Movimentos Sociais na Agenda Global
Objetivos de aprendizagem:
Ao final desta aula, você será capaz de:
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Identificar, do ponto de vista acadêmico e a partir dos movimentos sociais como se apresentam as formas desses movimentos na agenda global.
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Relacionar os entendimentos da academia e dos movimentos sociais acerca das formas de atuação e organização da sociedade civil, em resposta às emergências de saúde pública.
Antecedentes e tensões
A linguagem inovadora dos direitos humanos na política externa e a ampliação dos mecanismos de participação dos movimentos sociais na agenda global foi possível com a estruturação e desenvolvimento do ciclo conferências voltado a temas sociais da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse ciclo é conhecido como ciclo social e compreende o período entre 1989 e 2001 (ALVES, 2001).
O ciclo social está diretamente vinculado ao contexto geopolítico, que se deu com a abertura do campo multilateral – ou seja, que refere ao trabalho realizado conjuntamente por vários países – para participação social organizada no pós-Guerra Fria. Neste período ocorreram, por exemplo, a Conferência Mundial da Criança, de 1990, e a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, de 2001.
Multilateralismo - é a preferência pela integração de diversos países conjuntamente em negociações, ações conjuntas ou regulação, em vez trabalhar de forma unilateral (um país sozinho) ou bilateral (dois países) (VIGEVANI; RAMANZINI JÚNIOR, 2011). Um exemplo é o sistema das Nações Unidas, no qual mais de 190 países trabalham juntos em prol de objetivos comuns.
Ao analisar o início da participação da sociedade civil nos fóruns que definem as agendas globais é expressiva a ampliação da participação de atores não-governamentais no ciclo social da ONU. Esse período redefiniu, à luz das discussões situadas historicamente sobre desenvolvimento, temas diretamente atrelados às pautas de movimentos sociais.
Especialmente no sul global, a ampliação da participação dos movimentos sociais e a redefinição dos temas possibilitou configurações inéditas dos movimentos no interior de agendas globais institucionalizadas, que até então apresentavam enormes barreiras à participação. A realização Conferência Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92 - Rio de Janeiro, em 1992) por exemplo, propiciou a maior participação de movimentos ambientalistas da região latino-americana em um fórum da ONU, tão expressiva quanto foi a atuação da sociedade civil organizada na Conferência Mundial dos Direitos Humanos em Viena no ano seguinte.
Sul Global - emerge como conceito em contraposição ao Norte Global, como um conceito geopolítico, um grupo de espaços e povos negativamente impactados pela globalização, como um sujeito político desterritorializado resultante de uma experiência de subjugação ao capitalismo (MAHLER, 2017), à cultura, à política. Este conceito tem sido trabalhado mais frequentemente pela comunidade científica do Norte, o que contribui para o silenciamento e apagamento dos conhecimentos locais sobre esse processo de subjugação.
A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, foi a primeira vez em que países de renda baixa e média tiveram representação da sociedade civil no interior da delegação oficial do Estado, no caso do Brasil, apontando uma nova arquitetura da política externa. Adicionalmente, esta Conferência viabilizou uma forte mobilização e atuação presencial dos movimentos feministas e LGBT globais nos fóruns oficiais e paralelos realizados com respaldo do sistema ONU (MARTINS, 2019).
Entre a III Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Nairóbi (1985), e a IV Conferência, em Pequim (1995), a participação de mulheres no evento quase duplicou, passando de cerca de 30 mil para 50 mil, o maior fórum global das Nações Unidas até hoje. Ainda, a IV Conferência de Pequim produziu uma declaração e um programa de ação que permanecem vigentes até hoje.
Entre a III Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Nairóbi (1985), e a IV Conferência, em Pequim (1995), a participação de mulheres no evento quase duplicou, passando de cerca de 30 mil para 50 mil, o maior fórum global das Nações Unidas até hoje. Ainda, a IV Conferência de Pequim produziu uma declaração e um programa de ação que permanecem vigentes até hoje.
Nos últimos anos que antecedem a virada para o século XX, os movimentos sociais se reorganizaram na agenda global. As redes internacionais incidiram em um processo estruturado de intervenção no sistema internacional, produzindo tensionamentos na arquitetura multilateral e colocando em outros patamares as disputas pautadas no engajamento do diálogo sociedade civil-Estados. Seguindo nesta linha, alguns artigos, como os Torronteguy; Dallari (2012) e D’Orfeuil (2007), destacam-se na análise sobre a formulação de postulados referentes a participação dos atores não estatais na política externa, como as ONGs e movimentos sociais organizados, sem vínculo direto com a iniciativa privada.
É importante considerar que o contexto é de uma mudança de direção política por parte destes atores, no complexo de governança global, em tentativas de configuração de multilateralismo. Também, considerar que as agendas no campo dos direitos humanos foram negativamente afetadas pela bipolaridade da Guerra Fria.
Esta janela de oportunidade sofreu uma quebra importante, em 2001, com o atentado ao World Trade Center (11 de setembro), que teve como efeito a intensificação do isolacionismo entre os países, com base na retórica política de guerra ao terror. Este refluxo na geopolítica limitou os alcances da diplomacia global e os esforços para ampliação da atuação dos movimentos sociais nos fóruns definidores das agendas globais, especialmente, em função do crescente nacionalismo, que pautaram diretamente o campo da diplomacia global pós 11 de Setembro.
Leituras sobre participação e movimentos sociais de direitos humanos contemporâneos
As produções acadêmicas mostram grande variedade de marcadores de análise sobre a atuação dos movimentos sociais. Por isso, é necessário definir conceitualmente sobre qual perspectiva de participação social vamos tratar.
Para fins conceituais, vamos considerar o proposto por Valla e Stotz (1989), para os quais a participação social pode ser definida pelo ato de
“influenciar a formação, execução, fiscalização e avaliação de políticas públicas na área social (saúde, educação, habitação, transporte, etc.)” (p.6).
Essa perspectiva possibilita marcar o forte protagonismo, por vezes difuso, dos múltiplos movimentos que incidem na sociedade, em âmbito nacional e internacional.
Dinâmica interna dos movimentos sociais
Especialmente nos últimos anos, há uma disputa no interior dos movimentos sociais sobre a centralidade da missão desses segmentos em relação à pauta institucional. O foco de tensão é marcado pela ênfase se as ações dos movimentos sociais devem ser orientadas à partir ou não do institucionalismo das políticas públicas, ou seja, se as pautas de reivindicações dos atores e atrizes sociais não governamentais devem incidir no diálogo direto e ativo com o campo institucional de elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas. Para ampliar os entendimentos sobre a mudança de rota da participação de grupos da sociedade civil em fóruns globais multilaterais nos últimos anos, Alonso (2009) sinaliza que:
Os novos movimentos sociais seriam, então, antes grupos ou minorias que grandes coletivos. Suas demandas seriam simbólicas, girando em torno do reconhecimento de identidades ou de estilos de vida. Recorreriam à ação direta, pacífica, baseada numa organização fluida, não hierárquica, descentralizada, desburocratizada. Não se dirigiriam prioritariamente ao Estado, mas à sociedade civil, almejando mudanças culturais no longo prazo. Esses analistas, portanto, entendem que a ênfase cultural é uma característica distintiva das novas mobilizações, razão pela qual usaram o advérbio “novo” para distingui-los dos “velhos” (ALONSO, 2009).
Nesse sentido, mesmo entre os movimentos sociais que atuam na promoção de mecanismos da agenda global, não há consenso sobre o seu foco de atuação. Alguns acreditam que as ações deveriam se estruturar no advocacy para a influência de atores sociais nos processos de constituição de mecanismos institucionais; outro, na fiscalização da execução das ações promovidas por governos.
ADVOCACY - prática política que visa influenciar a formulação e condução de políticas
Para o exercício da participação dos movimentos sociais na política global, faz-se necessária uma construção social do reconhecimento internacional do papel central desses atores na elaboração das múltiplas agendas de direitos.
Também, compreender a premissa de cidadania como uma produção do Estado-nação baseada em postulados de raça e gênero alicerçados no liberalismo através da proteção de direitos - sempre limitados - de uma minoria considerada cidadã (QUIJANO, 2005). A ideia de direitos humanos é construída em um dado contexto, inventada e datada em contornos específicos por demandas sociais, ou seja, não são dados a priori, inatos (HUNT, 2009).
Logo, há uma tendência que alinha os movimentos sociais baseados nos direitos humanos de defender pilares pautados na denúncia de modelos de cidadania que se constituem com base na desigualdade, nos marcadores sociais e estruturais da diferença, que no interior da política global operam com barreiras que impedem ações integrais e indivisíveis no campo dos direitos fundamentais.
O elemento de defesa dos movimentos sociais tem foco na narrativa política sobre as práticas de exclusão decorrentes da engrenagem que define as agendas prioritárias na escala internacional, seja no campo das instituições que conformam a governança multilateral ou na defesa de pilares com base numa sociedade civil transnacional e global.
Mudanças na participação dos movimentos sociais na agenda global
O século XX possibilitou a emergência dos movimentos sociais como objeto sociológico, com especial ênfase nos anos 1970, gerando múltiplas visões sobre os mesmos. Considerando a multiplicidade de experiências inscritas sob o termo “movimentos sociais” e as divergências presentes nesta conceitualização, alguns elementos como causa social, ação política, articulação de grupos ou indivíduos e defesa ideológica são intrínsecos às definições mais clássicas. Esses elementos também operam no marcador teórico ao analisar o papel dos movimentos sociais, e especialmente neste texto, os papéis em escala global desses movimentos.
No início do do século XXI, a presença organizada dos movimentos sociais na esfera global sofreu mudanças em relação a ampliação dos seus espaços de atuação. Este processo influenciou as estratégias dos movimentos sociais, afastando, em certa medida, de uma atuação prioritária nos fóruns multilaterais para o advocacy de pautas globais como atores não estatais.
O ciclo social de Conferências da ONU, ou seja, o debate de temas sociais nesses espaços, possibilitou aos movimentos sociais, com maior ênfase do sul global, posicionar suas demandas e ocupar o instituído sistema internacional em abertura às aspirações multilaterais. A atuação dos movimentos no sistema internacional, ou seja, no sistema de atores e instituições que formam a arena global, introduziu uma reflexão, até então pouco articulada, sobre a relevância na tomada de decisão da participação dos movimentos sociais como atores internacionais não-estatais nos canais de diálogo geridos pelos Estados na disputa das agendas globais.
Um campo híbrido de atuação
Vimos até aqui que não há consenso sobre a relevância de atuação dos movimentos sociais nos espaços institucionais da política global, em grande medida, pelo questionamento:
Os instrumentos aprovados nos fóruns se traduzem em políticas públicas no interior dos países?
Os fóruns são exatamente os espaços de poder que definem as agendas globais, entre elas a de cunho político - e com financiamento - mais relevante nos dias atuais, se materializa nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), também conhecidos como Agenda 2030.
As Metas de Desenvolvimento Sustentável são um chamado universal à ação para acabar com a pobreza, proteger o planeta e melhorar a vida e as perspectivas de todos, em todos os lugares. As 17 Metas foram adotadas por todos os Estados membros da ONU em 2015, como parte da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável de 2030, que estabeleceu um plano de 15 anos para alcançar as Metas.
As discussões sobre sociedade civil global (LAGE, 2012) e diplomacia não governamental (D’ORFEUIL, 2007) ajudam a entender as formas de inserção dos grupos sociais na política internacional e a diminuição da participação social organizada nas agendas globais em fóruns multilaterais. Especialmente, nos últimos anos, houve retrocessos quanto à atuação de movimentos sociais alinhados ao campo dos direitos humanos em alguns países do sul global, e a supressão da cooperação internacional para apoio da sociedade civil de muitos países de baixa e média renda no século XXI.
Passados quase 20 anos da ampliação da participação dos movimentos sociais nos fóruns globais pode-se aventar a hipótese de que uma parte significativa dos movimentos tenha escolhido não participar nos fóruns globais em função de não os considerarem substancialmente relevantes como em outros contextos. No entanto, neste campo, ganham destaque dois processos de escala global dos movimentos sociais que foram além da institucionalidade da ONU: o Fórum Social Mundial (Sguissardi, 2001) e o Movimento Saúde dos Povos (SAN SEBASTIÁN e colab., 2005).
Alguns países latinoamericanos são exemplos para uma análise da relação entre os direitos humanos e o conservadorismo político. São possíveis, nestes governos, uma radicalização da extrema direita, ampliação de notícias falsas, ações negacionistas sem embasamento científico, ênfase na redução dos direitos sociais e uso da liberdade de expressão e dos direitos individuais como mecanismos de defesa correlatos às pautas de no campo da moralidade. Nesse sentido, na última década, movimentos sociais de países do sul global que passaram pela ascensão de governos considerados, pelo campo dos direitos humanos, conservadores no espectro político, intensificaram a atuação em alguns fóruns internacionais, especialmente em duas linhas:
- Na defesa de seus interesses nos temas multilaterais no advocacy para negociação de linguagem, terminologias consideradas sensíveis (i.e. gênero).
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Na denúncia internacional sobre os sentidos das violações de direitos humanos em seus países.
Contudo, ainda que seja observado um afastamento dos movimentos sociais no diálogo com os governos, em fóruns internacionais, é limitado afirmar que esses movimentos tenham abandonado essa posição. Como exemplo, segmentos da sociedade civil organizada do campo dos direitos humanos, que se constituem à margem das instituições multilaterais, produzem informes visando dialogar e incidir nos fóruns multilaterais:
Relatórios Mundiais sobre as Condições e Ações de Saúde elaborados pelo Movimento pela Saúde dos Povos (inglês) - nos últimos anos têm pautado diretamente a Organização Mundial de Saúde!
Movimentos sociais e a Agenda 2030
Na América Latina e Caribe, movimentos sociais compõem a Mesa de Vinculação do Mecanismo de Participação da Sociedade Civil na Agenda de Desenvolvimento Sustentável da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL/ONU).
No Brasil, desde 2017, o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GTSC A2030) apresenta o Relatório Luz. O relatório é anual e não tem vinculação nem diálogo com o governo federal.
Pensando na ação dos movimentos da sociedade civil global, a relação com os postulados dos fóruns multilaterais e o governo brasileiro, em 2018 foi criado o Coletivo RPU Brasil, que lançou em novembro de 2020 o Relatório da Sociedade Civil - Revisão Periódica Universal dos Direitos Humanos no contexto da COVID-19.
Relatórios Luz - documentos elaborados pelo GTSC A2030 que analisam a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil, com objetivo de evidenciar avanço, estagnação, ameaça e retrocesso das metas globais assumidas como compromisso junto à ONU até 2030.
Coletivo RPU Brasil - coalizão composta por 30 organizações da sociedade civil brasileira, desde 2018 realiza o monitoramento dos direitos humanos no país através do Mecanismo da Revisão Periódica Universal (RPU) das Nações Unidas.
Movimentos sociais e os meios digitais
Diante da complexidade da atuação dos movimentos sociais contemporâneos na agenda global, soma-se a isso a massificação das redes virtuais e do ativismo digital como manejo de fazer político, advocacy. Observa-se influência junto aos tomadores de decisão e disputa sobre narrativas sociais (DESLANDES, 2018).
As configurações dos meios digitais possibilitam novas modalidades das respostas articuladas dos movimentos sociais frente às causas globais. Um exemplo foi a mobilização em torno das discussões sobre o enfrentamento transnacional do racismo, promoção da igualdade racial e ativismo global protagonizadas pelas hashtags #blacklivesmatter #vidasnegrasimportam.
Durante a pandemia de Covid-19, observamos a atuação intensa de movimentos sociais no ambiente virtual impulsionadas pelas restrições impostas em razão da situação sanitária. Movimentos como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), demonstraram liderança importante no ativismo digital brasileiro, levantando o debate e mobilizando ações concretas sobre pautas relevantes aos povos indígenas e com alcance nacional e internacional, como visto com a campanha contra o Marco Temporal (#PL490Não #MarcoTemporalNão), as ações de enfrentamento à pandemia com a campanha Emergência Indígena (#VidasIndigenasImportam #NossaLutaéPelaVida) e a campanha Vacina Parente em torno da vacinação prioritária para indígenas no Plano Nacional de Imunização (#Vacina Parente).
Ainda neste curso você encontra uma aula sobre ativismo digital, verifique!
Participação na prática
Acompanhe o depoimento de Richarlls Martins, autor desta aula, coordenador executivo do Plano Fiocruz de Enfrentamento à Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, consultor da Organização Panamericana de Saúde (OPAS/OMS) e coordenador-geral da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento, sobre sua experiência com a Agenda Global
Resumo da aula
Nessa aula você poderá acompanhar a aproximação dos movimentos sociais no campo multilateral em resposta às emergências de saúde pública, discutindo as tensões desta relação no século XXI à luz de alguns postulados teóricos. Importante estar atento aos modelos híbridos de atuação dos movimentos sociais contemporâneos que se aproximam e se afastam da institucionalidade multilateral na disputa sobre as agendas globais.