Tarja Aula 1

Vigilância popular em saúde: conceitos e desafios

Objetivos de aprendizagem:

Ao final desta aula, você será capaz de:

  • Compreender a importância e os desafios da vigilância popular em saúde no contexto das populações vulnerabilizadas.

  • Colocar em prática estratégias de vigilância popular em saúde que possibilitem coleta de dados e produção de informações.

  • Conhecer experiências exitosas em vigilância popular em saúde.

Para começar: o que é a vigilância em saúde?

Vigilância em saúde pública é a coleta contínua e sistemática de dados pertinentes, a consolidação ordenada, a avaliação desses dados e a disseminação imediata dos resultados. De acordo com o Organização Mundial da Saúde (OMS) essas etapas são fundamentais para identificar as prioridades de prevenção de doenças, planejar a saúde da melhor forma possível para as populações, sensibilizar os beneficiários, detectar questões a serem abordadas, focalizar intervenções baseadas em evidências e monitorar as tendências (WHO, 2021).

Em termos práticos, a vigilância é a observação feita de forma sistemática e contínua da frequência, da distribuição e dos determinantes dos eventos de saúde e suas tendências na população (OPAS, 2010). Por exemplo, no caso da pandemia de Covid-19, busca-se conhecer quantas pessoas são infectadas, acompanhar como a doença se comporta em uma população específica, assim como suas causas e consequências.

Antigamente o objeto sob vigilância se restringia às doenças transmissíveis (exemplo: tuberculose, HIV/AIDS, Doença de Chagas, entre outras) no entanto o conceito foi ampliado, passando a incluir as doenças crônicas não transmissíveis (exemplo doenças cardiovasculares, câncer, asma, diabetes, entre outras), assim como situações de risco e outras condições de interesse para a saúde da população (saúde coletiva) (OPAS, 2010).

O que é Vigilância Popular em Saúde?

O termo “vigilância popular em saúde” tem sido utilizado para nominar práticas de vigilância que privilegiam o protagonismo de comunidades e movimentos sociais. Pode envolver diferentes graus de atuação do Estado, da academia e especialistas, desde que estes reconheçam os atores e saberes populares e se impliquem nos processos participativos de natureza dialógica.

Vigilância popular em saúde

A participação popular deveria ser um componente importante da vigilância em saúde, mas na prática a vigilância de doentes e suspeitos compõe uma política sanitária que pode ser vista como autoritária, perseguidora e punitiva. Até os termos “vigilância, “controle” e “campanha” remetem a um cenário de inspiração militar, o que está relacionado ao papel desempenhado historicamente pela vigilância em saúde de “guerrear” contra os micróbios (SEVALHO, 2016).

É preciso promover diálogos mais horizontais em contextos de lutas sociais, admitindo a emergência de saberes e práticas emancipatórias (PORTO, 2017), com a incorporação de outros atores, movimentos sociais e minorias, que permitam uma vigilância baseada no diálogo, permeando uma prática com valores democráticos, rumo à sustentabilidade e à justiça social, sanitária, ambiental e cognitiva (PORTO, 2019).

A vigilância popular em saúde emerge como uma necessidade social a partir da crítica aos modelos formais de vigilância em saúde, de modo que torne esse processo mais inclusivo e equânime, uma vez que o Estado tem deficiências na execução de políticas de proteção e prevenção na saúde em áreas periféricas das cidades e em locais distantes dos centros urbanos, enquanto o setor privado não atende setores da população que não têm renda para pagar por esses serviços (ARJONA, 2017).

Desafios da vigilância popular em saúde

Entende-se que o conceito de vigilância popular em saúde ainda está em construção e ganhou nova força a partir de experiências territoriais e de movimentos populares no contexto da pandemia de Covid-19. Dessa forma, compreende-se que é preciso estruturar novas práticas de vigilância em saúde e desenvolver metodologias territorializadas para facilitar a participação e o empoderamento dos grupos, evitando a segregação e a exclusão nos processos e incorporando diversas formas de conhecimento, além das dimensões econômicas, sociais e éticas (CARNEIRO; PESSOA, 2020).

Para isso, é preciso promover a integração entre pesquisadores, movimentos sociais e representantes dos sistemas de saúde pública. Trata-se de uma ação que consiste no estabelecimento de “vigilância em saúde participativa”, ou seja, que garanta a efetiva participação social na vigilância dos processos de desenvolvimento, como também da forma como se expressam nos territórios, para ser corresponsável na construção de sua sustentabilidade, no sentido de promover e garantir o direito à saúde (PESSOA, 2010).

A vigilância popular consiste em olhar e intervir junto ao Estado, promovendo a apropriação da população do conhecimento técnico-científico em diálogo com saberes populares. É também promoção de saúde por meio do conhecimento, informação, redução das vulnerabilidades, e antecipação dos riscos para reforçar o modo de vida pela via popular e emancipatória (ALVES, 2013).

Nesse sentido, compreende-se que, embora o conceito de Vigilância Popular em Saúde ainda não esteja consolidado em termos teóricos e metodológicos, existe a necessidade de reorientar as ações dos serviços de saúde, a partir de movimentos e iniciativas nascidos nos territórios e da organização popular na defesa do direito à saúde e à vida.

Como colocar em prática a vigilância popular em saúde?

Até aqui falamos de conceitos em construção sobre a Vigilância Popular em Saúde e dos princípios orientadores para a sua prática, a partir dos quais é possível ter uma ideia de como ela deve ser. Mas as perguntas que surgem são:

  • Como é possível realizar essa vigilância que integra pesquisadores, movimentos sociais e representantes dos sistemas de saúde; que torna o conhecimento técnico-científico acessível à população e possibilita o diálogo deste com os saberes populares?

  • Quais métodos valorizam o enfoque territorial, participativo e emancipatório?

Não existe uma receita para a prática da vigilância popular. O que existem são princípios inspiradores que se destacam nas diversas experiências já realizadas e que passam, sobretudo, pelo “pensar e fazer com”, tais como:

  • Utopia – É definida como um sonho irrealizável ou fantasia, mas no contexto da vigilância popular, nos inspira a acreditar e lutar por uma realidade ainda distante, de um mundo mais justo e mais digno.
  • Solidariedade – Ação em comum realizada pelos sujeitos das iniciativas de vigilância popular, para alcançar um objetivo que trará benefícios para a comunidade, muitas vezes com a ausência do estado.
  • Direitos humanos – A vigilância popular é uma luta por direitos: à saúde, a um ambiente saudável, a condições dignas de trabalho.
  • Organização popular – Sem organização e protagonismo popular, não é possível fazer vigilância popular!
  • Dignidade e defesa da vida – A vigilância popular em saúde é uma ferramenta de luta por respeito às populações vulnerabilizadas (busca por dignidade) e defesa das vidas dessas populações.
  • Ecologia de saberes – Conceito do autor Boaventura de Sousa Santos que se refere à valorização de saberes plurais que se complementam. De acordo com esse conceito, existem inúmeras formas de conhecimentos e visões de mundo e o conhecimento científico não é superior, mas complementar ao conhecimento tradicional.
  • Tradução intercultural – Para que haja diálogo entre os movimentos e organizações populares, a academia e os serviços de saúde, é indispensável que seja feita essa “tradução” de conhecimentos, para que as informações cheguem e possam ser compreendidas por todos. Através da tradução intercultural é possível, por exemplo, tornar um artigo científico compreensível para toda a população (usando termos e palavras simples, ilustrações, ou transmitindo o conhecimento de forma oral), ou fazer com que cientistas compreendam um saber tradicional.
  • Fazendo com os movimentos sociais – Para que a vigilância popular seja de fato protagonizada pelo POVO, é fundamental que os demais atores envolvidos nas ações de vigilância, estejam ali para ouvir e aprender também com o povo. Desse modo, a academia ou os serviços de saúde poderão construir a vigilância COM os movimentos sociais e não impor ideias e ações pré concebidas PARA o povo.

O objetivo não é substituir o papel do Estado e dos sistemas de informação em saúde, mas expressar a necessidade de uma maior participação da comunidade (CARNEIRO; PESSOA, 2020).

Assim, os métodos, estratégias, e iniciativas balizadores da construção dessa vigilância sobre a saúde e o ambiente poderão contribuir para intervir sobre os problemas e as necessidades de forma horizontal, participativa, técnica, democrática e cientificamente qualificada (ALVES, 2013).

A seguir, conheça algumas experiências de vigilância popular em saúde que servem de exemplos para compreendermos como ela pode ser colocada em prática.

Santa Cruz: Rio de Janeiro, Brasil 2016

Página Coletivo Martha Trindade Fonte: Página do Coletivo no Facebook (necessita login na rede social)

O Coletivo Martha Trindade surgiu do processo de construção de uma vigilância popular em saúde em Santa Cruz, bairro da cidade do Rio de Janeiro, pela necessidade de avaliar e evidenciar os impactos socioambientais causados por uma Siderúrgica. O projeto nasceu em 2016 e foi responsável pela entrega de um relatório feito pela própria população em parceria com o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), Rede de Justiça nos Trilhos (JnT) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O relatório foi embasado cientificamente, a partir de parâmetros propostos pela OMS, e identificou problemas de saúde, como problemas de pele, e questões ambientais como a destruição dos manguezais. As próprias pessoas afetadas pelos impactos da siderúrgica foram responsáveis por oferecer dados sobre a situação da poluição, mapear famílias e identificar vulnerabilidades por meio de um monitoramento ambiental, utilizando um equipamento monitor simples, barato e com a facilidade de ser operado por pessoas não-especializadas. É um processo que desenvolveu práticas emancipatórias de saúde frente a um grande empreendimento poluidor.

Você pode saber mais sobre essa experiência, no programa Sala de Convidados, da Fiocruz:

Fonte: Fiocruz

A Guarda Cauca: Colômbia 2020-2021

Desde o início da quarentena, 63 mil guardas indígenas vigiam as entradas de seus territórios, em 4.500 postos de controle em toda Colômbia. Trata-se dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana. A Guarda Cauca é um exemplo de como os povos indígenas têm administrado suas relações territoriais e políticas. São eles que estão lavando as mãos dos indígenas que saem e entram nas reservas com autorização prévia. Eles garantem que nenhuma pessoa externa entre em seus territórios, especialmente, turistas ou funcionários de empresas privadas. Dada a escassez de álcool e cloro, eles fabricam suas próprias substâncias para desinfetar carros e motocicletas. E embora pudessem estar com suas famílias, por se tratar de um trabalho voluntário, eles permanecem 24 horas por dia, todas as semanas, em um posto de controle.

A guardia indígena

A matéria Guardias indígenas, los guerreros milenarios al frente de la pandemia (espanhol), do jornal El Tiempo, conta essa experiência.

Painel unificador Covid-19 nas favelas do Rio de Janeiro: Brasil 2020

O Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, lançado em 2020, é uma iniciativa de grupos e movimentos populares que faz o levantamento de dados sobre a situação da pandemia de Covid-19 nas favelas do Rio de Janeiro. Um dos motivos para o seu surgimento foi o diagnóstico de que a vigilância tradicional feita pela prefeitura da cidade não refletia a situação particular das zonas de favela, já que os dados são coletados por código postal, homogeneizando bairros que podem ser extremamente desiguais. Como a própria população pode atuar no levantamento de dados e ajudar a superar o déficit de informação sobre a Covid-19 nas favelas? Esse é o desafio do Painel que é dedicado à coleta de dados em áreas onde há falta de testagem e subnotificação, a fim de garantir políticas públicas adequadas.

Outras experiências de Vigilância Popular em Saúde

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A partir de iniciativas conhecidas, podemos listar algumas estratégias aplicáveis para realizar a Vigilância Popular em Saúde, tais como: Comitês e Plenárias Populares para iniciar e fortalecer os debates; diagnóstico dos problemas identificados, cartografias e monitoramentos participativos por meio da participação da própria comunidade na coleta e análise dos dados; Barreiras sanitárias populares; Observatórios acadêmicos e populares; e Formação em comunicação dada a jovens. Sobre a formação em comunicação dada a jovens, o objetivo é que estes sejam multiplicadores e capilarizadores de informações sobre saúde nas suas comunidades.

Após o processo formativo, produção e adaptação (tradução intercultural) de materiais sobre saúde com ênfase em direitos sociais, saúde e estratégias de enfrentamento às emergências em saúde pública, segue-se para a construção de interlocuções entre jovens, moradores, atores públicos (profissionais da Atenção Primária e Proteção Social Básica; gestores públicos e profissionais das instituições de ensino) para ampliação do acesso aos serviços e benefícios, troca de informação, esclarecimento de dúvidas e acompanhamento das políticas públicas e ações emergenciais apresentadas pelo poder público como resposta às emergências de saúde pública (LATGÉ; ARAÚJO; SILVA JÚNIOR, 2020).

Resumo da aula

Nessa aula, conceituamos o que é vigilância popular em saúde e vimos que sua estrutura está formada em um modelo de baixo para cima, no qual as populações vulneráveis são responsáveis pela coleta de dados e pela produção e/ou divulgação de informações junto a suas comunidades. O funcionamento desse sistema é determinado pelas relações entre o conhecimento popular e o conhecimento científico. Vimos que é um conceito que ainda está sendo construído, mas que já apresenta no Brasil e em outros países da América Latina valiosas estratégias no enfrentamento às emergências de saúde pública.

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