revisitar os conceitos explorados. Através dele, você poderá reforçar o conteúdo já estudado e, ao mesmo tempo, aprofundar-se nas complexas interações entre gênero, raça e classe. Os convidados entrevistados compartilham suas perspectivas, oferecendo uma análise rica e detalhada sobre como esses temas se entrelaçam no contexto social, cultural e econômico. Aproveite o vídeo para consolidar seu aprendizado e ampliar sua compreensão sobre as imbricações que estruturam as dinâmicas de gênero, classe e raça e desigualdade em nossa sociedade.

[Vinheta de abertura]

[Mediadora Regimarina] - Olá a todas as pessoas que nos acompanham aqui no nosso Videocast “Encontros entre Raça, Classe e Gênero em uma sociedade racista”. Esse é um videocast que faz parte do nosso curso “Letramento Racial para Trabalhadores do SUS”. Eu sou Regimarina Reis e hoje eu vou mediar essa conversa, que é crucial para que a gente possa compreender as relações presentes na nossa sociedade, bem como as contradições que estão presentes nela. Nosso objetivo aqui é que você que nos acompanha possa compreender as imbricações, as relações íntimas entre raça, classe e gênero e como é que essas relações imbricadas implicam, têm impacto sobre as práticas de saúde. E para acompanhar essa conversa, nós convidamos o professor Daniel Campos, que é doutor em serviço social, docente da Escola de Serviço Social da UFRJ e membro da Associação de Pesquisadores Negros. Bem-vindo, professor.

[Entrevistado Daniel] - Olá! Obrigado, Regimarina. É um prazer enorme poder conversar com vocês aqui e, de certa forma, possibilitar uma compreensão sobre esses imbricamentos que você falou e, sobretudo, como eles vão conformar, ajustar, sedimentar e contribuir para pensar práticas de cuidado e saúde. É um prazer enorme.

[Mediadora Regimarina] - Muito obrigada! E para enriquecer ainda mais o nosso papo, nossa conversa aqui, nós temos também o privilégio de contar com a professora Jussara Francisca de Assis, que é assistente social, doutora em serviço social, docente da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora das temáticas: saúde da população negra, violência obstétrica, justiça reprodutiva e mulheres negras. Bem-vinda, Jussara.

[Entrevistada Jussara] - Obrigada, Regi. Obrigada. Olá, pessoal! Obrigada, Dani. Uma honra, o convite. É muito importante estarmos aqui para tratar desse assunto que é tão urgente, tão importante. Políticas públicas têm tudo a ver com esse imbricamento de gênero, raça e classe, especialmente na saúde. Então, é um prazer enorme poder estar aqui com vocês.

[Mediadora Regimarina] - Muito obrigada, Jussara. Então, para começar aqui a nossa conversa, professores, eu começaria pontuando que, a olho nu, na nossa sociedade, sem muitos esforços, a gente percebe de imediato que alguns grupos populacionais estão expostos a relações de vulnerabilidade, repetindo sistematicamente condições de desvantagens para uns, vantagens para outros. E essa produção, a gente também já sabe que ela tem uma relação muito íntima com essa imbricação de raça, classe e gênero, que tem determinado essas posições de desvantagens, produzindo desigualdades sociais que vêm se produzindo historicamente, mas que se atualizam organizando a nossa sociedade. E aí eu começaria perguntando, professor Daniel, você poderia nos explicar com mais detalhes de como é que funciona esse embricamento, o que é que ele significa e como é que, principalmente, como é que isso tem implicação para as nossas práticas de saúde?

[Entrevistado Daniel] - Claro, vai ser um prazer! Pergunta interessante e importante, e acho que, para iniciar esse debate, a gente precisa primeiro distinguir e separar essas três categorias, e aqui eu vou colocar palavras que são conceitos, mas que aparecem como palavras. Primeiro, pensar gênero. Então, acho que o primeiro passo é a gente entender que o gênero está diferente, é posto socialmente, diferente da determinação biológica, ou seja, ele não está vinculado ao órgão reprodutor, ao sexo de nascimento. Quando a gente pensa gênero, nós estamos pensando nas práticas sociais, nos conjuntos de códigos, símbolos, vestimenta, nome, cor, que vai construir esse imaginário social do que vem a ser esse determinado gênero masculino e gênero feminino. Então, a gente está falando de posições, estereótipos, performatividades, ou seja, jeito de existir, que vai ter uma norma e uma regra para enquadrar determinados corpos entre representar uma feminilidade ou uma masculinidade. Então, o gênero é construído socialmente, ele não se dá a partir do sexo biológico ou do órgão reprodutor, até porque hoje, pensar gênero nessa relação biológica ou reprodutora é pensar que ele é mutável também, você pode mudar esse sexo biológico.

[Entrevistado Daniel] - Então, essa construção que nós temos de uma imagem, de um usuário da saúde, feminino ou masculino, nós olhamos para essas pessoas, que chegam até a unidade de saúde, procurando esses códigos, o brinco, a roupa rosa, a saia, a calça, tudo isso vai construindo o imaginário social, vai organizando o que a gente pensa como feminino e como masculino. E aí, como há essa imbricação que você falou, pensar a raça nessa seara é pensar uma construção sócio-histórica. É diferente de pensar a raça vinculada aos animais. A gente está pensando “raça” numa construção política, de uma formação, de uma organização brasileira que se construiu e colocou determinados segmentos, ou seja, determinada população, que tem características diferentes da característica daquele que é associado ao lugar de superioridade. Então, eu estou falando que é uma raça construída a partir de um ideal de superioridade que não estava localizado na população negra, e sim na população branca. Essa construção histórica, política, econômica e social da raça vai determinar quem é, por exemplo, a gente pode pensar uma linha imaginária e ver quem é inferior e quem é superior.

[Entrevistado Daniel] - Quem pode ser considerado sujeito de direitos, usuário do serviço, ou aquele que pode ser ouvido, ou aquele mesmo que fala e a gente não escuta? A raça vai dizer para a gente esses lugares, e aí, a gente precisa olhar para o passado e pensar a escravização da população negra para localizar essa população negra fixada nessa construção histórica de uma raça inferior, de uma raça que não tem humanidade, que não sente dor, que não procura o atendimento em saúde. E dentro desse esquema, dentro desse imbricamento, dessas conexões, ainda existe a classe.

[Entrevistado Daniel] - Nós vivemos em uma sociabilidade. Hoje, o mundo, a nossa sociedade, é capitalista. Ela está vinculada aos meios de produção. O que isso quer dizer? Pensar esses meios de produção, a gente está falando que determinadas pessoas vão ter, serão os donos de empresas, de mercados, e outras pessoas precisarão viver da venda da sua força de trabalho, precisarão trabalhar e vender a sua força de trabalho a partir do que aquele cara que é o dono do mercado, que é o dono da mecânica, vai dizer quanto a sua força de trabalho, ou seja, quanto a sua jornada, o horário que você sai de casa e o horário que você fica dentro daquela empresa, quanto vale isso. E aí a gente vai ter uma organização na vida social a partir de classes.

[Entrevistado Daniel] - Quem é o patrão e quem é o empregado. E aí, nesse imbricamento, é importante a gente trazer para essa conversa um conceito muito importante que foi pensado há mais de 30 anos. Como é que a gente olha para gênero, raça e classe e entende como isso vai potencializar ou não práticas de atenção em saúde? Para isso, a gente precisa dialogar com o conceito de interseccionalidade, que não é colocar uma hierarquização, ou seja, número um, número dois, número três, o que afeta mais? Mas é como se a gente olhasse para uma encruzilhada e aí eu estou vendo o que significa ser uma mulher preta, deficiente, moradora de favela, que tem um filho com deficiência e que é usuária da atenção primária em saúde. Como esse conjunto de determinações, de opressões, vai localizar ou não essa mulher como um sujeito de direitos, como uma usuária no serviço? Ou seja, como todos esses marcadores que eu falei anteriormente vão afastar ou aproximar essa mulher dos serviços de saúde. Eu acho que, para iniciar a nossa conversa, acho que esses elementos dão pistas para a gente pensar o lugar que a população negra ocupa na atenção à saúde quando a gente pensa uma sociabilidade. E aí, o que eu estou falando de sociabilidade? Eu estou falando da vida social, da nossa organização, do dia a dia, eu estou falando do cotidiano, eu estou falando daquele que, por vezes, chega até determinados locais e está com uma dor de cabeça ou uma dor aguda na barriga e eu não escuto, eu negligencio essa narrativa que ele está me dando, ou eu não vou acreditar nisso que ele está verbalizando. A raça, o gênero e a classe vai determinar muito sobre isso.

[Mediadora Regimarina] - Começamos aqui já, aquecimento forte. Acho que o Daniel traz elementos para a gente muito interessantes, porque acho que é isso, o fato de que a gente tem desigualdades raciais, sociais, é inegável, é incontestável. Mas também a gente precisa avançar e compreender como essas desigualdades são produzidas, como elas têm sido sustentadas até aqui e como é que essa sustentação se implica no campo da saúde.

[Mediadora Regimarina] - Acho que o Daniel traz exemplos, elementos que nos possibilitam alcançar melhor, dar materialidade a essas questões que são complexas, é uma interação íntima, uma imbricação que é complexa e exige que a gente, de fato, se dedique a elas. Mas, fundamentalmente, além de nos clarificar com essas possibilidades de aproximação pelos exemplos, acho que o Daniel traz elementos que nos convocam à ação, à tomada de posição. E aí eu aproveito e pergunto para a professora Jussara. Jussara, como é que a gente pode pensar e produzir políticas e práticas de saúde que verdadeiramente, que efetivamente enfrentem essas desigualdades sociais que são produzidas no bojo dessa imbricação, dessa relação inseparável entre raça, classe e gênero nessa nossa sociedade?

[Entrevistada Jussara] - Bem, Regi, é muito importante a gente considerar esses elementos que o professor Daniel traz de uma maneira totalitária. “Gênero”, “raça”, “classe”, para que a gente possa pensar a nossa realidade brasileira. Quando a gente fala de políticas públicas e quando a gente fala especificamente de saúde, a gente não pode deixar de enaltecer e de celebrar o nosso Sistema Único de Saúde (SUS).

[Entrevistada Jussara] - Como a Jurema Werneck coloca muito bem, o SUS tem na sua estruturação, nas suas diretrizes, nos seus princípios, uma tecnologia que vai atender de uma maneira muito interessante a população brasileira e especialmente a população negra. No entanto, por conta desses elementos e por conta da realidade sócio-histórica do Brasil, muito estruturada, absolutamente estruturada no patriarcado e no racismo, nós temos muitos desafios no que diz respeito à própria implementação e à materialização do SUS. Então, a gente constata, por um lado, que o SUS é uma política pública de destaque mundial no que diz respeito à oferta da saúde, a oferta do serviço público de saúde à sua população. No entanto, o que a gente tem de desafio e de barreira é exatamente essa estruturação a partir do patriarcado e a partir do racismo. Então, as práticas de saúde, elas precisam tomar como base essa realidade, necessidade de um investimento muito importante junto aos trabalhadores e trabalhadoras do próprio SUS. Eu acho que é muito isso também. Trabalhadores e trabalhadoras do SUS também são as pessoas negras, que também se identificam com essas desigualdades que estão colocadas no solo da nossa sociedade. Então, embora nós tenhamos o SUS e a sua materialização e esses desafios, eu acho que um investimento importante seria, e é, de fato, poder se voltar também para os trabalhadores, e nesse contato no dia a dia, no cotidiano com a população.

[Entrevistada Jussara] - Especificamente falando, quando a gente fala de prática de saúde, aí eu trago um pouquinho da experiência, dos estudos, enfim, do que a gente tem investido em termos de justiça reprodutiva, por exemplo. Daniel traz algo que é muito importante, que é essa questão do próprio território. Então, gênero, raça, classe, como ela está colocada ali no território e a questão das negligências. Quando muitas das vezes mulheres negras são absolutamente julgadas pelo fato ou de engravidarem, ou de engravidarem para receber benefícios sociais. E isso está muito presente nas instituições de saúde, como uma coisa que muitas das vezes é naturalizada e que, na verdade, quando a gente vai analisar, acaba tirando essas mulheres do direito à saúde, do direito à justiça reprodutiva, por exemplo. Então, quando a gente pensa em política de saúde, quando a gente pensa em justiça reprodutiva, a gente está pensando nessa mulher nessa totalidade, entre gênero, raça e classe, nas condições que ela tem de escolhas, de opções no que diz respeito a sua vida sexual e reprodutiva e também de acesso à saúde. Então, essas questões estão ali no dia a dia das instituições de saúde e como a gente pode pensar de uma maneira que o serviço possa ser efetivo para essa população.

[Entrevistada Jussara] - Então, é isso. Acho que as práticas passam também por esse coletivo, considerar a população na sua realidade cotidiana e também considerar a realidade dos trabalhadores e trabalhadoras do SUS, para que a gente possa ter essa... Como é que eu posso dizer? A política de saúde possa ser interessante para todos nós e efetiva.

[Mediadora Regimarina] - Muito bom, professora. Acho que nessas primeiras falas, Daniel traz esses elementos que nos organizam para pensar essas três dimensões, situa a interseccionalidade como uma possibilidade para a gente abordar e tomar essa imbricação na concretude. Jussara faz um sobrevoo analítico sobre o que podemos e devemos fazer e empreender no sentido de atuar. E aí, professores, faço agora uma proposta que a gente toque em outro aspecto dessa conversa, que é o seguinte: é muito comum que, nas relações sociais, no dia a dia, nos diversos espaços em que as relações se dão, seja no trabalho, nos diversos espaços sociais, nos meios de comunicação, é muito recorrente que os conflitos presentes na vida social se apresentem, pelo menos na aparência, numa certa dualidade, preto versus branco, homem versus mulher, rico versus pobre. E aí há uma redução das questões a essa polaridade. Os conflitos sociais acabam fazendo com que as expectativas recaiam sobre cada um desses grupos. E aí eu pergunto, professor, isso faz sentido? Como é que é que essa dinâmica dos conflitos sociais pode afetar a forma, o cuidado recebido por esses grupos sociais e a qualidade recebida de atendimento em nossos espaços de atendimento à saúde, de produção da saúde? Como é que isso se dá?

[Entrevistado Daniel] - Perfeito, Regi. Eu acho que a professora Jussara aqui também já deu pistas interessantes para essa conversa. E eu acho que as perguntas, elas vão trazer para a gente um panorama de que não há como a gente analisar qualquer vulnerabilidade social no nosso país, no Brasil, sem olhar para a interseccionalidade, que eu acho que é isso que a gente está falando aqui. A professora Jussara resgatou ali os antecedentes da política do SUS, a sua importância e a sua relevância, mas a gente precisa reconhecer que essas políticas e o próprio sistema único de saúde, ele está fincado, ou seja, ele existe num país que tem uma base escravagista. E aí, o que isso quer dizer? Isso quer dizer que aquilo que a gente começou falando no início, que determinados corpos serão vistos com mais atenção e cuidado do que outros, porque nós fomos socializados. Quase 400 anos de exploração da força de trabalho negra não se retira da história de um país assim.

[Entrevistado Daniel] - Então, estamos caminhando, refletindo e pensando. Mas nós precisamos reconhecer que essas instituições, ou seja, essas políticas, de certa forma, estão fincadas no racismo estrutural. Então, quando a gente vai falar da atenção à saúde para a população branca e para a população negra, eu acho que tem exemplos muito importantes. A professora Jessara falou, já trouxe algumas pistas aí, mas eu vou fazer uma fala aqui que está me vindo à mente, do Conselho Federal de Serviço Social, junto com o Conselho Regional, que ele vai dizer assim nas suas campanhas: “Na falta de saneamento básico, quem é preta e pobre sente primeiro”. Eu acho que essa frase está determinando para a gente que ser mulher preta no Brasil, viver em um território favelizado, sem ausência de saneamento básico, vai falar sobre a sua condição de saúde, vai dizer sobre como você chega até a unidade de saúde, porque, às vezes, a unidade de saúde está próxima à sua residência, mas a sua realidade de trabalho, informal, precarizado, majoritariamente, trabalhadoras domésticas que passam o dia inteiro fora dos seus territórios, não consegue, por vezes, acessar a atenção à saúde. E aí, quando essa mulher chega até a unidade de saúde, ela não vai chegar para pensar a prevenção na atenção básica que a gente está falando, ela vai chegar no nível mais alto de complexidade.

[Entrevistado Daniel] - E aí, se a gente não tem o letramento racial, a análise crítica da realidade brasileira, o que a gente vai fazer de uma forma direta? Culpabilizar essa mulher. “Mas como a senhora deixou esse mioma, esse cisto, esse caroço chegar até essa dimensão?” Mas se a gente para e pensa na integralidade do cuidado dentro das práticas de saúde e escuta essa mulher negra, a gente vai ouvir que ela sai três horas da manhã para pegar o trem, para poder estar do outro lado da cidade e retorna às 10, 11 horas da noite. E ainda tem a terceira jornada da esfera do cuidado, com os filhos e com a família. Então, isso vai falar sobre a atenção à saúde, sobre a qualidade do serviço. Não só para falar sobre a qualidade, mas também como ela chega e o que a professora Jussara anteriormente colocou, a atenção. Como é que vai se dar a atenção quando essa mulher chega até o serviço de saúde?

[Entrevistado Daniel] - Diversas pesquisas vêm apontando que se a gente pensa a relação entre brancos, a população branca, e pretos e pardos, que vai constituir a população negra nos aspectos de moradia, acesso à cultura, acesso à lazer, ou seja, dos indicadores sociais que a gente tem nesse país, a população branca vai atingir os melhores níveis. E a população negra vai estar sempre no lugar que os estudos vão apontar para a gente da vulnerabilidade, no lugar do risco. Então, isso tem a ver com tudo que a gente falou anteriormente.

[Entrevistado Daniel] - Como a raça e a hierarquização acabam definindo lugares sociais. E esses lugares sociais vão falar sobre o processo de produção de adoecimento e de produção do cuidado. Então, acho que, mais uma vez, reforça a necessidade de nós, enquanto trabalhadores do SUS, olharmos para as nossas práticas e buscarmos informações, acho que letramento racial, capacitação, para entender que existem especificidades diferentes de ser mulher negra na atenção à saúde, homem negro na atenção à saúde, saúde da criança negra. Não por acaso a gente vai pensar a política integral de saúde da população negra. E eu estou aqui ao lado de uma especialista quando vai pensar violência obstétrica contra as mulheres negras. E aí a gente se pergunta por que o tempo de uma consulta de uma mulher negra é menor do que o tempo de consulta de uma mulher branca na prática do pré-natal? A gente precisa olhar para esse passado e entender o que a gente está trazendo desse passado para as nossas práticas cotidianas das instituições.

[Entrevistado Daniel] - Para olhar para aquele corpo que a gente às vezes não quer tocar, para olhar para aquele corpo que às vezes a gente não vai ouvir. Então eu acho que são momentos como esse de um curso, de um videocast que fazem a gente repensar a nossa prática, fazem a gente repensar o que o racismo faz muito bem, que é essa estratégia ideológica de naturalização dos lugares, de naturalização das irresponsabilidades. E aí muito fixada ao corpo negro, seja na atenção à saúde, seja na atenção à assistência social, na atenção à educação. E aí a gente volta para o conceito da interseccionalidade, como isso vai se imbricando e produzindo um não lugar, um não acesso. E aí como a gente precisa olhar para além do aparente, para além daquilo que aparece ali. A gente precisa entender esse sujeito construído através de diferentes determinações.

[Entrevistado Daniel] - E aí eu acho que o movimento já está dado. Eu acho que essa nossa conversa aqui incita e deixa várias pistas para que a gente possa pensar os nossos modos de fazer, para que a gente possa olhar e refletir sobre o cotidiano, que às vezes faz a gente atuar, pensar sem a reflexão. E eu acho que são momentos como esse, que a gente consegue olhar para esse passado e reconhecer o racismo estrutural, que nos vai possibilitar entender essa diferença na atenção à saúde de uma população negra e da população branca, pensar a população indígena, ribeirinha, cigana, pensar a diversidade étnico-cultural do nosso país.

[Mediadora Regimarina] - Muito elucidativo, professor. E aí, nessa seara ainda, gostaria de, considerando isso, que o Daniel nos localiza muito bem aqui, aproveitar e perguntar para a Jussara de novo, na questão das políticas e práticas, como então, nesse bojo desses conflitos sociais, como produzir políticas e práticas que sejam capazes de nos permitir lidar com as expectativas criadas no bojo desses conflitos e com as determinações produzidas por eles, especialmente para esses grupos sociais historicamente excluídos e expostos a relações de vulnerabilidade?

[Entrevistada Jussara] - Certo, Regi. Então, para a promoção do cuidado, a saúde que seja centrada nas pessoas que considerem para além do operacional, do serviço, que considere as pessoas enquanto sujeitos, eu costumo dizer que a gente, enquanto trabalhadores e trabalhadoras do SUS, a gente tem um papel muito importante. Primeiro, eu acho que é esse reconhecimento também, enquanto parte dessa população, enquanto parte dessa realidade, e aí eu tomo como exemplo a atenção primária e saúde. Eu acho que a atenção primária, ela é muito legítima para o que a gente está falando, não que os outros níveis de atenção não sejam, mas é o nível que está mais diretamente ligado ao território e mais diretamente ligada às populações no seu cotidiano, no seu dia a dia.

[Entrevistada Jussara] - E aí, uma provocação que eu faço dentro dessa perspectiva do letramento racial é que se nós, será que nós, enquanto trabalhadores e trabalhadoras desse nível de atenção do SUS, como nós nos reconhecemos? Quando nós saímos para o trabalho e nos olhamos no espelho, nós nos reconhecemos a partir de que marcador racial, de que marcador de gênero, de que marcador de classe? Eu acho que isso faz muita diferença no cotidiano, ali no chão da unidade de saúde. Então, mais um exemplo, o próprio quesito raça-cor, que é uma deliberação já do próprio Ministério da Saúde que todos os documentos tenham ali a coleta do quesito raça-cor. E muitas das vezes, quando nós nos deparamos com essa necessidade, a gente tem uma dificuldade no que diz respeito à coleta desse quesito. Por um outro lado, uma justificativa, a população também tem uma dificuldade nessa resposta. E tudo o que a gente tem falado aqui, o que o professor Daniel traz com muita propriedade, é a gente entender o quanto o racismo está colocado, o patriarcado está colocado nessa perspectiva.

[Entrevistada Jussara] - Então, uma prática de saúde que seja sensível e centrada no sujeito passa também por essa sensibilidade da identificação do quesito raça/cor, da dimensão racial de gênero. Então, eu acho que para a política, para a saúde, para a atenção primária, essas questões precisam estar presentes o tempo inteiro, porque é exatamente a possibilidade dessa prática de saúde ser ainda mais próxima dessa população que tem raça, que tem cor, que tem gênero. Então, pensar a prática de cuidado sensível, centrada na pessoa, é exatamente poder trazer esses elementos para o nosso dia a dia, para o nosso reconhecimento enquanto trabalhadores e trabalhadores do SUS.

[Mediadora Regimarina] - Muito bom, professora. Eu só gostaria de pedir uma coisa. Duas vezes, na sua fala, apareceu a sociedade patriarcal.

[Entrevistada Jussara] - Sim.

[Mediadora Regimarina] - E aí, eu gostaria de pedir que você contasse um pouco para quem nos assiste, o que a gente está falando aqui de sociedade racista e patriarcal.

[Entrevistada Jussara] - Sim. Então, a sociedade patriarcal é uma sociedade que se baseia no sujeito do masculino, do homem, enquanto no seu centro de poder e na organização dessa sociedade. Então, pegando o exemplo da família tradicional, onde, muita das vezes a gente tem esse retorno, essa busca de que tanto crianças quanto mulheres devem viver ali sob o jugo de uma figura que seja a figura masculina que é a detentora daquela família. Essa é uma imagem ainda muito presente nessa organização de sociedade, embora tenhamos avanços assim, imensuráveis e enormes no que diz respeito ao papel das mulheres na sociedade, no mundo do trabalho, na educação e na ocupação desses papéis que são vastos na sociedade, de construção dessa sociedade, da economia também.

[Entrevistada Jussara] - No entanto, né, assim como o racismo, o patriarcado, nessa sua estrutura, ele ainda está muito presente. E quando o professor Daniel traz a questão do gênero, quando nas práticas de saúde a gente geralmente está identificando e busca identificar esses marcadores do que é a mulher, do que é o homem e como que esses papéis, esses marcadores, eles estão na sociedade, como que a gente se organiza. O patriarcado, ele está muito presente, né, ditando as regras do que é a mulher, do que é homem, o papel do homem na sociedade. Então o patriarcado, ele seria isso, são relações de poder muito baseadas no papel masculino, nessa centralidade do poder no papel masculino.

[Mediadora Regimarina] - Muito bom professora, muito elucidativo. E aí tudo que foi trazido até aqui acho que nos reforça a ideia de que para enfrentar as desigualdades raciais, as desigualdades sociais nesta nossa sociedade, né, fundada no racismo, no patriarcado, na exploração do trabalho, a gente precisa, óbvio… Necessitamos dessas condições de enfrentamentos que sejam políticos, estruturais e organizados institucionalmente. Centralidade de movimentos sociais no debate e nas práticas, mas também de possibilidades de iniciativas que permitam às pessoas desenvolverem, produzirem comprometimento ético-político com essa produção e desenvolvimento de repertório, letramento para ter condições de atuar nessa seara. O nosso caminho é longo, mas nós estamos caminhando. Acho que o Daniel bem coloca isso, que é caminhar, que a gente precisa caminhar. Nós estamos aqui na caminhada.

[Mediadora Regimarina] - Mas por hoje nosso videocast está chegando ao fim, gente! E muito obrigada desde já a nossa convidada Jussara, ao Professor Daniel, também pela presença. Eu gostaria de pedir que vocês, depois de compartilharem conhecimentos enriquecedores, pudessem deixar uma mensagem final e pra quem nos assiste.

[Entrevistado Daniel] - Então, eu quero agradecer a possibilidade de refletir sobre temas tão importantes e necessários para a atenção à saúde, sobretudo por dividir essa mesa com profissionais que eu admiro e que respeito e que têm contribuído muito para a luta antirracista. Eu acho que é isso. Eu acho que esse videocast, eu acho que essa proposta de curso sobre letramento racial para trabalhadores do SUS, ele é um convite. Ele é uma porta aberta para que nós possamos olhar para as nossas práticas, que a professora Jussara Assis falou, que acontecem no território. Olhar para o patriarcado, olhar para as masculinidades negras, olhar para as feminilidades negras, para as infâncias negras e reconhecer uma atenção à saúde muito mais equitativa e para todos, em qualquer território e em qualquer região desse país. Eu acho que o convite está feito. Obrigado.

[Entrevistada Jussara] - Bom, gostaria também de agradecer imensamente a oportunidade e que tenhamos outras oportunidades de estarmos aqui conversando, trocando aprendizados da vida, enfim. E é isso, né? Essa é uma oportunidade ímpar, de poder falar com as pessoas, com trabalhadores e trabalhadoras do SUS. Sempre foi para mim algo de muita alegria. A perspectiva antirracista, ela é feita coletivamente. A perspectiva de direitos é feita eticamente, coletivamente. O SUS também, né? Então, poder estarmos aqui nessa oportunidade é de fato algo que é de grande valor. Então, muito obrigada e que possamos celebrar e poder defender o nosso SUS sempre numa perspectiva antirracista e de forma coletiva.

[Mediadora Regimarina] - Muito obrigada Professora Jussara e Professor Daniel. Bom, e para você que nos assiste, a gente espera que essa oportunidade tenha sido formativa, além de informativa, e que tenha apoiado a produção de seu repertório para atuar no enfrentamento das injustiças sociais, na produção de uma saúde antirracista e de qualidade.

[Vinheta de encerramento]

Bem, agora que pudemos refletir um pouco sobre os efeitos dessa imbricação ao (não) cuidado das pessoas negras, vamos seguir pensando como o “branco” compõe, como parte intrínseca, essas relações raciais assimétricas no Brasil. Mas antes disso, responda à atividade presente na próxima página.