Rumos da Sociedade: quem decide e como se decidem

Pensar em quem e como se decidem os rumos de uma sociedade é o ponto de partida dos debates e reflexões desta aula. Isso permite compreender que as relações sociais que estruturam estes questionamentos promovem uma cisão primária na sociedade, dividindo-a, em termos genéricos, em quem decide e em quem segue as decisões.

Logicamente, há outras importantes divisões nas diferentes sociedades. A opção por esta deve-se ao fato de que, nas sociedades tribais e de clãs, passando pelo que Marx chamou de “Formações Econômicas Pré-Capitalistas”, cruzando o capitalismo em seus embates com o absolutismo e o socialismo, até a contemporaneidade globalizada pelo capital, todas as sociedades precisaram e precisam lidar com este debate. É, portanto, uma divisão estrutural.

QUEM DECIDE

Quem decide corresponde ao tomador de decisões. Essa categoria, aliás, extrapolou o âmbito acadêmico e vem sendo utilizado pelas mais diferentes áreas do conhecimento e pelo senso comum. Essas decisões são tomadas para orientar os rumos de uma população (o que, a priori, não tem valor positivo ou negativo, mas puramente normativo). Quem toma decisões o faz de uma determinada maneira, por meio de um processo específico. Estamos falando do processo decisório.

Quem segue as decisões também o faz de determinadas formas, por meio de processos próprios, que são regulados justamente pelas decisões colocadas pelo processo decisório. Em outras palavras, as ações cotidianas, quer sejam no mundo do trabalho, nas relações pessoais, na cultura, na arte, são orientadas pelos resultados do processo decisório.

Não importa, neste momento, se estas orientações serão integral ou parcialmente acatadas ou se gerarão enfrentamentos mais ou menos violentos. Também estamos considerando a ideia de que quem segue as decisões tomadas no processo decisório são aqueles que não participam desse processo. O que se quer ilustrar é que, quaisquer que sejam as reações, referem-se, de alguma maneira, aos resultados do processo decisório.

Sob tal dinâmica, a sociedade pode ser, por recurso analítico, dividida em duas partes:

Diagrama de Venn representando a sociedade, são dois círculos, o primeiro em azul é a sociedade política que toma decisões, o segundo círculo rosa que não toca o primeiro é a sociedade civil, ele segue decisões.

Tal divisão desdobra-se na discussão sobre o poder: poder de decisão, poder de participar da tomada de decisões, poder de enfrentar as decisões e outros.

Vamos aprofundar o debate sobre sociedade política e sociedade civil e suas interações? Ouça o áudio.

Sociedade Política e Sociedade Civil (10:42)

Se preferir, leia sobre essa discussão aqui.

Relações entre Sociedade Política e Sociedade Civil

Sociedade política e sociedade civil estão em permanente relação e não é possível separá-las. Fizemos essa separação apenas para um exercício reflexivo e didático. Agora, vamos fazer uma síntese para a rearticulação entre ambas.

Consideramos que a maneira pela qual uma sociedade constrói e aperfeiçoa a relação entre sociedade política e sociedade civil é o que a diferencia das demais sociedades. Ao longo do processo histórico, todas as sociedades precisam se dedicar a esta relação. Isso explica por que, em um determinado momento, uma sociedade assiste a uma modificação desta dinâmica de interação - que pode ser mais ou menos abrupta e mais ou menos refletida.

Pensando em termos de modelo analítico, pode-se utilizar como recurso didático os diagramas de Venn e seus conjuntos (uma contribuição da matemática!). Se o 'Conjunto A' é a Sociedade Política e o 'Conjunto B', a Sociedade Civil, a relação matemática entre ambos pode ser expressa de quatro movimentos:

Diagrama de Venn do movimento 1 onde as sociedades não se tocam, o primeiro círculo em azul é a sociedade política (círculo A) e o segundo círculo rosa é a sociedade cível (círculo B), os círculos não se tocam.

O movimento 1 não é factível no mundo real. Se os conjuntos não se tocam, significa que não há relação entre sociedade política e sociedade civil, isto é, ninguém aceita seguir as políticas, normas e leis. Numa situação como esta, a sociedade seria dissolvida!

Diagrama de Venn do movimento 2, as sociedades tangenciam-se, os círculos A e B se tocam, mas não ocorre uma interseção.

No movimento 2, sociedade política e sociedade civil se tangenciam, ou seja, sua relação é a menor possível. Esse pouco contato instaura uma direcionalidade na relação: as decisões são tomadas na sociedade política e só resta à sociedade civil segui-las, sob ameaça de repressão. Fica claro que esta é uma sociedade sem diálogo, autoritária, em que a sociedade política exerce poder e coerção máximos sobre a sociedade civil. A esta sociedade civil resta muito pouco: rebelar-se ou seguir as decisões com um mínimo ou sem contestações. Neste desenho, quem está na sociedade civil não tem possibilidades de passar para a sociedade política. Não há eleições, não há mobilidade social. A sociedade política é transmitida como herança por famílias, clãs, oligarquias, aristocracias, plutocracias… respostas autoritárias à divisão da sociedade.

Diagrama de Venn do movimento 3, as sociedades interagem, ocorre uma interseção entre o círculo A e B.

O movimento 3 surge à medida que essas respostas autoritárias vão se dissolvendo e os conjuntos vão se imbricando, gerando uma interseção. Isto significa que as relações entre sociedade civil e sociedade política ampliam-se consideravelmente, gerando possibilidades de que quem está na sociedade civil tenha, em um determinado momento, em uma determinada situação, algum tipo de acesso à sociedade política. No processo histórico ocidental esta dissolução é bem nítida, por exemplo, no longo processo de superação do feudalismo pelo mercantilismo e, depois, pelo capitalismo.

Esta relação entre sociedade política e sociedade civil, atualmente, é hegemônica, em especial no mundo ocidental. Em sociedades assim, as pessoas não são apenas seguidoras de decisão, visto que podem, em determinados momentos e situações, participar do processo de tomada de decisão. Em termos históricos, o parlamento foi a instituição da sociedade política que primeiro abriu espaço para receber membros da sociedade civil por meio de eleições, o que estimula e é estimulado pelo surgimento de partidos políticos que defendem diferentes interesses.

O espaço de interseção varia não apenas de uma sociedade para outra, mas, também, em uma mesma sociedade que, ao longo do processo histórico, experimenta aumentos e reduções na articulação entre sociedade política e civil. Para o modelo de análise que se está elaborando, quanto maior for esta sobreposição, maior será o grau de democracia de uma sociedade.

Diagrama de Venn do movimento 4, o círculo A e B juntam-se, formando um único círculo.

Percebe-se, então, no movimento 4, que a utopia democrática é a de que a interseção entre sociedade política e civil cresça a tal ponto que os dois conjuntos fundam-se em um único, a democracia direta, em que todos são, ao mesmo tempo, tomadores de decisão e seguidores dessa decisão.

Vamos iniciar o debate sobre a democracia como solução para participação social? Ouça o áudio.

Democracia como solução (13:38)

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Imagem de ícone de reflexão
Um momento de reflexão:

Será que, no mundo global e virtual em que vivemos hoje, a utopia de uma democracia direta tem espaço para ressurgir?

Na Islândia, em 2013, a Constituição foi reelaborada contando com a participação ativa dos cidadãos por meio da internet, em um processo político pensado para acontecer desta forma.

Será que este modelo é replicável e ampliável?

Democracia Representativa

As respostas democráticas não podem propor que todos participem do processo de tomada de decisão. É preciso que alguns escolhidos representem, nos debates, o conjunto dos cidadãos. Começam a se desenvolver as propostas de democracia representativa. A democracia representativa precisa, em termos gerais, lutar pelo aperfeiçoamento constante:

  • das instituições do processo decisório, tornando-as cada vez mais abertas à participação dos representantes da sociedade civil - por excelência, os parlamentos, já que as sociedades europeias não seguiram o presidencialismo;

  • das organizações que agrupam aqueles que querem representar a sociedade civil nas instituições do processo decisório - os partidos políticos;

  • dos processos de escolha dos representantes da sociedade civil - as eleições.

Nessa forma de democracia, a relação que articula sociedade política e sociedade civil é o processo eleitoral. É por meio do processo eleitoral que a sociedade civil atua na sociedade política. No Brasil, todas as pessoas acima de 16 anos têm o direito de votar, de eleger quem vai representá-la no processo de tomada de decisões, seja no âmbito do município, do estado ou da união.

Hoje, a democracia representativa é majoritária na sociedade ocidental. Em países como o Brasil e os EUA, que adotaram regimes presidencialistas, a participação dos representantes no Poder Executivo torna-se até mais importante do que no Legislativo. Nos EUA, inclusive, há instâncias do Judiciário que são ocupadas por representantes eleitos da sociedade civil.

Por ser a forma de democracia sob a qual se vive, muitas vezes esquece-se de que o processo que consolidou a democracia representativa não foi, nem de longe, pacífico. Para chegar ao patamar poliárquico - quando as sociedades têm uma forte participação eleitoral em instituições historicamente legitimadas pela sociedade, mas que ainda não conseguiram desconcentrar poder em larga escala nem superar determinados privilégios - foram necessárias muitas guerras, mortes, sofrimento e dor.

Essas lutas têm de ser valorizadas, lembradas e exaltadas. A necessidade de aperfeiçoamento, até mesmo de revolução é essencial para a democracia. Mas não é possível considerar que o que precisa ser aperfeiçoado “não serve para nada”, a não ser que se defenda as respostas autoritárias.

A Crise da Democracia Representativa

A partir dos anos 1960, a democracia representativa enfrentou uma crise poderosa: os cidadãos, a sociedade civil, progressivamente, deixaram de se considerar representados pelos representantes que elegeram.

A perseverança da não identificação dos laços de representação, a despeito dos representantes, de seus partidos e da alternância de poder, conjugada à perseverança (ou ao aumento) de condições indignas de vida, de desigualdade e de violências promovem a desilusão do eleitor com os eleitos e com as instituições da sociedade política. É esta desilusão que produz o risco de a sociedade civil deslegitimar a democracia representativa.

É importante notar que a crise da democracia representativa é potencializada pela piora das condições de vida, pelo aumento/persistência da desigualdade e pela repressão das liberdades. Em cada sociedade, tais problemas terão pesos e importâncias próprias, mas sempre estarão relacionadas ao agravamento da crise. Assim, a crise da democracia representativa, que se expressa por meio da desilusão do representado com seu representante, é também - ou principalmente — uma expressão de resposta extrema a condições de vida degradantes.

De certa maneira, a crise da democracia representativa indica que a sociedade política está novamente se afastando da sociedade civil, sob o risco de fazê-lo de formas que escondem um viés autoritário. Em situações como esta, aqueles que são eleitos são acusados pelos eleitores de não atuarem na sociedade política de forma a garantir os interesses dos representados.

Vamos iniciar o debate sobre a democracia como solução para participação social? Ouça o áudio.

A crise da Democracia Representativa (11:53)

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Democracia Participativa como Solução para a Crise da Democracia Representativa

A democracia participativa tem sido a resposta mais promissora que as sociedades modernas têm desenvolvido para resolver a crise da democracia representativa. É verdade que ainda não há sociedade que tenha implementado essa resposta de maneira intensa e ampla, mas há cada vez mais sociedades que constroem instituições participativas em determinados setores de suas políticas, logrando sucessos, apontando possibilidades amplas de replicação, de intersetorialização e de universalização. E o Brasil, com o SUS, insere-se nesta situação.

A crise da democracia representativa aponta para o fato de que os representantes decidem por políticas e leis que não atendem aos interesses dos representados e também porque os representados, depois de participarem das eleições, não atuam no processo decisório. Uma solução plausível para isto é que os representados participem não apenas das eleições, mas de todas as etapas do processo decisório das políticas públicas. Esta forma de participação é a base das propostas de democracia participativa.

Para avançar nesta forma de participação, faz-se necessário pensar o processo decisório como um ciclo composto por determinadas etapas. Stephen Ball, cientista político que atua majoritariamente no campo da educação, defende que o processo decisório das políticas públicas é formado pelo ciclo de políticas.

O ciclo de políticas envolve todo o processo que tem como objetivo promover a superação de um problema social, sendo composto, com maior ou menor grau de importância, por diferentes etapas. Suas etapas podem ser observadas em qualquer política pública, o que permite analisar em quais delas a sociedade civil participa e como participa.

Para esta aula, o modelo foi adaptado para facilitar a compreensão do processo decisório e, sobretudo, a solução proposta pela democracia participativa.

Ciclo de políticas - modelo adaptado

Modelo adaptado do ciclo de políticas, são dois círculos, o primeiro é o círculo A, é menor e dentro dele está as eleições com uma linha que segue para os representantes, o segundo círculo é o B, ele é maior, os dois círculos fazem uma pequena interseção. No topo do círculo B está a sociedade civil, a etapa 1 é a agenda, uma linha segue para a etapa 2 que é a formulação, da etapa dois segue uma linha para a etapa 3, a implementação, dessa etapa a linha segue para a 4, a execução e por último a etapa 5, monitoramento e avaliação, da última etapa uma linha segue para a etapa 2, onde o ciclo recomeça.

Esse ciclo de políticas é um modelo inspirado pela proposta de Ball.
Fonte: elaboração dos autores

A democracia participativa pressupõe a participação da sociedade civil não apenas no processo eleitoral de escolha de representantes, mas também, em uma, algumas ou em todas as etapas do ciclo de políticas, que representa o processo de tomada de decisão. Defendemos que a participação mais importante é a que se concentra nas etapas de agenda e formulação, pois, nestas etapas, a sociedade civil pode efetivamente colocar seus problemas e suas propostas de solução. Isto não significa que a participação nas demais etapas seja desnecessária.

A democracia participativa, então, não se opõe à democracia representativa. Elas se articulam. A participação da sociedade civil no ciclo de políticas areja a democracia representativa em crise. Isso ocorre porque distribui parte do poder decisório para os membros da sociedade civil que vão participar do processo decisório. Esta inovação gera reações contrárias àqueles que, na sociedade política, discordam desta redistribuição de poder, considerando-a como usurpação. Tais reações justificam que a simplicidade da proposta da democracia participativa seja compreendida como uma radicalização da democracia.

Portanto, o desafio é criar, aperfeiçoar, potencializar e legitimar instituições participativas que apliquem o processo decisório e que promovam a participação da sociedade civil. Boaventura de Sousa Santos destaca isto em seu livro Reinventando a Democracia (acesse o livro na página do autor).

Então, defende-se aqui que a democracia participativa é a melhor forma de superar a crise da democracia representativa. Porém, esse processo de superação está em seu início histórico, precisando avançar muito. A crise das democracias intensifica-se no Brasil, na América Latina, na Europa, nos Estados Unidos … Nesses países, os defensores de soluções autoritárias não se preocupam mais em criar artifícios que encubram seus objetivos, agindo pública e ostensivamente em prol da derrubada da democracia.

Instrumentos de participação democrática

A redemocratização brasileira, iniciada nos anos 1980, superou a ditadura militar que se abateu sobre o País em 1964, sobrepujando por algum tempo os segmentos que defendem respostas autoritárias. Esses segmentos, no entanto, recuperaram poder na segunda metade dos anos 2010. Atualmente, a disputa entre aqueles que defendem respostas autoritárias e os que defendem a democracia se encontra em níveis extremamente tensos e arriscados.

Auge desse processo de redemocratização, a Constituição Federal de 1988 define a existência de instrumentos democráticos que devem compor uma política para que possa ser considerada como participativa:

Referendo

Quando o governo toma uma decisão e chama os cidadãos para decidirem se concordam ou não que ela seja colocada em prática. A decisão é finalística.

Plebiscito

Os cidadãos orientam qual será a decisão que o governo vai tomar. Feita por votação do tipo Sim/Não.

Iniciativa Popular

É a participação direta na etapa de agenda do ciclo de políticas. Garante que uma proposta de política ou lei proposta pela sociedade civil seja priorizada pelo Congresso Nacional. Precisa ser amparada pela a assinatura de 1% dos eleitores (0,3% dos eleitores de pelo menos 5 Estados).

Esses instrumentos já foram acionados, embora poucas vezes: plebiscitos sobre parlamentarismo x presidencialismo, monarquia x república; referendo sobre desarmamento; e iniciativa popular que criou, por exemplo, a Lei que torna crime a compra de votos.

Outro instrumento participativo muito importante, que teve seu auge em administrações municipais nos anos 1990 e 2000, foi o orçamento participativo, no qual, de maneira geral, a sociedade discute que políticas são prioritárias e quanto recurso do fundo público deve ser alocado nessas políticas.

Por meio do orçamento participativo, o fundo público é democratizado. O poder de decisão sobre sua alocação é redistribuído do Executivo e do Legislativo municipais para as instituições participativas que ambientam a tomada de decisões, com participação direta da sociedade civil. Atualmente, esse instrumento entrou em desuso. Mas não há motivos para considerá-lo como inviável, arcaico ou superado. Pelo contrário, deveria ser aperfeiçoado. Há uma outra inovação participativa desenvolvida no Brasil, talvez a mais importante de todas, os conselhos gestores de políticas públicas. Eles foram fruto da redemocratização do país, iniciada em 1980 e têm em sua composição a sociedade civil organizada. Em alguns, também participam: o poder público, os trabalhadores do setor, os prestadores privados e outros atores políticos interessados. Os desenhos são variados, mas o objetivo é sempre o de viabilizar a participação da sociedade civil no processo decisório.

Os conselhos foram criados para quase todas as suas políticas sociais em nível municipal, estadual e federal. Saúde, Educação, Assistência Social, Infância e Juventude são exemplos de setores das políticas sociais que desenvolveram conselhos gestores. Com menos intensidade, mas não menos importante, desenvolvimento social e econômico também se incorporaram a esta prática.

Maria da Glória Gohn, em um livro muito interessante, apresenta um histórico da trajetória dessa proposta, inclusive, seu desmanche. Em 2019, o Decreto nº 9.759/2019 extinguiu praticamente todos os conselhos gestores existentes no Brasil. Dos 2.593 em atuação, apenas 32 foram mantidos. E só o foram porque tinham leis de criação aprovadas pelos Poderes Legislativos, o que não permite que um decreto presidencial os extinga. Esta foi uma reação clara de oposição e ataque, por parte da sociedade política, às instituições participativas, desgastando ainda mais a democracia no país.

Em alguns setores das políticas sociais, além dos conselhos gestores, outra instituição participativa também foi desenvolvida: as conferências. Nestas, a sociedade civil é protagonista e os gestores ou não participam ou têm papel de apoio. As conferências formam um binômio com os conselhos, cabendo à conferência definir as linhas de atuação, os rumos e metas de uma determinada política setorial durante um determinado período; e aos conselhos, a responsabilidade por concretizar tais rumos e metas em políticas públicas.

É muito importante para o aperfeiçoamento democrático brasileiro, que esses instrumentos participativos sejam acionados de forma constante, articulada e não episódica. Os partidos políticos que defendem o aperfeiçoamento democrático precisam desenvolver formas de governar por meio desses instrumentos. Por sua vez, a sociedade civil deve se organizar para pressionar a sociedade política a incluir esses instrumentos em seus processos decisórios.

Caso SUS: exemplo de democracia participativa no Brasil

Nesse binômio de instituições participativas, conselhos-conferências, o setor saúde foi o que mais logrou sucesso e avanços, em um processo político que foi pensado para estruturar o Sistema Único de Saúde (SUS) e que vai permitir a aplicação do modelo que, ao longo dessa aula foi construído, num esforço de articular teoria e prática, base de qualquer explicação científica. Vamos ampliar esse debate? Ouça o áudio:

SUS: Exemplo emblemático da democracia participativa (18:21)

Se preferir, leia sobre essa discussão aqui.

Considerações Finais

Entre 2006 e 2008, coordenei o ParticipaNetSUS, a primeira pesquisa que elaborou e analisou o perfil de todos os conselhos estaduais e municipais de saúde do país. Naquele momento, identificou-se que, depois de quase duas décadas, as 27 unidades da federação e os 5.565 municípios do país tinham criado seus conselhos de saúde, em um processo que permitiu a geração de mais de 52 mil vagas de conselheiros de saúde (o que supera o número de vereadores do País), sendo algo em torno de 26.000 vagas para representantes das entidades que representavam os usuários do SUS.

Como os conselhos de saúde são responsáveis pela organização das conferências de saúde, periodicamente (teoricamente, a cada 4 anos) há um amplo processo de debates sobre os rumos do SUS, representado por uma dinâmica de ascensão, iniciada com as conferências municipais de saúde, que indicam temas e representantes para as conferências estaduais de saúde que, por sua vez, indicam temas e representantes para a conferência nacional de saúde.

Muitas políticas de saúde de âmbito federal, estadual e municipal foram efetivamente deliberadas nos conselhos - foram inseridas na agenda, formuladas, tiveram sua implementação acompanhada, avaliada e reformuladas. Destaque-se, como exemplo em âmbito nacional, as políticas de equidade, voltadas para a saúde dos segmentos mais marginalizados da sociedade, como quilombolas, população LGBTQIA+, população ribeirinha e etc.

Mais ainda: ao longo de seus mais de trinta anos, o cotidiano do SUS ampliou a prática participativa, expandindo a ideia de conselhos gestores para as unidades de saúde, criando conselhos distritais, comitês de discussão de equidade, ampliando a participação dos usuários no dia-a-dia da atenção básica e etc.

Isto posto, é possível afirmar que, efetivamente, o Brasil construiu, com dificuldades e limites, um sistema participativo na gestão da política de saúde, seja em âmbito municipal, estadual ou da União. E foi este sistema participativo que viabilizou a aplicação do modelo de análise construído na primeira parte da aula.

Para que isto fosse possível no tempo-espaço de que se dispõe, foi necessário produzir generalizações, sínteses, saltos temporais e uma série de outros procedimentos típicos da teoria política e da análise de políticas, ainda mais quando submetidas a justos limites didático-pedagógicos.

Precisou-se, também, contornar o debate sobre determinados problemas, sobretudo os que se referem aos conselhos de saúde. Com toda certeza, tais problemas e críticas são fundamentais para que alunas e alunos possam avançar em seus caminhos democráticos e científicos, utilizando esta aula como um ponto de partida.

Que tal colocar em prática seu aprendizado?

Propomos cinco atividades formativas. Elas não contam ponto para sua certificação nesse curso - mas são importantes para você refletir sobre o que discutiu e aprendeu nas últimas duas aulas. São atividades que envolvem pesquisas na web e autorreflexão sobre o assunto e precisam de algum tempo para serem realizadas.

Ouça as orientações e coloque em prática o seu aprendizado. Os links de acesso aos materiais citados no áudio estão em Referências comentadas.

Instrução das atividades formativas (04:46)

Se preferir, leia sobre essa discussão aqui.

Incentivamos você a compartilhar o resultado dessas atividades com seus colegas e nas suas redes sociais - e lembre-se de marcar o Campus Virtual Fiocruz.

Você chegou ao final da aula

Nessa aula, você conheceu os instrumentos de participação democrática, analisou a participação da sociedade no SUS; refletiu sobre instituições e políticas participativas no Brasil e na saúde; compreendeu os conceitos de democracia, sociedades política e civil e analisou a interação entre esses conceitos.

Siga em frente!

Referências comentadas

De diferentes maneiras, os temas e debates abordados nesta aula estão presentes em quase todos os grandes autores dos séculos XIX e XX. Aqui, pretende-se ressaltar alguns que consideramos capazes de contribuir bastante com o seu caminho democrático e científico.

O primeiro autor é Marx. Considerado um dos fundadores das ciências sociais, faz parte de um grupo de autores cuja obra deve ser lida na íntegra. Pensando, contudo, nas discussões desta aula, duas obras destacam-se: 'A Questão Judaica' e 'A Ideologia Alemã', em que ele dedica-se a discutir as relações entre sociedade política e sociedade civil, enfocando a emancipação humana.

Quem avançou dentro do campo do marxismo nessa discussão foi o italiano Antônio Gramsci, que atualiza a discussão de Marx para o contexto da Itália fascista de Mussolini, na qual morreu no cárcere, daí o nome uma de suas obras 'Cadernos do Cárcere', uma análise impressionante da ascensão de uma resposta autoritária, repressora e assassina. Outras obras de Gramsci discutem a questão da relação entre sociedade política e sociedade civil, em especial 'Maquiavel, a Política e o Estado Moderno'.

O cientista político Norberto Bobbio, em 'O Conceito de Sociedade Civil', retoma a discussão de Gramsci ao pensar nas sociedades democráticas do pós-segunda guerra mundial, produzindo uma análise original e não-marxista de Gramsci.

O português Boaventura de Souza Santos e o brasileiro Leonardo Avritzer, reforçam a ideia da articulação entre democracia representativa e participativa em 'Reinventando a Democracia'.

Em outro campo de reflexão, a teoria pluralista tem um autor extremamente relevante, Robert Dahl, que tem vários livros discutindo a democracia, em especial a democracia representativa liberal. 'Sobre a Democracia' e 'Poliarquia' são dois livros fundamentais.

Um estudo amplo com forte base empírica que ajuda a discutir a proposta de Dahl é o de Arend Lijphart, 'Modelos de Democracia'.

Também para aprofundar esta discussão, Adam Przeworski, com um texto instigante chamado 'Ama a Incerteza e Serás Democrático', é uma referência importante, focalizando o debate nas sociedades modernas, em especial as que surgiram com o fim da União Soviética. Recentemente, este autor lançou o livro 'Crises da Democracia', no qual dedica uma parte a discutir o Brasil do século XXI.

Hannah Pitkin discute a contradição essencial da representação política – o representante deve seguir o interesse do representado (particular) ou o interesse do País (geral) – em seu 'The Concept of Representation', ajudando a compreender os limites teóricos e práticos da democracia representativa.

Joshua Cohen ('Democracia y Libertad'), John Dryzek ('Legitimidade e Economia na Democracia Deliberativa'), Archon Fung ('Receitas para Esferas Públicas: oito desenhos institucionais e suas consequências) e Bernard Manin ('On Legitimacy and Political Deliberarion), são autores que aprofundam com muita qualidade a questão da democracia deliberativa, essencial para o futuro dos conselhos de saúde e das instituições participativas.

Stephen Ball é o autor que pensa o ciclo de políticas ('Policy Cycle Approach') e que aqui foi adaptado para a análise da democracia participativa.

Tendo como foco o SUS e os Conselhos de Saúde, há a minissérie Saúde em Cena - 12 episódios (disponíveis no YouTube). Originalmente, a série foi elaborada para o QualiConselhos e contribuiu para formação de mais de 8 mil conselheiros e lideranças de saúde no país.

Fonte: YouTube - Canal Saúde em Cena

Transcrição

Há, também, uma grande quantidade de autores e autoras - no qual estão incluídos os autores dessa aula - que produziram obras ensaísticas ou baseadas em pesquisas empíricas, que podem ser acessadas por meio da base Scielo.

Para não ser injusto com ninguém e, ao mesmo tempo, homenagear um grande companheiro, que foi protagonista de todo o processo de lutas enfocado nesta aula, destaco duas obras de Antônio Ivo de Carvalho, pioneiro dos estudos sobre conselhos de saúde:

Imagem da Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho

Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho, resgatou o Movimento pela Reforma Sanitária, suas disputas internas, o papel do Partido Comunista, as concepções de saúde, o processo de universalização branca que antecedeu o SUS e muito mais.

Imagem da Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social

Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social, onde foi formulador e gestor de muitos avanços do SUS.

REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS:

WRIGHT, E. O. Análise de classes. Rev. Bras. Ciênc. Polít., n. 17, p. 121-163, 2015. Disponível em: http://scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-33522015000300121&lng=pt&nrm=iso

AVRITZER, L. Sociedade civil e Estado no Brasil: da autonomia à interdependência política. Opinião Pública, v. 18, n. 2, p. 383-398, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/op/a/6pHpmRWCWhM57s9svCdHZyB/?format=pdf&lang=pt

NOGUEIRA, M. A. Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Rev. Bras. Ci. Soc., v. 18, n. 52, p.185-202, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/tyZJSkmmgkB9kmwWxydQ67v/?format=pdf&lang=pt

SANTOS, W. G. Poliarquia em 3D. Dados, v. 41, n. 2, p. 207-281, 1998. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/H5WXcbFfmrpb8VwyckmqhnC/?lang=pt

PITKIN, H. F. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/pSDrmVSqRqggw7GXhxBjCgG/?format=pdf&lang=pt

FUKS, M. et al. Qualificando a adesão à democracia: quão democráticos são os democratas brasileiros?. Rev. Bras. Ciênc. Polít., n. 19, p. 199-219, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/4gpFcKSDsMVXg9JjHYZw3Cg/?format=pdf&lang=pt

MANIN, B.; PRZEWORSKI, A.; STOKES, S. Eleições e representação. Lua Nova, n. 67, p.105-138, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/WzLctJ6mDBHky5PhBYsHHcQ/?format=pdf&lang=pt

URBINATI, N. Crise e metamorfoses da democracia. Rev. Bras. Ci. Soc., v. 28, n. 82, p.05-16, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/tXTVfVbN3dSGWSQ6YRTnSMQ/?format=pdf&lang=pt

EPSTEIN, I. O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa. Estudos Avançados, v.11, n. 30, p. 273-291, 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/GmwJCwtv8cXHbJT5tGPmTCz/?format=pdf&lang=pt

MIGUEL, L. F. Resgatar a participação democrática participativa e representação política no debate contemporâneo. Lua Nova, n. 100, p. 83-118, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/dLkRQT88JKty5dWBWKKm4vL/?format=pdf&lang=pt

BARREIRO, G. S. S.; FURTADO, R. P. M. Inserindo a judicialização no ciclo de políticas públicas. Rev. Adm. Pública, vol. 49, n. 2, p. 293-314, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/QhFKxBfp3khnh89dtDNwS3D/?format=pdf&lang=pt

SIQUEIRA, L. F; MARZULO, E. P. Da democracia participativa à desdemocratização na cidade: a experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre. Cadernos Metrópole, v. 23, n. 50, p. 399-422, 2021. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/2236-9996.2021-5016/33811. Acessado em: 6 ago. 2021.

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