Módulo 1 | Aula 2
letramento racial para trabalhadores do sus
Desigualdades raciais no Brasil: uma questão de pobreza?
Você já parou para pensar como a cor da pele pode influenciar as oportunidades que as pessoas têm na vida? No podcast a seguir, vamos discutir um tema crucial que impacta a vida de muitos brasileiros: a relação entre raça, desigualdades raciais e sociais, e a pobreza no Brasil.
A relação entre desigualdade racial e pobreza é uma questão complexa e multifacetada. Embora o Brasil seja uma das maiores economias do mundo, também é uma das sociedades mais desiguais. As desigualdades sociais e econômicas no país têm um componente racial explícito, que se entrelaça com as condições de vida e afeta diretamente a saúde e o bem-estar da população negra. Mas será que a pobreza é um problema que atinge a todos da mesma maneira?
Neste podcast, exploraremos questões como os privilégios associados à cor da pele, sejam eles simbólicos ou materiais, a necessidade de políticas específicas para a população negra e as implicações do racismo estrutural na saúde e no bem-estar das pessoas. Afinal, entender essas interseções é fundamental para construir um futuro mais justo e igualitário. Então, prepare-se para um momento cheio de reflexões! Vamos lá?
Desigualdades raciais no Brasil: uma questão de pobreza?
[Vinheta de abertura]
Olá! Seja bem-vindo ao Podcast Letramento Racial no SUS. Este podcast faz parte do Curso de Letramento Racial para trabalhadores do SUS, desenvolvido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz.
Eu sou Karoline Trindade e neste episódio vou falar sobre a relação entre as desigualdades raciais e a pobreza no Brasil. Este é um tema de fundamental importância para quem quer compreender a questão racial na sociedade brasileira, uma vez que ideias equivocadas predominam no imaginário social. Então, prepare-se para um momento enriquecedor e formativo. Vamos começar?
Bom, inúmeros dados mostram que ser negro no Brasil significa ser mais pobre do que as pessoas brancas, ter menos escolaridade, receber salário menor, ter menos acesso ao mercado formal de trabalho, ter menos oportunidades de ascensão profissional e social, e estar mais exposto às violências.
Com essas desigualdades raciais em mente, vamos dar continuidade ao nosso podcast a partir de algumas questões centrais:
- Será que as desigualdades raciais no Brasil são uma questão de pobreza ou são resultantes do racismo?
- E os pobres que são brancos? Como se encaixam nessa discussão racial?
Apesar das desigualdades raciais escancaradas no Brasil, é comum que a sociedade atribua a desvantagem social vivenciada pelas pessoas negras à pobreza. Admite-se com frequência que as pessoas estão em piores condições unicamente porque são pobres, sendo indiferente se elas são negras ou não. Esta interpretação nega a existência de barreiras raciais, ou seja, nega o racismo, e expõe o entendimento equivocado que vigora sobre a origem e a solução das desigualdades no país.
Porém, fato indiscutível é que, no Brasil, a pobreza tem cor e é negra. As desigualdades sociais e, principalmente, a pobreza no nosso país, têm um componente racial explícito, com a população negra sendo sempre desproporcionalmente afetada.
Isso acontece porque há um legado histórico de discriminação racial, que limita o acesso a recursos econômicos, educacionais e sociais para os negros; e também porque o racismo estrutural é continuamente atualizado, organiza a vida em sociedade, e perpetua padrões de exclusão, barreiras e marginalização, que mantém pessoas negras em situação de pobreza.
Projetos de sociedade estão em disputa permanente. Interesses antagônicos convivem em uma estrutura social que se organiza pela exploração daqueles que precisam vender sua força de trabalho, em favor da acumulação de capital para uma minoria. E cada visão de mundo suporta um projeto de sociedade que pode ser compatível ou não com os interesses da maioria da população que, no Brasil, é negra.
Assim, há quem defenda que o que ocorreria no país é um preconceito exclusivamente de classe, problemas relacionados a emprego e renda, e que, por isso, seria necessário apenas uma abordagem econômica mais geral de enfrentamento à pobreza. Por essa visão, não seria necessária uma estratificação por raça ou cor ou ainda políticas específicas, pois ser negro seria apenas mais um fator que compõe a diversidade da população brasileira.
Essa noção se mostra equivocada pois, se negligenciamos a dimensão racial da pobreza, bem como ignoramos a dimensão econômica da questão racial, estamos normalizando a situação de desvantagens sociais vividas pelas pessoas negras, em relação às brancas, na história deste país.
Precisamos desnaturalizar, e passar a considerar inaceitável a condição de pobreza entre negros como algo inerente, natural; e abordar as causas estruturais, sistêmicas, e de cunho racial, do problema das desigualdades sociais.
Até aqui, o que tratamos nos informa sobre a incapacidade da pobreza por si só explicar as desigualdades entre as condições de vida de negros e brancos no país.
Mas, para aprofundarmos essa questão, precisamos fazer um ponto de reflexão: quando afirmamos a importância da questão racial na nossa sociedade e trazemos à tona os privilégios daquelas pessoas percebidas como brancas, não significa que estamos negando as dificuldades enfrentadas por pessoas brancas, seus méritos ou esforços.
No Brasil, as dificuldades e os direitos sociais precários afetam praticamente todos. No entanto, para as pessoas brancas, a cor da pele não representa uma dificuldade adicional. Ao contrário, ser percebido como branco traz consigo uma série de privilégios.
Você saberia dizer quais são os tipos de privilégios que as pessoas brancas possuem em relação às pessoas negras?
Bom, esses privilégios podem ser simbólicos, como por exemplo brancos são considerados mais bonitos, inteligentes ou confiáveis; e também há os privilégios materiais, que são relacionados a melhores empregos, casas, condições de saúde, entre tantos outros benefícios que muitas vezes não estão acessíveis às pessoas negras. Este é o ponto crucial que devemos considerar. O racismo não só produz desvantagens para as pessoas negras, como produz lugares de privilégios para as pessoas brancas.
Isso nos faz perceber que o racismo organiza a vida das pessoas negras, mas também a vida das pessoas brancas.
Por isso, é fundamental fazer o enfrentamento das desigualdades raciais, entendendo que elas são produto do racismo estrutural, e não uma mera coincidência ou consequência unilateral da pobreza.
Ao abordarmos o racismo dessa perspectiva, modificando as estruturas sociais e institucionais racistas, e promovendo a consciência racial, toda a sociedade se beneficiará, incluindo as pessoas brancas que estão em situação de pobreza. O enfrentamento ao racismo não visa apenas beneficiar as pessoas negras, embora medidas de reparação histórica à população negra sejam também necessárias e legítimas.
A título de exemplo, uma consequência do racismo é o rebaixamento das condições de vida e dos rendimentos de todos os trabalhadores, negros e brancos. Ainda que trabalhadores brancos obtenham privilégios do racismo, na concorrência com trabalhadores negros, esses privilégios são provisórios e relativos. Portanto, combater o racismo estrutural tem como resultante a melhoria das condições da vida em sociedade, promovendo-se justiça social.
Caso você ainda esteja se perguntando se não deveríamos enfrentar as desigualdades raciais com políticas de enfrentamento à pobreza de maneira geral, independente de raça ou cor, cabe destacar os dois seguintes pontos:
Medidas de enfrentamento à pobreza, de modo geral, sem particularizar as desigualdades raciais, não têm garantido a redução das desvantagens entre negros e brancos, assim como não tem garantido a redução das desigualdades entre ricos e pobres no Brasil.
Mesmo quando a redução da pobreza é alcançada isso não implica necessariamente a redução da desigualdade racial, e nem do fosso entre ricos e pobres. É possível aumentar a renda dos mais empobrecidos, mantendo o abismo entre as pessoas negras e brancas, como temos visto, por exemplo, nas políticas de transferência de renda ou mesmo na ampliação do acesso ao consumo no Brasil.
Logo, reafirmamos que as abordagens que atribuem exclusivamente à pobreza as dificuldades enfrentadas pelas pessoas negras no Brasil são simplificadoras, negam o racismo estrutural e são incapazes de enfrentar desigualdades enraizadas e injustiças históricas.
De acordo com pesquisa realizada pelo IBGE, a pobreza e a miséria são predominantemente negras. Ou seja, as desigualdades raciais se repetem também entre pobres e extremamente pobres, evidenciando uma profunda disparidade racial no contexto da pobreza.
No ano de 2020, entre as pessoas em condição de pobreza no Brasil, 38% eram mulheres negras e 35% homens negros.
Nesse mesmo ano, entre as pessoas em situação de extrema pobreza, 40% eram mulheres negras e 37% homens negros. Em termos comparativos, isso significa que a população negra corresponde a cerca de três quartos da população pobre e extremamente pobre no país.
O Brasil é uma das maiores economias do mundo, mas também é uma das sociedades mais desiguais. Para se ter uma ideia, somos o primeiro colocado mundial em termos de concentração de renda e riquezas.
De acordo com o Relatório Global da Riqueza, publicado em 2023, quase metade da riqueza nacional estava concentrada nas mãos de uma pequena parcela dos habitantes. Em 2022, o rendimento médio desse grupo, que representa 1% da população brasileira, era aproximadamente 33 vezes maior do que o rendimento médio de metade dos cidadãos que ganham menos.
Enquanto isso, no mesmo ano, mais da metade da sociedade brasileira estava em situação de insegurança alimentar leve, moderada ou grave.
Em lares onde a pessoa de referência se autodeclara branca, a segurança alimentar foi de 53,2%. No entanto, nos lares com pessoas de referência negras, pretas ou pardas, esse número cai drasticamente para pouco mais de um terço.
A fome atingia 33,1 milhões de pessoas. E é absurdo sabermos que, naquele período, quem teve renda mensal de R$ 4 mil pagou o mesmo Imposto de Renda de quem recebeu R$ 4 milhões.
As desigualdades sociais determinam a maneira como as pessoas vivenciam a saúde e a doença. Mas você já se perguntou de que forma isso acontece?
No SUS, a saúde é compreendida de forma ampliada, orientada pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Isso significa que reconhecemos que a saúde e as doenças não são determinadas apenas por fatores biológicos individuais.
Logo, fica imediatamente evidente que condições de vida marcadas por exclusão, insegurança alimentar, negação de direitos, barreiras raciais e de gênero, acesso precário a serviços básicos, desigualdades regionais, entre outros, expõem a população a piores condições no modo como vão experienciar a saúde e a doença.
Por isso, entende-se que a saúde é um processo social. Porque as condições em que as pessoas vivem e trabalham irão determinar as oportunidades que terão de ser e se manter sadios; e também as possibilidades que terão de evitar, manejar ou superar os processos de adoecimento. A isso nós chamamos de determinação social do processo saúde-doença.
Nesse sentido, podemos dizer que a saúde tem relação imbricada com os nossos “modos de andar a vida”, que estão situados no contexto, nas regras e nas contradições da sociedade capitalista.
O autor José Ricardo Ayres trata saúde como “a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e coletividades à realização de seus projetos de felicidade”.
Mas, em contraponto, a autora Rita Helena Borret, situada no contexto racial brasileiro, nos provoca a reflexão: será que deveríamos associar a noção de saúde à projetos de felicidade ou à noção de liberdade? Afinal, quem pode ter projetos de felicidade no Brasil?
Nessa linha de pensamento, quando a noção de saúde é trazida a partir da realização de projetos de felicidade, isso nos recorda que ter “experiências vividas, valorizadas positivamente” é privilégio de um grupo racial no país. Enquanto isso, o racismo deixa a população negra desprovida de humanidade, impondo-lhes padrões de controle que refletem uma ética, estética, moral e identidade brancas inatingíveis.
Dito isso, é fundamental analisarmos como a maioria da população tem vivido suas vidas, quais são os recursos disponíveis, e como esses recursos estão sendo distribuídos na sociedade capitalista. Essa discussão é importante para entendermos quem adoece, do que adoece, quais territórios são mais ou menos sadios, bem como é definidora sobre quem pode morrer e quem deve viver.
No contexto vivido durante a pandemia da covid-19 tudo isso ficou muito evidente.
Dados coletados pelo IBGE em 2020 revelam uma realidade alarmante: a proporção de pessoas negras morando em domicílios pobres é significativamente maior do que a da população branca em todas as faixas etárias.
Outro indicador importante analisado durante a pandemia foi o excesso de mortalidade. Esse indicador é calculado a partir da comparação entre a quantidade de óbitos esperada em um período e a quantidade de óbitos observada para o mesmo espaço de tempo. Ou seja, nos informa sobre as mortes evitáveis.
Em relação à raça e cor, em 2020, o excesso de mortalidade foi de 28% entre pessoas negras, comparado a 18% entre pessoas brancas. Esta diferença, em números absolutos, representa 36 mil óbitos a mais entre pessoas de cor preta e parda em relação às brancas.
Esses números se tornam ainda mais alarmantes quando analisados em conjunto com o gênero. Entre os homens negros, o excesso de mortalidade foi 55% maior quando comparado à mortalidade dos homens brancos. Entre mulheres negras, foi 57% maior que entre mulheres brancas.
Quando consideramos a faixa etária e a raça/cor, o cenário se repete. Em todas as faixas de idade, o excesso de mortalidade foi maior entre pessoas negras, em relação às brancas.
Esses dados nos expressam o caráter sistemático e estrutural das desigualdades raciais.
As desigualdades raciais observadas durante a pandemia não foram criadas pela emergência sanitária da covid-19, elas foram apenas agravadas. Os dados do cenário pandêmico nos mostram algo muito explícito: entre todos os domicílios pobres do país, a maioria dos moradores é negra. E quando olhamos para a população geral, as mortes evitáveis entre negros foram superiores às verificadas entre brancos. Ao compararmos homens e mulheres, assim como entre diferentes faixas etárias, percebemos a persistência da desigualdade racial. O excesso de mortalidade foi sempre maior para a população negra.
Atente-se que abordagens econômicas gerais para combater a pobreza não dariam conta da particularidade e das necessidades da população negra hoje observadas: menor expectativa de vida, maior vulnerabilidade a doenças e menor mobilidade social. Isso cria um ciclo de privação intergeracional que não será interrompido sem intervenções específicas que reconheçam e enfrentem as dimensões raciais da pobreza.
Por isso, precisamos reafirmar: precisamos de políticas específicas para a população negra e, fundamentalmente, precisamos que todas as políticas sociais considerem a questão racial em sua formulação, implementação e avaliação.
Isso quer dizer que a questão racial precisa ter centralidade na orientação da resposta do SUS às necessidades de saúde da população. Isso não significa que ignoramos a diversidade de gênero, geracional, sexualidades, capacidades diferentes e outras dimensões da vida expostas a distintas formas de opressão presentes na sociedade. Ao contrário, ao enfatizar a questão racial, reconhecemos seu caráter histórico, fundante da formação social brasileira, e afirmamos a necessidade de uma abordagem sempre imbricada com as demais relações sociais.
Por fim, queremos destacar que a raça molda estruturalmente as desigualdades sociais no Brasil. As causas dessas desigualdades não podem ser explicadas por meio de uma escolha entre pobreza e racismo, classe ou raça. Este é um falso dilema.
Raça e classe são inseparáveis e têm repercussões ainda mais graves quando analisadas sob a perspectiva de gênero. Como discutimos, as mulheres negras são as mais pobres, passam mais fome, têm os piores salários e ocupam a base da pirâmide social.
Como nos diz Angela Davis “Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida”.
Com isso, chegamos ao fim do nosso podcast! Esperamos que este conteúdo tenha sido capaz de apoiar você a elaborar reflexões e novas práticas diante da complexidade das desigualdades sociais no Brasil e da inseparabilidade entre raça - classe - gênero nesse debate.
Até a próxima!
Este material foi elaborado com base nas seguintes referências:
- “Uma concepção hermenêutica de saúde” do autor José Ricardo Ayres.
- “Boletim Epidemiológico: Saúde da População Negra” do Ministério da Saúde.
- “E se Dona Violeta fosse uma mulher negra? Reflexões a partir de "O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde” da autora Rita Helena do Espírito Santo Borret.
- Relatório de Riqueza Global 2023 pelo Instituto de Pesquisa de Zurique.
- “Em 2022, mercado de trabalho e Auxílio Brasil permitem recuperação dos rendimentos” e “Trabalho, renda e moradia: desigualdades entre brancos e pretos ou pardos persistem no país”, ambos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
- “II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil”, relatório final da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.
- “Os impactos desiguais da COVID-19 na população negra no Brasil” de autoria da Raça e Saúde Pública.
- “As mulheres negras na construção de uma nova utopia” de Angela Davis, pelo portal Geledés.
Esse podcast é uma produção original da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Campus Virtual da Fiocruz. O episódio faz parte do Curso de Letramento racial para trabalhadores do SUS.
O projeto é coordenado por Regimarina Soares Reis e Letícia Batista da Silva. A validação pedagógica do conteúdo foi realizada por Paola Trindade Garcia. O roteiro e a narração foram realizados pela Designer Instrucional Karoline Corrêa Trindade. O conteúdo educacional foi elaborado por Regimarina Soares Reis e Letícia Batista da Silva.
[Vinheta de encerramento]
Após analisarmos os impactos do racismo estrutural, e suas imbricações com a questão da pobreza, é fundamental aprofundarmos o entendimento sobre sua estrutura e funcionamento no Brasil.