Tarja Aula 3

Movimentos sociais na América Latina e resposta às emergências de saúde pública

Objetivos de aprendizagem:

Ao final desta aula, você será capaz de:

  • Conhecer uma breve história dos movimentos sociais que surgiram em resposta a problemas e emergências de saúde pública na América Latina.

  • Compreender a importância dos movimentos sociais na América Latina na reivindicação do direito à saúde de grupos vulneráveis e na promoção de leis e políticas públicas.

  • Conhecer iniciativas de movimentos sociais para resposta a emergências em saúde.

  • Conhecer as respostas, estratégias e demandas de alguns movimentos sociais emblemáticos da América Latina diante da pandemia da Covid-19.

Movimentos sociais na América Latina

Os movimentos sociais, em sua maioria, ajudam a construir sociedades mais democráticas, assim como a visibilidade dos grupos vulneráveis e a reivindicação de causas justas. Eles estão presentes ao longo da história, como exemplo os movimentos organizados por trabalhadores das fábricas na Inglaterra industrial que exigiam melhores condições de trabalho, e que conseguiram através de protestos e resistência.

“Os movimentos sociais emergem a partir de um conflito para se tornarem um desafio às autoridades mediante uma ação coletiva, cuja principal intenção é promover mudanças” (PASTOR, 2002, p.15, apud AGUILAR GARCÍA, 2017, p.11- tradução livre).

Durante a primeira parte do século XX, os movimentos sociais foram impulsionados pelas demandas de trabalhadores por melhores condições de trabalho ou salários. Ao longo do século, novos movimentos sociais surgiram com diversas demandas, em grande parte impulsionados pelas desigualdades sociais causadas pelo sistema econômico capitalista que levara a cortes em várias esferas das políticas públicas, mas também pela segregação racial e étnica, discriminação de gênero, por motivos eleitorais, religiosos, ambientais e de saúde. Acompanhe alguns movimentos sociais ao longo da história!

Movimentos sociais ao longo da história

Desde os anos 80, movimentos sociais com demandas muito diversas surgiram na América Latina. Embora ligados a nações, povos ou grupos sociais, eles alcançaram um escopo nacional ou internacional, em parte graças às tecnologias da informação (AGUILAR GARCÍA, 2017). Exemplos incluem o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que surgiu no Brasil em 1984, exigindo a redistribuição de terras improdutivas. Hoje está presente em acampamentos e assentamentos, em 23 estados brasileiros (CAVALCANTE; NOGUEIRA, 2008).

Atenção

Acampamentos - ocupações de terras que ainda não foram legalizadas.
Assentamentos - ocupações de terras que já foram legalizadas.

Outro exemplo são os movimentos de mulheres que exigiram o sufrágio feminino desde o início do século 20 e nos anos 60 ganharam novo impulso para lutar pelos direitos sexuais e reprodutivos, assim como contra a violência de gênero (JAQUETTE, 2018).

Votes for women Fonte: Wikipedia

Alguns movimentos têm orientado sua luta para a exigência do direito à saúde. Por exemplo, nos anos 1990 na Argentina, o desemprego e a precariedade dos empregos deram origem ao Movimento dos Trabalhadores Desempregados (Movimiento de Trabajadores Desocupados - MTD), que ajudou a evitar o fechamento ou a privatização dos serviços de saúde, ou o aumento dos preços dos medicamentos (ZALDÚA; SOPRANSI; VELOSO, 2005).

Na mesma década, no Equador, foi promulgada a Lei de Modernização que, entre muitos objetivos, buscava a privatização dos serviços de saúde. Isso motivou uma ampla mobilização de camponeses e trabalhadores da saúde, formando a Frente pela Defesa da Saúde e da Vida, o que impediu o Ministério da Saúde de cobrar taxas por seus serviços.

O movimento indígena se uniu e ajudou a deter as iniciativas de saúde neoliberal com a participação da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), a Confederação dos Povos da Nacionalidade Kichwa do Equador (ECUARUNARI), a Federação Equatoriana de Povos Indígenas Evangélicos (FEINE) e o Órgão Coordenador das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA). Eles denunciaram a situação sanitária das nações indígenas, conseguindo o reconhecimento de seus direitos coletivos e medicamentos tradicionais na constituição de 2008 (BETANCOURT, 2017).

Outros movimentos sociais surgem para exigir soluções para problemas de saúde específicos. Conheça!

Agrotóxicos – Nicarágua e Costa Rica

Nos anos 90, surgiu um movimento social que procurava indenizar as pessoas atingidas pelo uso do agrotóxico Nemagón nas plantações de banana na Nicarágua e na Costa Rica. Em Nicaraguá, homens e mulheres organizaram marchas para pressionar o governo e conseguiram a aprovação de uma lei especial para o andamento de processos judiciais interpostos pelas pessoas afetadas pelos pesticidas feitos a partir do Dibromocloropropano (DBCP).

A primeira indenização para 583 pessoas foi obtida em 2002. Mas ainda foi necessária uma greve de fome e uma mobilização chamada “marcha sem retorno” em 2005 para obter uma indenização para centenas de pessoas também afetadas. Na Costa Rica, a Lei para a Determinação dos Benefícios Sociais e Econômicos para a População Afetada pela DBCP foi aprovada em 2001, mas a indenização foi feita pelo Estado para proteger os investimentos estrangeiros (MORA SOLANO, 2013).

Poluição mediante incineração de resíduos sólidos - México +

No estado de Hidalgo (México), em 2012, surgiram os Cidadãos Unidos pelo Meio Ambiente (Ciudadanos Unidos por el Medio Ambiente - CUMA) e o Movimento Indígena de Santiago Anaya (Movimiento Indígena de Santiago Anaya), exigindo a proibição das empresas de cimento que incineram resíduos sólidos e poluem a água, afetando a agricultura, a pecuária e a saúde das comunidades vizinhas.

A CUMA conseguiu que as autoridades estaduais declarassem ilegal a incineração de resíduos sólidos urbanos. Estas organizações, aliadas a outras organizações internacionais, receberam aconselhamento especializado e realizaram atividades como fóruns, reuniões, entre outras, para manter a causa ativa (CARRASCO-GALLEGOS, 2017).

Pessoas Desaparecidas - México +

Outro exemplo emblemático de um movimento social que surge no contexto de um problema social, político e de saúde pública é o Movimento pelos Nossos Desaparecidos no México

Em 2006, o governo federal mexicano anunciou a tão criticada “Guerra às Drogas”, que resultou no desaparecimento de mais de 90.000 homens e mulheres no país, bem como em homicídios e um aumento da violência generalizada. Diante da indiferença do Estado, parentes dos desaparecidos começaram a procurá-los em necrotérios, prisões e outros estados. Assim surgiram os primeiros coletivos, trinta e cinco dos quais se uniram em 2015 para formar o movimento, que visava criar e implementar a primeira Lei Geral sobre Desaparecimentos no México. Eles alcançaram esta meta em 2017 e hoje o Movimento pelos Nossos Desaparecidos no México reúne mais de 70 organizações, algumas da América Central que estão à procura de migrantes desaparecidos no México (Movimiento por Nuestros Desaparecidos - @movNDmx).

Síndrome do Vírus Zika Congênita - Brasil

Outros movimentos sociais têm sido impulsionados por emergências de saúde pública. Um exemplo importante é o de grupos de mães de crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (CZS), que surgiram em Pernambuco, Brasil, para lutar pelas necessidades das crianças e de si mesmas, pois muitas têm de renunciar a suas fontes de renda para se dedicarem ao cuidado em tempo integral.

A União de Mães Anjos (UMA) foi fundada em 2015 com mães de oito crianças e hoje tem mais de 400 pessoas.

As ações da UMA visam facilitar o transporte das mães e de seus filhos para que eles possam ter cuidados em saúde e ajudar as famílias com alimentos, medicamentos, produtos de higiene, entre outras necessidades enfrentadas (AGORA, 2021). Trabalhar em coletivo as tornou mais fortes, como “irmãs em luta” trouxe o conhecimento sobre seus direitos e permitiu exigir melhor atenção da legislação como o direito a uma pensão vitalícia, o que foi alcançado com a medida provisória 894 de 2019. Elas também estão lutando pela expansão do número de abrigos e a construção de um centro de reabilitação na sede da associação, em Pernambuco (Brasil). Além disso, as reuniões com outras mães que enfrentam as mesmas dificuldades lhes permitem compartilhar experiências, aprender sobre eventos e doações e realizar atividades a favor das crianças (SCOTT, 2020).

A UMA também está presente no Instagram: @uniaodemaesdeanjos.

HIV/AIDS e IST’s - México

Outros exemplos paradigmáticos são os movimentos sociais que surgiram em todo o mundo para exigir atenção à pandemia de HIV/AIDS, que também ganharam impulso na América Latina.

O Grupo Multidisciplinar sobre HIV/AIDS e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) foi formado em 2002 no Estado de Veracruz, México, um dos estados com as mais altas taxas de mortalidade e novos casos de HIV nesse país.

Começou como um grupo convocado pelo Centro Nacional de Prevenção e Controle do HIV e AIDS (México) e financiado pela Agência Americana de Desenvolvimento Internacional (USAID) Policy Project, através do The Future Group. Inicialmente era composto por acadêmicos, organizações da sociedade civil e pela Secretaria de Saúde do Estado, que abandonou o grupo no ano seguinte. Isto lhes deu maior autonomia e lhes permitiu radicalizar suas exigências e ações.

Atualmente, eles se consideram como um grupo de cidadãos que voluntariamente e com seus próprios recursos trabalham no controle social e na responsabilização dos programas públicos de HIV/AIDS, na defesa dos direitos humanos das pessoas vivendo com HIV/AIDS, além de realizar atividades de prevenção e detecção precoce com o apoio da AIDS Healthcare Foundation. Estas atividades lhes permitem detectar problemas na qualidade do atendimento e na administração dos recursos financeiros, humanos e materiais destinados ao programa estatal de HIV, denunciar irregularidades às autoridades correspondentes e exigir agilidade para solucioná-las.

No contexto da pandemia da Covid-19, o Grupo Multidisciplinar denunciou a falta de monitoramento de novos casos de HIV em Veracruz e a falta de cuidado com mulheres grávidas com HIV, devido à prioridade dada à Covid-19. Também denunciou a falta de medicamentos antirretrovirais que se agravou desde 2019 com a mudança na política de aquisição de medicamentos do governo mexicano. Da mesma forma, o Grupo está trabalhando na revisão da Lei para enfrentar a pandemia de HIV no estado de Veracruz para que esteja de acordo com os padrões internacionais na proteção dos Direitos Humanos das pessoas vivendo com HIV.

Neste contexto, o ativismo mudou das ruas e das reuniões presenciais com os funcionários para atividades remotas, utilizando a tecnologia da informação e utilizando a imprensa local como plataforma de denúncia.

Informações obtidas no livro VIH y sida em Veracruz, Voces y testimonios e em conversa com a autora, Dra. Patricia Ponce, líder do Grupo Multidisciplinar.

Povos Indígenas - Brasil

É importante mencionar que muitos dos movimentos sociais na América Latina acrescentaram às suas demandas a atenção à pandemia da Covid-19 em seus territórios. Muitos movimentos também desenvolveram estratégias para enfrentar a pandemia da Covid-19 diante da omissão ou da resposta lenta dos governos nacionais. Um caso interessante é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), criada pelo Acampamento Terra Livre (ATL) de 2004.

A APIB é uma mobilização nacional anual que, desde 2004, tornou visível a situação dos direitos indígenas e exigiu que o Estado brasileiro atendesse suas demandas. Hoje tem representação em todos os estados brasileiros, e só na Amazônia já reúne mais de 300 organizações.

O primeiro caso de Covid-19 em um indígena no Brasil foi relatado em 1 de abril de 2020 no estado do Amazonas. Cientes das fraquezas históricas do subsistema de saúde indígena e das restrições à aplicação dos testes da Covid-19 e da vigilância em saúde, os grupos indígenas decidiram agir para evitar um novo “etnocídio” (PONTES, 2020). Antes do governo, os povos indígenas estavam conscientes de que a convergência da pandemia, as desigualdades sociais que os afligem e a violência a que estão expostos em seus territórios por megaprojetos, mineração e outras atividades ilegais teriam consequências mortais.

Dois antecedentes influenciaram a resposta da APIB à pandemia da Covid-19:

  1. As organizações indígenas já estavam trabalhando na frente da mídia com a intenção de influenciar e propor políticas de saúde indígenas.
  2. Joênia Wapichana tornou-se a primeira mulher indígena eleita para a Câmara dos Deputados no Brasil (2018), o que lhes conferiu presença no Congresso Nacional, constituindo uma frente em defesa dos povos indígenas (PONTES, 2020).

No contexto da pandemia, e diante da omissão governamental, a APIB mobilizou rapidamente a mídia para denunciar o perigo que os povos indígenas enfrentavam. Começaram a monitorar casos positivos e mortes, e consultaram o povo do Grupo de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) acerca de recomendações sobre o que fazer e como informar às comunidades sobre prevenção. Essa colaboração ajudou a visar os indígenas como um grupo prioritário para a campanha de vacinação contra influenza. Outra estratégia da APIB foi trabalhar em uma frente política internacional para pressionar o governo (PONTES, 2020).

O movimento também promoveu o Projeto de Lei 1.142/20, que estabelece medidas de proteção social para evitar o contágio e a propagação do coronavírus entre os povos indígenas. Este projeto de lei foi preparado em conjunto pela APIB, líderes indígenas, apoiadores da ABRASCO e profissionais da Fundação Oswaldo Cruz. O projeto de lei previa ações para garantir o acesso à saúde e segurança alimentar, tais como acesso à água potável segura, distribuição de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies em aldeias, equipes de saúde indígenas qualificadas, treinadas e equipadas, e acesso a testes rápidos (RIBEIRO, 2020).

Considerações finais

APIB

Estes exemplos nos mostram que os movimentos sociais são capazes de alcançar mudanças e melhorias nas condições de vida de populações ou setores vulneráveis da população. Os movimentos sociais que surgiram em resposta a emergências de saúde pública ou problemas de saúde são numerosos, aqui mostramos apenas alguns que consideramos emblemáticos e importantes para exemplificar as repercussões locais, nacionais e internacionais que eles podem ter.

Podemos ver que estes movimentos sociais têm algumas características e estratégias em comum: vários deles exigem uma resposta do Estado ao problema de saúde que os aflige, que pode ser para preveni-lo (Grupo Multissetorial), para fornecer assistência médica/saúde adequada e urgente (União de Mães de Anjos e Grupo Multidisciplinar), ou simplesmente para recuperar os corpos (Movimento pelos Nossos Desaparecidos).

Da mesma forma, vimos que alguns podem surgir por outras causas, mas isso não os impede de redirecionar suas demandas e estratégias para questões de saúde pública (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil diante da pandemia da Covid-19), ou reivindicar seu direito à saúde (Movimento dos Trabalhadores Desempregados).

Os movimentos sociais são importantes e têm sido o mecanismo que vários grupos têm usado historicamente para lutar por seus direitos. Vimos que eles podem influenciar a criação de leis (Movimento pelos Nossos Desaparecidos) ou a modificação de algumas leis (União de Mães de Anjos e Grupo Multidisciplinar).

Os movimentos sociais não agem sozinhos, mas frequentemente apoiam outros movimentos em certos momentos sociais, políticos ou relacionados à saúde. Eles também recebem conselhos de acadêmicos e organizações internacionais para construir propostas e podem usar a imprensa para denunciar, exigir e se tornar visível para a sociedade e para o mundo. Hoje, os movimentos sociais fazem uso de plataformas digitais para o ativismo e para manter vivas suas lutas e demandas.

Resumo da aula

Nesta aula você acompanhou, em um primeiro bloco, uma breve história dos movimentos sociais na América Latina nos últimos 50 anos que surgiram em resposta a problemas e emergências de saúde pública, ou por outras causas, mas que se organizaram para exigir seu direito à saúde. Em uma segunda seção, abordamos as respostas, exigências e estratégias que alguns movimentos desenvolveram diante da pandemia da Covid-19.

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