Tarja Aula 2

Planejamento de ações de comunicação em saúde

Objetivos de aprendizagem:

Ao final desta aula, você será capaz de:

  • Compreender a comunicação como um direito humano.

  • Conhecer os elementos básicos do planejamento de ações de comunicação em saúde.

  • Analisar ações de comunicação no âmbito da saúde.

A comunicação como direito humano

Comunicar é um direito humano. Esta mensagem está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948, que em seu artigo 19 afirma:

Declaração Universal dos Direitos Humanos Fonte: ONU Brasil

“todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias, por qualquer meio de expressão”.

No entanto, a forma como as sociedades usualmente compreendem o que é comunicação termina por naturalizar um acesso insuficiente a esse direito.

De modo geral, se tem programação na TV, se conseguimos acessar à Internet e falar ao celular, se há jornal na banca, entendemos que nosso direito à comunicação está garantido. No entanto, comunicar envolve não apenas receber, mas também difundir informação. Por isso, para que o direito à comunicação seja plenamente exercido, é preciso viabilizar os meios que permitam a expressão pública de ideias, propostas e opiniões.

Conexão em nível global

A popularização da Internet, a partir dos anos 1990, fez acreditar que, finalmente, o direito à comunicação havia sido universalizado. De repente, indivíduos conectados podem produzir e disseminar conteúdos em escala planetária com autonomia. Afinal, de acordo com a Digital 2021: Global Overview Report, a cada dia, 900 mil novas pessoas no mundo se tornam usuárias de redes sociais. Mas a conexão ao mundo digital não representa, por si só, a solução do problema, mesmo porque este acesso à rede está condicionado a outras inclusões.

500+ horas de conteúdo adicionadas a cada minuto “500+ horas de conteúdo adicionadas a cada minuto” (tradução livre). Fonte: YouTube Imprensa

Para usufruir, em sua totalidade, dos benefícios prometidos pelas tecnologias de informação e comunicação, o indivíduo precisa ser alfabetizado e ter um mínimo de recursos financeiros ou sociais que lhe possibilite o contato físico com um computador conectado a uma rede de qualidade. Por isso, na chamada “sociedade da informação”, os excluídos continuam os mesmos, só mudando (ou aumentando?) a exclusão.

Desigualdade de acesso

A desigualdade no acesso das populações mundiais às tecnologias de informação e comunicação foi escancarada durante a recente pandemia de COVID-19. Focando nesse problema, em maio de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou o Roteiro para Cooperação Digital.

Segundo o Roteiro, enquanto, em média, 87% dos habitantes de países desenvolvidos utilizam a Internet, a porcentagem é de apenas 19% da população nos países pobres.

Acesso da população mundial à internet

O acesso insuficiente à Internet relaciona-se, por exemplo, ao uso exclusivo do celular como meio de acesso. Por mais que avancem em termos de aplicabilidade, um celular nunca oferece as mesmas possibilidades de um computador, especialmente se o desejo for produzir e transmitir informação. Mas como é barato, segundo a União Internacional de Telecomunicações o acesso à Internet por celular é o que mais cresce no mundo: 400% nos últimos cinco anos.

Some-se à questão do celular, o custo para o consumo de dados. Na América do Norte e na Europa, em média, cada cidadão consome 16GB por mês. Na América Latina essa média é de 5GB, e na África é de 4GB. O motivo da diferença é simples: nos países pobres as pessoas não têm dinheiro para contratar planos de dados que garantam um acesso satisfatório à rede mundial de computadores.

Mas a conexão ao mundo digital não representa por si só a solução do problema, mesmo porque este acesso à rede está condicionado a outras inclusões. Acesso apenas pelo celular e planos bastante restritos contribuem para este contexto de exclusão. A média dos planos pré-pagos no Brasil é de 1GB por mês. Com esse limite um indivíduo pode: assistir a 3 vídeos de 15 minutos por mês, ou navegar 20 minutos por dia na Internet (e-mail e webpages).

Acompanhar uma única transmissão ao vivo (live) pode consumir todo o plano de dados do mês, e assistir filmes em servidores de streaming como o Netflix é impossível. Ou seja, a condição socioeconômica do indivíduo restringe seu pleno acesso ao direito de se comunicar. Cidadãos pobres, quando têm acesso à rede, devem se contentar em receber informações, que o fazem muitas vezes via WhatsApp, ficando restrito apenas à sua rede de contatos.

Quanto vale 1GB

Em outras palavras, a condição socioeconômica tem restringido o pleno acesso de mulheres e homens ao direito de se comunicar. Cidadãos pobres, quando têm acesso à rede, devem se contentar em apenas receber informações. Disseminar ideias por meio da Internet é algo que não está ao alcance de todas as pessoas.

A rede internacional de computadores, que surgiu em 1969, sob a promessa de democratizar a comunicação no mundo, hoje reproduz as desigualdades do sistema socioeconômico que financiou seu desenvolvimento. É muito importante ter clareza desse contexto na hora de planejar uma ação de comunicação.

Comunicação em saúde

A maioria da população entende saúde como ausência de doenças. Mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde como o completo bem-estar físico, psíquico e social. Para que alguém esteja saudável, além de fazer exercícios e se alimentar bem, precisa ter acesso a saneamento básico, coleta de lixo, precisa ter tempo para praticar atividades físicas, para se divertir e conviver com a família. Sem falar que precisa de um emprego. Ah! E precisa de educação também. Ou terá dificuldade de conseguir um emprego bom o suficiente para dar conta de suas necessidades. Portanto, a saúde não é meramente uma questão de escolha do indivíduo. Questões econômicas, políticas e ambientais influenciam na situação de saúde das populações.

Essa dimensão coletiva da saúde é um aspecto já há muito tempo discutido. Em 1978, durante a Conferência de Alma Ata, no Cazaquistão, 134 países e 67 organismos internacionais se comprometeram com essa abordagem. No entanto, até hoje, a comunicação que predomina no âmbito da saúde parece persistir na ideia de que o bem-estar da população depende unicamente da mudança de hábitos e comportamentos.

Diante de uma epidemia, por exemplo, diferentes esferas governamentais realizam “campanhas” por meio da distribuição de cartazes, propagandas de rádio e tv e, hoje, nas redes sociais, com a crença de que isso bastará para que a população “faça a sua parte”.

Cartaz de campanha pelo uso de preservativoCartaz de campanha pelo uso de preservativo, nos anos 2000, e cartazes produzidos na década de 1930, para campanhas em saúde - mensagens unidirecionais. Fonte: esq. Ministério da Saúde – Página no Facebook – dir. Batista, 2019

Analisando as abordagens comunicacionais

É preciso um olhar crítico sobre essa abordagem. Em primeiro lugar, porque a mudança de comportamentos individuais não é suficiente para enfrentar contextos epidêmicos e outros agravos à saúde coletiva. De nada adianta você colocar areia no pratinho do seu vaso de planta, se a sua casa estiver localizada do lado de um vazadouro de lixo. O mosquito da dengue ainda estará por perto.

Durante a pandemia de COVID-19, o desejo de cada cidadã ou cidadão não tem sido suficiente para garantir o distanciamento físico. Há pessoas que não podem trabalhar de casa e precisam sair para conseguir o sustento. Há empresários e empresárias que não podem fechar as portas sem ter de demitir seu pessoal. Governos precisam garantir medidas de alcance coletivo, que permitam a adesão às medidas de segurança.

Além disso, ter contato com uma informação não é suficiente para que alguém mude seu comportamento. A informação de que o uso do preservativo previne contra o contágio pelo HIV é amplamente disseminada há muitos anos. E ainda assim muita gente deixa de usar a camisinha. O modelo que, ainda hoje, orienta boa parte das ações de comunicação em saúde no Brasil (as chamadas “campanhas”) se relaciona com as primeiras teorias utilizadas para explicar os processos comunicacionais - modelo informacional de comunicação.

Modo linear básico de comunicação

O esquema acima pressupõe que a mensagem chegará ao “receptor” exatamente como foi idealizada pelo emissor. Mas essa é uma situação impossível, já que a idade, o gênero, o lugar onde mora, a história de vida, a orientação sexual, o poder aquisitivo de cada pessoa, tudo influencia na forma como recebemos uma mensagem. O ato de comunicar é complexo e não termina quando afixamos o cartaz, exibimos o vídeo, ou postamos na rede social. Na verdade é aí que tudo começa.

O modelo que mais se aproxima da complexidade que envolve os processos de comunicação é o modelo de comunicação em rede.

Modelo de comunicação em rede

Nesse modelo a comunicação não se dá numa “linha reta” e em direção única. Na verdade, todos somos emissores e receptores simultaneamente, recebendo, elaborando e reelaborando mensagens e “passando adiante”. No WhatsApp, por exemplo, todos os dias desempenhamos esses papéis.

É claro que a possibilidade de enviar uma mesma mensagem a um número enorme de pessoas ao mesmo tempo, amplia muito o impacto de uma informação. O que é noticiado pela TV chega a milhões de pessoas num mesmo momento, pautando as conversas em milhares de residências, bares e perfis de redes sociais. Mas, dependendo do contexto, uma informação que é transmitida por alguém próximo, ou que vive a mesma situação, pode ter uma capacidade muito maior sobre o cotidiano da pessoa.

Como garantir uma ação eficaz de comunicação no nível local, mesmo sem dispor de meios massivos para disseminar informação?

Tudo depende de dois aspectos:

  • A capacidade de estabelecer diálogo com os grupos sociais com quem você precisa ou deseja interagir.
  • A capacidade de contextualizar as informações, ou seja, dar sentido às informações que você vai disseminar, no contexto em que vão circular.

Por exemplo: se você quer convencer as pessoas a combaterem o vetor da dengue em uma determinada comunidade, melhor falar quantos casos da doença foram registrados no próprio território, do que trabalhar com os dados do país. Isso facilita às pessoas se apropriarem da discussão.

Fica claro que só é possível contextualizar as informações se houver diálogo com o grupo interlocutor. É preciso “ouvir”, conhecer a situação das pessoas, antes de lhes fazer qualquer recomendação.

Planejamento de ações de comunicação em saúde

No início dos anos 2000, numa favela brasileira, na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, havia um grupo de jovens moradores que estava dedicado à produção de vídeos. Eles os exibiam para a comunidade, com telão e projetor, em espaços públicos e ao ar livre. O tema abordado era, na maioria das vezes, questões ambientais.

Numa dada reunião os jovens discutiam o próximo vídeo e se perguntavam o que deveria constar no roteiro para convencer os moradores a jogar o lixo no lugar certo. Em dado momento, depois de muitas ideias apresentadas e rejeitadas, uma das jovens (na época com 18 anos) desabafou:


“eu não sei como convencer alguém a não jogar o lixo na rua. Eu mesma só parei com isso depois que fiz um vídeo sobre o assunto”.


Essa é uma história real e demonstra a importância de considerar o “público” como um interlocutor, ou seja, alguém com quem será estabelecido diálogo, e não como um ser passivo, “vazio” de conhecimentos, em quem serão depositadas as informações “corretas”, a serem imediatamente incorporadas.

Por isso, deve-se buscar espaço para troca e continuidade ao planejar uma ação de comunicação. É preciso criar oportunidade para reflexões, dúvidas, desconfianças e voltar a ouvir/ler/ver sobre o tema, manifestando novas impressões, e assim por diante até que uma mensagem consensual seja apropriada por todas as pessoas envolvidas no processo.

Etapas do planejamento de comunicação

E como planejar etapas de comunicação?
Não há uma resposta única, ou uma fórmula que se aplique a todos os contextos. Mas algumas dicas podem ser úteis na condução de um planejamento de comunicação.

Para conhecer melhor o seu interlocutor dentro do território, busque informações:

  • Com quem você quer falar? Com toda a comunidade? Só com os jovens? Só com as mulheres?
  • Qual a escolaridade média das pessoas?
  • Quais são seus hábitos?
  • Elas têm acesso à Internet?
  • Qual a qualidade desse acesso?
  • Existe uma rádio comunitária por perto?
  • Seus interlocutores costumam ouvi-la?

Se quem está promovendo a ação de comunicação é uma liderança comunitária, ou um grupo que já atua com comunicação no local, possivelmente essas perguntas já estejam respondidas. Caso contrário, o primeiro passo é ir atrás dessas informações.

Definir um objetivo é desafiador, porque tendemos a querer falar sobre muitas coisas. Tente identificar o que é mais importante, ou qual é a mensagem que mais facilmente abrirá caminho para um maior número de outros temas.

Por exemplo: se você pensar uma estratégia de comunicação no âmbito da pandemia de Covid-19, centrada na mensagem “Use máscara”, provavelmente essa mensagem suscitará entre seus interlocutores perguntas e comentários sobre outros temas, como a vacinação, o isolamento social, etc. Se no seu planejamento você prever momentos de diálogo com esse público, haverá oportunidades para abordar outras informações.

Conhecendo seu público interlocutor, tendo claro seu objetivo, o próximo passo é definir as mídias com as quais você quer trabalhar.

Por exemplo: se na comunidade o acesso à Internet for precário, postagens em Facebook, ou divulgação de vídeos (mesmo por WhatsApp) podem não ser boas ideias, pois as pessoas terão dificuldade de acessar.

Rádios comunitárias ou carros de som podem ser alternativas, nesse caso. Se você quer chamar a atenção das pessoas para o uso de máscaras, cartazes são uma boa opção, mas se você quer tirar dúvidas sobre a vacina, possivelmente vai ter muito texto para colocar num cartaz. Melhor repassar por WhatsApp (com um texto ou com um áudio). Se possível, articule o uso de duas ou mais mídias para trabalhar a mesma mensagem, de modo que uma mídia complemente e reforce a outra. Outro aspecto diretamente relacionado às mídias, é a linguagem.

Produza um material que dialogue com os interesses do público interlocutor.

A melhor pessoa para orientar a comunicação com determinado grupo, é alguém que pertença a esse grupo. Por isso, se possível, chame representantes dos grupos com quem você quer falar para ajudar a pensar nas mensagens. E lembre-se das mídias escolhidas!

Por exemplo, se você quer falar com jovens em uma favela, usar música de fundo em um áudio que vai enviar pelo zap pode ser uma boa ideia. Se você quer falar com toda uma comunidade, um pequeno vídeo apresentado por um morador muito conhecido pode ser eficaz. É também nesse momento do planejamento que você vai decidir com que tipo de mídia você vai trabalhar. Se na comunidade onde você pretende atuar o acesso à Internet é difícil, as redes sociais não são a melhor alternativa. Se existe uma rádio comunitária no local, ela pode ser uma parceira importante. Tudo depende do Diagnóstico.

Depois de ler o panfleto, de ver o cartaz, ou de assistir ao vídeo, as pessoas vão comentar e conversar sobre o que viram/leram. Em casa, na padaria, na unidade de saúde, etc. É importante que, como produtor da mensagem, você se coloque nesse diálogo e continue as ações de comunicação a partir dele.

Por exemplo, se você espalha cartazes pedindo para as pessoas usarem máscaras, pode conversar com os profissionais da unidade básica de saúde da comunidade, para que eles perguntem aos moradores da comunidade se viram o material e o que acharam. Converse, especialmente com os e as agentes comunitários de saúde (ACS), pois eles vão de casa em casa e têm um contato direto com a comunidade. Você também pode deixar caixas próximas aos cartazes para que as pessoas depositem suas opiniões. Pode, ainda, divulgar um número de WhatsApp no cartaz, um canal de comunicação para construir o diálogo.

Acompanhe alguns exemplos hipotéticos de planejamento de comunicação

Caso 1
Caso 2

Experiências reais de comunicação

Acompanhe duas experiências da América Latina bem ativas na comunicação em saúde.

Lanceros Digitales (Equador)

Coletivo de jovens indígenas que apoia diretamente as ações dos movimentos nacionais indígenas do país, como a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e a Confederação de Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana (CONFENAIE). É um grupo bastante ativo nas redes sociais, com inúmeras campanhas, e possuem um trabalho muito interessante de comunicação, tanto voltado para os povos indígenas como para a sociedade equatoriana como um todo. Conheça mais na página do Facebook Lanceros Digitales.

Indique uma Preta (Brasil)

Coletivo de jovens mulheres negras que, através das redes sociais, mobilizam, motivam e subsidiam mulheres negras que desejam ingressar no mercado de trabalho nas áreas de comunicação, publicidade, marketing e cultura. Elas mantêm um grupo no Facebook - Indique Uma Preta - com mais de 8 mil participantes e um perfil no Instagram - @indiqueumapreta - onde dialogam com suas interlocutoras.

Para colocar a mão na massa

Muitas vezes uma ação estratégica de comunicação não implica na produção de mídias. É possível, por exemplo, aproveitar materiais já existentes e apenas pensar em uma estratégia de como fazê-los circular junto ao público com quem você deseja dialogar. Mas se houver a necessidade de produzir, seguem aqui alguns links que podem ajudar:

Resumo da aula

A comunicação é um direito humano, cujo acesso condiciona o atendimento de outros direitos, como a saúde. O direito a comunicar envolve não apenas receber, mas também formular e disseminar mensagens. Nesse sentido, embora a Internet tenha sido desenvolvida sob a promessa de democratizar as comunicações de massa, verificamos que tal promessa não se cumpre, haja vista que o acesso à Internet não está universalizado. No campo da saúde as ações de comunicação têm se restringido à busca de mudança de comportamento dos indivíduos, o que resulta em estratégias ineficazes, quer seja porque a mudança de comportamento isoladamente não soluciona problemas de saúde, quer seja porque a apropriação de informações depende do diálogo contínuo e da contextualização de tais informações. Em acordo com essa concepção, o planejamento de ações de comunicação pressupõe: a) diagnóstico do cenário; b) definição de um objetivo; c) escolha de mídias; d) definição da linguagem; e) idealização de estratégias para desdobramento do diálogo com o público interlocutor.

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