Módulo 1 | Aula 2
letramento racial para trabalhadores do sus
Racismo: estrutura e funcionamento no Brasil - parte II
Racismo x Preconceito x Discriminação
A ciência moderna aponta que, biologicamente o conceito de raça não existe, pois não há diferenças biológicas que apontem que um grupo racial seja significativamente diferente de outro, tão pouco que um seja inferior ao outro. Contudo, há uma construção social e política sobre o conceito de raça.
Historicamente, a noção de raça foi utilizada para naturalizar e legitimar desigualdades e violências sofridas por grupos considerados minoritários do ponto de vista sociológico. No Brasil, a maioria da população é negra, mas isso não significa automaticamente maior protagonismo de negros e negras, por exemplo no legislativo, no judiciário, nem mesmo no executivo ou na direção de serviços públicos como os de saúde. Negros e negras são maioria em termos absolutos, mas minorias nas relações de poder presentes na sociedade.
Fonte: Freepik.
Você sabia que no Censo Demográfico de 2022, 45,3% da população do país (cerca de 92,1 milhões de pessoas) se autodeclarou como parda? Enquanto 10,2% (20,6 milhões de pessoas) se declara preta; 0,8% (1,7 milhões) se autodeclara indígena; e 0,4% (850,1 mil) da população se declara amarela. A população autodeclarada branca corresponde a 43,5% da população do país (cerca de 88,2 milhões de pessoas). Abaixo você pode acompanhar as alterações na proporcionalidade das autodeclarações nos últimos 11 anos.
As análises de Munanga (2003, p. 6) nos ajudam a entender a complexidade desse processo, quando o autor aponta que o conceito de raça é:
Determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Ou seja, os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, na Inglaterra etc.
“Raça” é um conceito vinculado às opressões, às hierarquizações e às desigualdades que dão sustentação para o desenvolvimento do colonialismo como base da expansão europeia no século XVI para outras partes do mundo. Ou seja, raça é um conceito inventado para justificar a manutenção da expansão de nações colonizadoras e a dominação de diversos povos.
Apesar do descrédito do conceito pela ciência moderna em termos biológicos, a noção de raça persiste no imaginário social, incidindo concreta e fortemente na vida cotidiana de populações racializadas, como é o caso da população negra no Brasil. As iniquidades em saúde, por exemplo, expressam a materialização da ideia de raça, quando observamos que as pessoas negras estão em pior situação em praticamente todos os indicadores. Portanto, para superar a noção de raça, entendemos que é preciso antes assumi-la, como presente e produtora de desigualdades, racializando os debates e as práticas.
Para saber mais
Para entender um pouco mais sobre esse debate de raça e a sua noção na nossa sociedade, leia o texto “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”, do Prof. Dr. Kabengele Munanga (USP), publicado no 3º Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação.
Para aprofundarmos a compreensão da questão racial, é fundamental diferenciarmos três conceitos que estão relacionados entre si: racismo, preconceito e discriminação. Para isso, além de exemplos no âmbito da saúde, utilizaremos, conceitualmente, como referência, as análises de Almeida (2019). Para entender esses conceitos, clique nas abas abaixo.
Fenômeno sistêmico de discriminação com base na ideia de raça que se revela através de práticas (conscientes ou inconscientes) que definem privilégios ou desvantagens a partir do grupo racial ao qual pertençam. Relação de poder.
Exemplo: No meu exercício profissional no campo da saúde, ao atender um homem negro eu deixo a porta da sala aberta, afinal pessoas negras são tidas como mais violentas. No exercício da minha função gestora na saúde, durante reunião sobre o Plano Municipal de Saúde, não me manifesto sobre a necessidade de identificar a situação de saúde da população negra, nem em prever ações de promoção da igualdade racial na saúde, afinal, o SUS é universal, para todos.
Julgamento prévio baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado (grupo submetido a processos sociais que lhes atribuem identidades raciais e/ou étnicas com as quais eles não se identificam), julgamentos estes que podem ou não resultar em práticas discriminatórias.
Exemplo: Sendo paciente/usuário, pressuponho que o médico só pode ser branco. E, caso seja negro, não será um bom profissional. No meu exercício profissional no campo da saúde, eu recebo um paciente/usuário de cabelos crespos e, ao olhá-lo, identifico seu cabelo como sujo.
A prática do tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados, podendo ser direta ou indireta. A discriminação direta acontece através de repúdio ostensivo a indivíduos ou grupos, motivado pela condição racial. A discriminação indireta é um processo em que a situação específica de grupos minoritários é ignorada.
Exemplo: No meu exercício profissional no campo da saúde, atuando com pacientes/usuárias negras no momento do parto, eu atuo com a ideia de que mulheres negras são mais “fortes”, portanto suportam dor de uma forma diferente das pessoas brancas. Precisam menos de recursos anestésicos. Como dirigente/diretor de um serviço de saúde entendo que, embora determinado profissional negro tenha qualificação e tempo de serviço adequados ao exercício da função de chefia, não será promovido, pois não tem “cara” de coordenador.
Importante
O preconceito e a discriminação podem ocorrer baseados em várias outras motivações: ser mulher, ser Pessoa com Deficiência, ser uma pessoa gorda, ser uma Pessoa com Nanismo, ser uma pessoa com transtorno psiquiátrico etc. Mas quando falamos de discriminação e preconceito relacionados à raça, resgatamos não só todo o processo histórico sofrido pela população negra, mas também os mecanismos de manutenção da organização da nossa sociedade, que é baseada na hierarquia de raças.
O que o racismo, o preconceito e a discriminação têm em comum? Racismo, preconceito e discriminação estão associados à ideia de raça, assim como ao processo de racialização de determinados grupos. Este processo foi alimentado no Brasil em 388 anos de escravidão, realizada com brutal violência, e é atualizado na contemporaneidade com a manutenção da subalternização da população negra na sociedade.
Com o processo que dá fim à escravidão, quando o escravizado se torna um trabalhador livre, o estado brasileiro passa a induzir a vinda dos imigrantes europeus, especialmente italianos e alemães, para ocuparem as funções dos ex-escravizados (Kowarick, 1994; Fernandes, 2008). Esse processo foi parte de uma política de embranquecimento (ou branqueamento) da população brasileira, partindo-se da ideia e do projeto de constituir uma nação dita superior tomando o europeu como ideal de civilização.