Módulo 1 | Aula 1
letramento racial para trabalhadores do sus
Racismo, Antirracismo, Raça e Saúde
Assim, aqui neste material didático, todas as vezes que usarmos o termo “racismo”, estaremos tratando da ideia ampliada de que o racismo é um fenômeno e uma tecnologia de poder que faz parte das estruturas da sociedade, que ocorre de forma rotineira e contínua, podendo acontecer explicitamente ou implicitamente, e intencionalmente ou não, nas práticas e omissões de indivíduos e no funcionamento das instituições (racismo institucional).
As pessoas e as instituições são racistas porque a ordem social composta por relações políticas, econômicas e jurídicas é racista, a esse modo de ser das relações sociais, em que o racismo é regra, e não exceção, denominamos racismo estrutural (Almeida, 2019).
Repetidamente mulheres negras apresentam as maiores taxas de mortalidade materna do que mulheres brancas. O risco de um homem negro morrer de câncer de próstata é o dobro do de um homem branco. A chance de uma mulher negra não receber analgesia chega a ser o dobro de uma mulher branca. As mulheres negras são a maioria dos trabalhadores da saúde em funções de menor reconhecimento social e salários mais baixos.
Importante
Certamente, não veremos um documento institucional que determina que a atenção à saúde de homens negros deva ser pior do que a dos brancos. As pessoas não se reúnem em determinado horário para decidir que mulheres negras terão menores níveis de analgesia.
Essas situações exemplificadas podem acontecer independentemente de os trabalhadores individualmente terem preconceito ou não contra negros. Por isso, estamos chamando atenção para discursos, normas e práticas enraizados e legalizados — aparentemente neutros acerca das questões raciais — que contribuem para a discriminação racial e o aprofundamento das iniquidades em saúde. Veja que nessas situações citadas não estamos tratando de atos racistas voluntários isolados de indivíduos.
Compreender a dimensão das relações interpessoais é uma dimensão legítima e necessária para atuarmos no enfrentamento ao racismo. Entretanto, não podemos estar unicamente interessados em se os trabalhadores do SUS têm ou não preconceito aberto e a intenção de discriminar negras e negros no cotidiano dos serviços, nas práticas de gestão e formação em saúde. Precisamos considerar que o racismo é complexo e se expressa também nas dimensões institucional e estrutural.
É fundamental destacar que essa noção das três dimensões do racismo nos exige atenção para escaparmos de um discurso de racismo estrutural abstrato, que tende a esvaziar de responsabilização os atos racistas.
É possível que você já tenha ouvido alguém que, ao ser flagrado em um ato racista, ou ter tido uma prática racista apontada, declarou no pedido de desculpas que sua atitude faz parte do racismo estrutural enraizado em nossa sociedade, colocando-se no lugar de quem está em processo de aprendizagem. Declaração essa que, geralmente, exige que pessoas negras cumpram um papel de educadoras pacientes e compreensivas.
Importante
Precisamos compreender que o fato de que o racismo estrutura e organiza nossa sociedade não isenta os indivíduos e as instituições pelos seus atos racistas.
Todo ato racista está situado estruturalmente, decorre da estrutura. Isso não significa que a expressão “racismo estrutural” possa ser utilizada como desculpa para ser aplicada quando indivíduos e/ou instituições têm seu racismo apontado. Informar que “cometeu racismo estrutural”, além de ser um erro teórico e prático, é um mecanismo de busca por se afastar da responsabilidade pelo ato racista, e colocar a culpa na estrutura social, como se estivesse praticando um racismo mais light, por ser “estrutural”.
E é como se a estrutura social fosse uma abstração, invisível, que leva fatalmente a atos racistas, de modo que os indivíduos nada têm a ver ou o que fazer com isso.
A constatação de que o racismo é estrutural não é um álibi ou um passe livre para atos racistas. E as pessoas negras não devem ser demandadas como educadoras que estão à disposição para tratar de questões raciais.
Em situações como essa, àqueles comprometidos ética e politicamente com o enfrentamento ao racismo, caberia assumir que cometeu ato racista, e reconhecer que sua ação/omissão — além de ofender (as pessoas não se “sentiram ofendidas”, elas “foram ofendidas”) — contribui para a manutenção do racismo nas estruturas da sociedade, apontando-se como parte do problema, em vez de se isentar. E, a partir disso, buscar autonomamente formas de aprender sobre as questões raciais e incorporar uma posição antirracista, com atitudes e práticas assumidas cotidianamente.
Jurema Werneck (2016), pesquisadora, médica e ativista do movimento de mulheres negras brasileiro e dos direitos humanos, contribui para compreendermos a atuação do SUS no campo da saúde da população negra. Ela sistematiza que a pesquisa, a formulação e a ação sobre esse campo se justifica pelos seguintes aspectos:
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A população brasileira é composta por maioria negra;
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Os usuários do SUS são majoritariamente negros;
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A população negra apresenta os piores indicadores sociais e de saúde;
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O SUS tem a universalidade, a integralidade e a equidade como premissas;
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Existe legislação brasileira que reconhece o racismo, as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional, e obriga a análise e ação sobre as particularidades da saúde da população negra.