O exemplo dos trabalhadores técnicos em saúde

Atualmente os trabalhadores técnicos representam mais de oitenta por cento do contingente total de trabalhadores em saúde no Brasil. Eles estão presentes em diversas categorias profissionais, em diferentes modalidades de assistência à saúde, nas equipes de estudos e pesquisas voltadas para a produção da ciência. No entanto, historicamente, esse grupo de profissionais vem experimentando políticas de qualificação, quando elas existem, que não consideram suas reivindicações específicas por processos de formação, regulamentação e reconhecimento profissional. A falta dessas políticas acabam por pesar sobre suas trajetórias de vida, impactando os lugares sociais que ocupam dentro das equipes de trabalho e subalternizando suas práticas e seus saberes.

Essa realidade se reproduz também em outros campos de conhecimento, como o da História, uma vez que ainda são poucos os estudos e pesquisas que se dedicam à memória do trabalho e dos trabalhadores técnicos da saúde. Quando pensamos em uma instituição como a Fiocruz, no valor histórico de sua gênese para a Ciência e a Saúde Pública no Brasil, é quase imediato lembrar de nomes como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas ou Adolpho Lutz. Mas quase ninguém ouviu falar dos auxiliares de laboratório, trabalhadores que atuaram lado a lado com os cientistas participando ativamente dos processos de criação e desenvolvimento das pesquisas, ensino e produção de medicamentos e insumos.

Nas primeiras décadas da República, os auxiliares de laboratório, em sua grande maioria autodidatas, aliaram seus saberes vivenciais aos aprendizados técnicos adquiridos no cotidiano da ciência experimental para reinventar e inovar métodos e técnicas. Entretanto, as questões estruturais próprias da sociedade brasileira, como o racismo, a hierarquização de saberes e a divisão de classe, colaboraram para reproduzir uma divisão social que limitou o reconhecimento destes profissionais.

História em Imagem

fotografia em preto e branco da sala de meios de cultura no Castelo. na frente da imagem, bastante desfocada, está a torneira de um aparato hidráulico, inventado por um dos cientistas do IOC, para produção de água destilada. ao fundo, uma bancada de azulejos com a vidraria e atrás da bancada, dois trabalhadores auxiliares em destaque.

Sala de preparo de meio de cultura no Pavilhão Mourisco - Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J.Pinto

A fotografia exibe a Seção Auxiliar de Preparos e Meios de Cultura, cujo trabalho atendia a todos os laboratórios do antigo Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz. Esta seção era responsável por produzir substâncias que possibilitavam a criação de ambientes in vitro para o crescimento de microorganismos.

(…) observamos em primeiro plano, uma torneira, fora de foco, pertencente ao sistema hidráulico, capaz de produzir água destilada. No fundo da sala, à esquerda, por trás da vidraria, estão dois auxiliares da seção.

O que está mais à frente, de bigode, olha diretamente para a lente do fotógrafo. Seu olhar fixo atrai o nosso, de espectadores, e parece chamar a nossa atenção para a sua forte presença e importância do seu trabalho, que se sobrepõe ao aparato técnico e tecnológico localizado à sua frente; este último de grande importância e orgulho para os cientistas (REIS, 2018). Atuando como protagonistas de suas histórias, os antigos auxiliares de laboratório da Fiocruz buscaram trilhar caminhos, transitando através dos meandros de uma hegemonia cultural da instituição, onde o cientista era o soberano. Assim, foram capazes de criar redes de sociabilidade construindo sólidas relações de solidariedade e cooperação entre si, que não se restringiram ao ambiente de trabalho, tais como esporte, lazer e espiritualidade.

Renata Reis

Para saber mais sobre as muitas histórias dos trabalhadores técnicos da Fiocruz, acesse a exposição virtual de longa duração Manguinhos de Muitas Memórias - www.expomemorias.epsjv.fiocruz.br

O SUS e uma nova proposta para o Trabalho e a Educação Profissional em Saúde

Os anos 1980 foram marcados pela virada democrática no país, em que a emergente sociedade civil pressionou por um processo de abertura política que culminou com a promulgação da nova Constituição Federal em 1988 e a conquista de importantes direitos sociais. Na área da saúde, a formação de trabalhadores foi considerada pelo Movimento Sanitário como uma das condições estruturais para a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS).

No início dos anos 1980, do total de trabalhadores em atividade nos estabelecimentos hospitalares no Brasil, cerca de 35% eram de nível superior e 65% de nível médio e elementar. Os trabalhadores de nível elementar – que haviam cursado somente as quatro primeiras séries do atual ensino fundamental – representavam quase 70% desse grupo. Eram um contingente expressivo de trabalhadores incorporados aos serviços de saúde públicos e privados, com precária ou sem qualificação específica e sem identidade profissional. Ambos os problemas eram consequência de um modelo de assistência à saúde que privilegiava, e ainda privilegia, a mercantilização da saúde e a industrialização da doença.

O SUS e uma nova proposta para o Trabalho e a Educação Profissional em Saúde

O projeto da Reforma Sanitária se orientou pela perspectiva de reforma social, envolvendo a construção de um Estado democrático e a ampliação da visão de saúde de modo a abarcar as condições de vida e de trabalho, como prática social e não apenas como fenômeno biológico. Do mesmo modo, a formação profissional dos trabalhadores técnicos de saúde passou a ser entendida como capaz de contribuir para uma participação crítica e qualificada do/a trabalhador/a no planejamento e na avaliação dos serviços de saúde, capaz de promover transformações nas relações de trabalho e na prestação de serviços à população.

Embora se possa afirmar que, durante os anos de ditadura militar, houve uma preocupação com a preparação de pessoal para exercer determinadas tarefas dita técnicas, para atender ao projeto de expansão dos serviços de saúde, os conteúdos considerados suficientes para preparar pessoal de nível elementar e médio tinham um escopo reduzido.

Em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde recomendou a convocação de uma conferência nacional dedicada especialmente à temática da organização do trabalho para esse novo sistema. No mesmo ano, reuniu-se a I Conferência Nacional de Recursos Humanos (I CNRHS), focada na discussão sobre política de recursos humanos rumo à reforma sanitária. Promovida pelos ministérios da Saúde, da Educação e da Previdência e, então, Assistência Social, a Conferência contou com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e produziu um importante relatório com recomendações específicas sobre a formação e o aprimoramento de pessoal dos níveis médio e elementar.

PARA IR MAIS LONGE: sobre a I conferência Nacional de Recursos Humanos

O Relatório Final da I Conferência Nacional de Recursos Humanos está disponível na página da Biblioteca Virtual em Saúde.

Veja os principais pontos desse relatório:

Articulação entre o setor educacional e instituições prestadoras de serviços

O primeiro destaque do Relatório da I CNRHS era sobre a articulação entre o setor educacional e instituições prestadoras de serviços. Foram apontados alguns entraves a essa articulação, dentre eles:

  • o fato de que o setor educacional, historicamente, não respondia às necessidades de formação de trabalhadores para a saúde - em função da pequena oferta de vagas e da inadequação curricular à realidade dos serviços;

  • o bloqueio, pela lógica privatizante do setor educacional em alguns estados, à consolidação de centros formadores de RH na saúde; e

  • a ausência de participação efetiva das instituições prestadoras de serviços de saúde junto ao setor educacional, causando e consolidando distorções entre o perfil dos profissionais formados e aqueles que atenderiam às reais necessidades dos serviços, em especial do setor público de saúde.

A partir desse diagnóstico, o relatório indicou a necessidade de viabilizar, a nível estadual, a articulação interinstitucional para a criação de uma política de RH com vistas à Reforma Sanitária, apontando, ainda, que o setor saúde orient[ass]e os conteúdos curriculares a serem implementados pelo sistema educacional. Você pode ler a indicação na página 23 do Relatório.

Formação e educação continuada

O segundo ponto dizia respeito à formação e educação continuada. Identificava-se que os profissionais formados pelo sistema educacional não atendiam às reais necessidades do setor saúde, pela distância entre a formação e a prática dos serviços. Afirmava-se, ainda, que o setor educacional oferecia o exame de suplência, principalmente na área de enfermagem, como mecanismo de titulação (qualificação e habilitação), sem a preocupação de aferir, do ponto de vista dos serviços, a capacidade técnica do habilitado frente à complexidade da assistência prestada à população; e, finalmente, ressaltava-se a ocorrência do processo de educação continuada por meio de pacotes emergenciais verticais que não atendiam à realidade local dos serviços. Para superação desses problemas, o Relatório propôs um extenso programa:

  • Ação articulada entre Ministério da Saúde, Ministério do Trabalho e Ministério da Educação para estudo e avaliação de habilitações existentes e aprovadas pelo CFE [Conselho Federal de Educação] e CEEs [Conselhos Estaduais de Educação]. Tal ação seria validada pelas comissões interinstitucionais de RH a nível dos estados.

  • Criação de Escolas Técnicas Públicas, de caráter multiprofissional e específicas para o setor saúde - definindo que o perfil dos profissionais de nível médio e elementar deveria atender às necessidades do setor saúde adequando-se à reorganização dos serviços com vistas à Reforma Sanitária, destacando-se o auxiliar de enfermagem.

  • Reconhecimento e fortalecimento dos Centros Formadores de RH para a saúde destinados à qualificação profissional atendendo as necessidades imediatas dos serviços e propiciando formação ao trabalhador que não teve oportunidade pela via regular

  • Adequação dos conteúdos programáticos das qualificações às necessidades do serviço. O setor saúde deve participar de sua elaboração devendo contemplar a realidade político-social. Recomendava-se uma metodologia que privilegiasse a integração ensino/serviço, permitindo o crescimento do “trabalhador/aluno” a fim de que ele entendesse o processo em que está inserido.

  • Descentralização desse processo, que deveria estar voltado para as características e especificidades das unidades locais do setor.

  • Projeto Larga Escala como estratégia para formação de pessoal de nível médio e elementar já engajado na força de trabalho da saúde.

  • Extinção do exame de suplência como mecanismo de habilitação profissional para a saúde.

  • Ter a educação continuada deve ser uma das estratégias que favorecem a reorganização dos serviços. Nesse sentido recomendava-se a educação continuada como forma de atualização dos profissionais, com o objetivo de introduzir novas técnicas que garantam a melhoria de qualidade do desempenho profissional e propiciar a integração interprofissional e o trabalho coletivo.

  • Recomendava-se que a educação continuada deveria ser planejada integrando o setor de serviços, o de desenvolvimento de RH das instituições de saúde e o setor formal de ensino.

  • A educação continuada deveria atender a necessidades específicas por área e categorias profissionais, sendo a supervisão o mecanismo que viabilize e identifique os problemas e que seja passível de avaliação e sistematização;

  • Recomendava-se que fosse produzido material técnico e informativo para educação continuada do pessoal de nível médio, face a escassez do mesmo.

Você pode ler as recomendações nas páginas 24 e 25 do Relatório.

Inserção dos profissionais de nível médio e elementar no mercado de trabalho

O terceiro ponto destacado neste Relatório, no que tange à formação e aprimoramento de profissionais para a saúde de nível médio e elementar, dizia respeito à inserção desses profissionais no mercado de trabalho.

As diretrizes propostas para valorização e investimento na formação de profissionais para a saúde de nível médio e elementar se deu pela grande necessidade destes profissionais na área dos serviços. O Relatório destacava, entre outros, as auxiliares e técnicas de enfermagem, de patologia clínica, de administração, estatística, arquivo médico, saneamento, higiene oral, vigilância sanitária e epidemiologia.

Sublinhava-se, naquele contexto, a escassez de oferta desses profissionais no mercado e a precariedade e inadequação de sua formação - obtida muitas vezes através do exame de suplência. Denunciava-se, ainda, que os cargos de nível médio, nos quadros de lotação, eram, via de regra, ocupados por pessoal sem a devida formação, uma estratégia clientelista de dar melhores salários ao pessoal de nível elementar sem qualificação.

Afirmava-se, também, que “os baixos salários e a aspiração pela formação superior, característica de nossa sociedade cartorial que valoriza o diploma e não o trabalho, não estimulariam a procura das profissões de nível médio. Nesse sentido, propunha que a iniciativa de cursos partisse “das instituições de prestação de serviço, buscando integração com Universidades e Secretarias de Educação. Assim, seria possível redimensionar os currículos em termos de conteúdo teórico e resolutividade das ações de nível primário, secundário e terciário, da concepção de saúde/doença, da interligação entre ciclos básicos e profissionais, dos métodos de ensino e do compromisso social com os interesses da população.

Por fim, definia-se que o desenvolvimento de programas de educação continuada deveria ser garantido no âmbito das instituições de saúde, estabelecendo-se mecanismos que assegurassem a concretização da reciclagem permanente dos trabalhadores de saúde e o retorno desse conhecimento à prática de saúde nos serviços públicos.

Você pode ler a íntegra sobre esse tópico na página 25 do Relatório.

Assim, a nova forma de pensar e fazer saúde no Brasil implicou a necessidade de implementação de uma formação profissional renovada, articulando as áreas da saúde e da educação. Este propósito se materializou no artigo 200 (inciso III) da Constituição Federal de 1988, que afirma que compete ao SUS “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”.

A construção de novos caminhos e alternativas para alcançar um sistema público de saúde baseado nos princípios de universalidade, integralidade e equidade, somou-se à defesa de uma educação pública, universal, laica, unitária e politécnica ou tecnológica, expressa no Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1988-1996). O Projeto foi elaborado pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), fundamentado na pedagogia histórico-crítica e encaminhado ao Congresso pelo Deputado Federal Otávio Elísio. Ao longo dos anos 1990, esse PL foi sobreposto por vários outros, expressando diferentes concepções em disputa no campo da educação e da formação profissional no Brasil.

Políticas, Projetos e Ações de Formação Profissional em Saúde em Tempos Neoliberais

Os anos 1990 foram pautados pelas profundas mudanças no Estado brasileiro - concomitante ao avanço da “globalização” - e pela mudança no padrão de acumulação capitalista, que desde os anos 1980 passou a funcionar sob o imperativo da mundialização financeira. Tais mudanças se inspiraram na doutrina neoliberal: abertura irrestrita da economia, desregulamentação comercial e financeira, desregulação do mercado de trabalho e enxugamento da face pública do Estado, com a privatização das empresas estatais e demissões em massa. Foi um período em que se verificou a deterioração das condições de vida das populações dos países dependentes, o aumento da pobreza e do desemprego em escala planetária e a diminuição das redes de proteção social.

O Brasil, nessa época, foi marcado pelo aprofundamento da recessão econômica. Viu-se quedas na produção, no emprego e no salário, e a desnacionalização da economia. São marcantes também o refluxo dos movimentos social e sindical, o aumento do desemprego e da precarização do trabalho, o chamado “caos da saúde”, o sucateamento dos serviços públicos e a precarização das políticas sociais públicas. O sucateamento do serviço público foi caracterizado pela privatização do financiamento e da produção de serviços, enquanto a precarização das políticas sociais públicas, pelo corte dos gastos sociais, a focalização dos gastos nos grupos mais carentes e a descentralização em nível local.

Aos poucos, o modelo de desenvolvimento baseado no projeto desenvolvimentista, onde o papel do Estado brasileiro era de dinamizador e estrategista do desenvolvimento econômico, foi substituído pelas iniciativas de reestruturação da aparelhagem estatal. O objetivo era tornar o país um Estado gerencial - capaz de administrar, antes de tudo, a transferência dos serviços públicos para o mercado, delegando à sociedade civil a execução de parte das políticas de saúde e de educação. Esse novo modelo de Estado consolidou a inserção do Brasil no circuito internacional de valorização financeira, permitindo a atração de capitais externos de curto prazo por meio do controle do processo inflacionário, abrindo espaço para aprofundar medidas anteriores, com a abertura econômica e financeira, e as privatizações de empresas e dos serviços públicos.

A reforma da aparelhagem estatal, operada nos anos 1990, abriu caminho para a desregulamentação do mercado de trabalho (terceirização, contrato de trabalho por tempo determinado etc.) e a redução dos salários e dos gastos e direitos sociais. Por meio dessa reforma, o Estado deixava de ser o responsável direto pela produção de bens e serviços para exercer as funções de regulação e coordenação das políticas econômicas e sociais e transferia para o setor privado as atividades que poderiam ser controladas pelo mercado Ao mesmo tempo, descentralizava para os níveis estadual e municipal as funções executivas. Ainda, a reforma incentivava a transposição da administração dos serviços públicos para as organizações públicas não estatais de tipo especial: as chamadas “organizações sociais”.

PARA SABER MAIS: sobre as organizações sociais

A Lei nº 9637, de 15 de maio de 1998, dispõe “sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências”. Nela, define-se logo de início:

Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.

A “modernização” e a privatização do setor público

Para implantar a “modernização” e a privatização do setor público foi criado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. O Plano apresentou um modelo conceitual caracterizado por três formas de propriedade jurídica: pública, pública não estatal e privada. Esses tipos de propriedade se relacionam com os setores da aparelhagem estatal identificados como: núcleo estratégico, atividades exclusivas, serviços não exclusivos e produção de bens e serviços para o mercado.

Nesse modelo, o aparelho de Estado deve atuar nas atividades consideradas exclusivas, isto é, nos setores prestadores de serviços que só ele pode executar e tem poder de regulamentar, fiscalizar e fomentar. Já a produção de bens e serviços para o mercado, prestada por empresas estatais que se encontram no interior do aparelho de Estado, deve ser privatizada.

Os chamados serviços não-exclusivos ou serviços sociais competitivos são setores em que o Estado atua em parceria com organizações da sociedade civil. Estes devem passar à forma jurídica pública não estatal e à administração gerencial, sendo executados pelo setor privado, mas subsidiados, regulados e avaliados pelo Estado.

Exemplos de atividades exclusivas de Estado

Segurança pública, cobrança e fiscalização dos impostos, previdência social básica, subsídio à educação básica e contratação de serviços de saúde.

Exemplos de serviços não-exclusivos ou serviços sociais competitivos

Áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, cultura e saúde.

Esse arcabouço conceitual e operacional vigora até os dias atuais, trazendo implicações decisivas para as políticas voltadas ao trabalho e à formação dos trabalhadores técnicos em saúde, numa conjuntura plena de tensões e resistências à implementação do SUS.

Políticas públicas para Trabalho e formação dos trabalhadores técnicos em saúde

No terreno das políticas institucionais voltadas à formação e gestão de trabalhadores de saúde, como expressão das disputas intensas que o caracterizaram, destacam-se como principais iniciativas:

Educação Profissional em Saúde e as políticas, projetos e ações na área da educação na virada neoliberal no Brasil

A maior parte das políticas, projetos e ações voltadas à qualificação profissional técnica para o SUS estiveram em diálogo com a área da educação. Esta área, por sua vez, também enfrentou os desafios da reconstrução democrática e da implementação do projeto neoiberal no país, ou, nas palavras de Gaudêncio Frigotto: uma travessia da ditadura civil-militar para uma ditadura do mercado no ideário pedagógico.

Após a Constituição de 1988, a sociedade civil organizada em torno do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública consolidou o primeiro projeto de LDB, de autoria do Deputado Federal Otávio Elísio, afirmando, no que diz respeito à formação profissional, sua integração à formação geral nos seus múltiplos aspectos humanísticos e científico-tecnológicos. A aprovação desse projeto perdeu apoio parlamentar, enquanto foram sendo tomadas medidas legais, pelo alto e sem discussão com os educadores organizados e mobilizados.

Nos anos 1990, em meio a difíceis debates e embates de visões de mundo, foi aprovado o projeto substitutivo da LDB - a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 -, afirmando o ensino médio como etapa final da educação básica e preparatória para a educação superior, incluindo-se a possibilidade dessa etapa de, atendida a formação geral do educando, também prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Afirma, ainda, equivalência legal dos cursos do ensino médio como habilitação para prosseguimento dos estudos e a autorização para que a preparação geral para o trabalho e a habilitação profissional sejam desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas em educação profissional.

No ano seguinte à aprovação da LDB, foi aprovado o Decreto n° 2.208, de 17 de abril de 1997, regulamentador desta Lei no tocante à Educação Profissional. Este decreto marcou uma profunda regressão nos ensinos médio e técnico pelo restabelecimento do chamado “dualismo educacional” neste nível de ensino, ao afirmar a proibição da integração do ensino médio com a formação profissional, além de regulamentar formas fragmentadas e aligeiradas de profissionalização em função das necessidades do mercado, assumindo o ideário pedagógico do próprio mercado com a pedagogia das competências para a empregabilidade.

A pedagogia das competências se constituiu no aparato ideológico justificador das desigualdades econômicas e sociais entre os indivíduos e/ou das relações assimétricas de poder dentro dos países e entre eles. Isso impactou a área da saúde, nos programas de formação profissional que tiveram alicerce para aderirem ao ideário da mercantilização da saúde, da perspectiva gerencialista nos processos envolvendo a assistência à saúde e da redução de conteúdos voltados para uma formação humana integrada à formação profissional.

A intensa disputa entre os princípios defendidos em 1988, inscritos no primeiro projeto de LDB, e o Decreto n° 2.208/97, resultou na aprovação do Decreto n° 5.154, de 23 de julho de 2004, que revogou, na prática, o Decreto n° 2.208/97, permitindo a integração do ensino médio com o ensino técnico, entendido como uma condição social e historicamente necessária para a construção do ensino médio unitário e politécnico.

Repôs-se, assim, a articulação deste nível de ensino com a formação profissional, com vistas a superar o caráter alienado da escola e do trabalho em saúde quanto às determinações sociais do processo saúde-doença e do próprio processo de privatização no interior do setor saúde, bem como da dualidade histórica do antigo segundo grau - atual ensino médio - entre formação acadêmica e formação profissional.

Restabeleceu-se, ainda, a articulação da educação com o processo de trabalho em saúde - também conhecida como estratégia ensino-serviço, aliando a dimensão técnica à dimensão política no processo de formação, e a construção de um novo compromisso ético-político dos trabalhadores de saúde pautado na questão democrática, na relação solidária com a população, na defesa do serviço público e da dignidade humana.

Essa vitória das forças publicizantes, contudo, não impediu o avanço do ideário neoliberal no campo da educação. As políticas, os programas e as ações voltadas à formação profissional no campo da saúde, mesmo fortalecendo as Escolas Técnicas do SUS, também induziu e financiou a oferta privada na área, como foi o caso já citado do Profae do Ministério da Saúde, bem como do:

  • Programa Nacional de Expansão da Educação Profissional do Ministério da Educação (PROEP);

  • Plano Nacional de Formação Profissional do Ministério do Trabalho e Emprego (PLANFOR); e do

  • Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego do Ministério da Educação (PRONATEC).

Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP)

O Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP), iniciado em 1997, foi uma iniciativa do Ministério da Educação em parceria com o Ministério do Trabalho, em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), voltada à expansão da oferta de cursos de formação de trabalhadores no país, de acordo com a nova legislação sobre a Educação, com recursos para construção e reforma de centros de educação profissional, aquisição de equipamentos e de material didático, e capacitação de professores.

O programa se orientou por aspectos técnico-pedagógicos ligados à flexibilização curricular e adequação à demanda, formação e avaliação por competências, em um modelo de gestão pautada numa certa “autonomia” e “flexibilidade”, bem como na captação de recursos próprios, e incentivou as “parcerias” e a expansão da Rede de Educação Profissional mediante convênios com o segmento comunitário (privado). Esses convênios abrangiam, também, os segmentos estadual e federal e resultaram no fomento à criação de um grupo expressivo de Fundações para obtenção do recurso, sem experiência na área de educação profissional ou até mesmo em educação.

A partir de 2008, foi realizado um esforço de supervisão nacional para verificação dos convênios, verificando que, no segmento comunitário (privado), dos 110 projetos planejados somente 70 foram terminados - dentre os quais 50% foram federalizados ou entregues ao SENAI, visto que as mantenedoras originais não possuíam condições técnicas nem financeiras para finalização das obras ou manutenção das escolas construídas.

Entre 2013 e 2014, o MEC entregou as escolas e equipamentos para as instituições que estavam em funcionamento mediante a verificação da oferta de vagas gratuitas de contrapartidas ofertadas pelo segmento comunitário (privado).

Plano Nacional de Formação Profissional do Ministério do Trabalho e Emprego (PLANFOR)

O Plano Nacional de Formação Profissional do Ministério do Trabalho e Emprego (PLANFOR) foi um plano de qualificação profissional elaborado pela Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional do Ministério do Trabalho e financiado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, vigente entre 1996 e 2002. Embora não tenha sido uma iniciativa ligada diretamente ao MEC, o PLANFOR afirmou seu caráter complementar à educação básica como direito constitucional, propondo dinamizar a qualificação profissional mediante sua articulação e integração às demais políticas públicas de geração de trabalho e renda.

Uma de suas áreas estratégicas foi a articulação institucional, através da consolidação e integração de uma rede nacional de educação profissional voltada à qualificação permanente de trabalhadores.

Suas ações, voltadas à educação profissional em diversas áreas, tiveram como diretrizes:

  • a qualificação ou requalificação de trabalhadores pautada no desenvolvimento de habilidades básicas, específicas e de gestão e voltada à inserção ou reinserção no mercado de trabalho, à melhoria da produtividade e à elevação da renda pessoal e familiar e melhoria geral na qualidade de vida de suas comunidades;

  • a elevação do nível de escolaridade, somando esforços para erradicação do analfabetismo e para a ampliação do número de pessoas com, pelo menos, o nível básico de escolaridade; 3) contribuir para a redução das desigualdades sociais e regionais, para a preservação da natureza e para construção da solidariedade e cidadania;

  • combate a todas as formas de discriminação, em especial as de gênero, idade, raça e cor, contribuindo para a garantia do respeito à diversidade;

  • estímulo à ampliação da oferta de empregos e oportunidades de geração de renda, bem como a busca por alternativas de trabalho autogestionado, associativo ou micro e pequenos empreendimentos - em um contexto de aumento do desemprego e avanço de arranjos precarizados de trabalho.

Em 2010, a proposta de Plano Nacional de Educação 2011-2021 foi enviada ao Congresso Nacional, apresentando a ampliação da oferta da educação profissional em várias de suas metas (3; 8; 10 e 11), seja na forma integrada, seja nas formas concomitante ou sequencial, visando ao aumento dos anos de estudo da população brasileira.

O Plano indica o fomento às estratégias:

  • de expansão da oferta de vagas gratuitas por parte das entidades privadas de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, de educação profissional técnica de forma concomitante ao ensino médio público;

  • de “regime de colaboração e apoio” com essas mesmas entidades, da oferta de, pelo menos, 25% das matrículas de educação de jovens e adultos na forma integrada à educação profissional nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio;

  • e de expansão do financiamento estudantil e dos programas de assistência aos estudantes da educação profissional.

A parceria com instituições privadas para a oferta da educação profissional não elimina os princípios da gratuidade e do público, tendo o Estado como financiador. A obrigatoriedade da oferta gratuita de vagas pelo sistema sindical empresarial é apresentada como ampliação da ação pública - e não privada - para a educação profissional.

Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec)

O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) é considerado o programa mais robusto desenvolvido pelo governo federal no que tange às políticas voltadas à formação profissional de nível médio. O Pronatec foi criado por meio da Lei nº 12.513, de 26 de outubro de 2011, apresentando como finalidade ampliar a oferta de cursos de Educação Profissional e Tecnológica (EPT), por meio de programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira - utilizando as mesmas soluções de ampliação do acesso ao ensino superior materializadas no Reuni (Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), no Fies (Financiamento Estudantil) e no Prouni (Programa Universidade para Todos), com empréstimos para pagamento de mensalidades em cursos ofertados por instituições privadas e bolsas de estudo nessas mesmas instituições.

Assim, o Pronatec vem dinamizando o mercado educativo, colocando as instituições privadas como as principais protagonistas dessa expansão, considerando-se os sistemas formadores público e privado, os cursos oferecidos e suas modalidades e o número de alunos matriculados com e sem bolsa de estudo. Ainda que o Pronatec incorpore a política de expansão da rede federal e das redes estaduais de educação profissional, o enorme incentivo às instituições privadas dificulta a superação de uma lógica restrita à dimensão profissionalizante do ensino médio, vinculando essa modalidade de ensino à priorização do exercício produtivo em desfavor de uma formação básica de caráter geral e humanista, integrador das dimensões tecnológica e crítica.

Como aponta Marise Ramos, em O Trabalho no Mundo Contemporâneo: fundamentos e desafios para a saúde, uma das prioridades do Pronatec foi investir em uma maior regulação sobre a oferta privada, em especial, do Sistema S, que em 2011 ofertava 2/3 de suas vagas gratuitamente, sendo que a meta seria chegar a 85%, com atividades de apoio a escolas públicas estaduais.

O convênio do Sistema S com sistemas estaduais vem sendo, segundo a autora, praticado para ofertar vagas na educação profissional a estudantes de ensino médio da rede pública. Frisa-se que a oferta é gratuita para os estudantes, mas não para o Estado, dado que o Pronatec financia, com recursos públicos, essas vagas. No que tange à saúde, embora o setor privado concentre a maioria das vagas ofertadas, a expansão da rede federal via Pronatec coloca novos desafios e oportunidades ao setor, podendo, juntamente com as escolas da RETSUS, viabilizar uma formação técnica de trabalhadores da saúde pública, ética, científica e politicamente fortalecidas pelos princípios e diretrizes do SUS.

Desafios para as políticas, projetos e ações no campo Trabalho-Educação-Saúde no século XXI

As duas últimas décadas do século XX e as duas primeiras do XXI consolidaram uma nova gestão do trabalho nos serviços públicos de saúde, por meio do Programa Nacional de Publicização instaurado na contramão da Constituição Federal, na segunda metade dos anos 1990, promovendo um intenso processo de privatização e terceirização dos serviços de saúde.

A Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998 – ou Lei das Organizações Sociais (OS) –, ainda em vigor, possibilita a “flexibilização” do SUS ao autorizar a mudança da natureza jurídica das instituições públicas de direito público para instituições de direito privado, autorizando que, ao ser extinta, a instituição pública seja substituída na forma de fundação ou associação civil, devendo, para isso, ser “sem fins lucrativos” e cumprir determinados requisitos formais, além de se submeter a um contrato de gestão que especifica o programa de trabalho proposto, as metas a serem atingidas, os prazos de execução, os critérios de avaliação de desempenho e os indicadores de qualidade e produtividade.

Declarada como entidade de interesse social e utilidade pública, a OS se torna “parceira” do poder público, podendo receber verbas públicas e tendo permissão para usar o patrimônio público – com a concessão de bem imóvel, bens móveis e equipamentos –, bem como o erário público pode ceder a ela servidores públicos com ônus. Além disso, é concedida autonomia para as OS contratar funcionários sem concurso público, bem como a permissão para obtenção de recursos de fontes extra orçamentárias – por exemplo, por meio da venda de serviços e da celebração de convênios com planos privados de saúde e seguros-saúde – e a realizar compras sem licitação. Ainda, o fundo público de saúde pode ser administrado por uma fundação que contrate diversos prestadores para a execução dos serviços previstos no contrato de gestão, ou pode ser administrado diretamente por uma associação civil, sem restrição da aplicação de seus recursos no mercado financeiro.

Outras iniciativas de privatização dos serviços públicos, concomitantes à criação das OS, desenvolveram-se na área da saúde, como a criação de entidades de direito privado, paralelas aos hospitais - como as fundações privadas de apoio -, com ampla autonomia para captação e gerenciamento de recursos financeiros.

Ressalta-se, ainda, a implantação de consórcios intermunicipais, organizados na forma de pessoa jurídica de caráter privado, e soma-se a isso a contratação do setor privado filantrópico e os subsídios fiscais para o mercado de planos e seguros privados de saúde. Em 1998, o mercado de planos e de seguros-saúde já abrangia 25% da população, ou 37 milhões de clientes, dos quais aproximadamente 5 milhões de servidores públicos, civis e militares, com uma arrecadação estimada de cerca 16 bilhões de reais, quantia equivalente ao orçamento do Ministério da Saúde, na época, de 17,5 bilhões de reais.

A terceirização atingiu também a gestão de unidades hospitalares públicas, com a transferência da gerência dos hospitais estatais para entes privados, lucrativos ou não lucrativos, nas atividades assistenciais e/ou dos serviços especializados do hospital, em setores como o de hemoterapia e serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, bem como nas áreas de limpeza, manutenção e segurança, substituindo-se o servidor público por prestadores privados organizados em cooperativas de profissionais de saúde, e pela prática da contratação da força de trabalho por meio da instituição de cooperativas, fundações e organizações não governamentais (ONGs), como no Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e no Programa Saúde da Família (PSF). Muitas dessas terceirizações usurparam direitos trabalhistas e sociais e indicam que a acomodação de forças e interesses no na área da saúde, ao longo dos anos 1990, estabeleceu-se por meio de um processo de “universalização do privado” no interior do SUS.

Como procuramos evidenciar, neste mesmo contexto de privatização do Estado e de conversão dos direitos em serviços, a educação vem sendo igualmente afetada. Os programas públicos de fomento à ampliação da educação profissional fortaleceram os cursos privados, de curta duração, com currículos aligeirados e pautados em uma pedagogia voltada aos interesses imediatos do mercado de trabalho e não da elevação dos conhecimentos básicos, técnicos e tecnológicos da população trabalhadora. O crescimento de cursos privados à distância (EAD), somado à falta de regulação, acompanhamento e verificação da qualidade dessa oferta, também contribui para o quadro caótico em que se encontra a educação profissional em geral, tendo expressão preocupante também na área da saúde.

Houve, certamente, muitos avanços em ambas as áreas, resultantes de processos contraditórios, que expressam as lutas em torno de concepções de sociedade e disputas para direcionar os programas, projetos e ações voltados à formação de trabalhadores para a saúde de acordo com essas diferentes concepções.

Mesmo frente às investidas contra a estruturação das políticas sociais pelo Estado brasileiro, tal como definidas constitucionalmente, nos últimos 30 anos foi possível implementar diversos avanços. Entre eles, cabe destacar a incorporação de novos modelos tecnológicos em municípios brasileiros, tais como: a oferta organizada, a vigilância em saúde, o trabalho programático e o acolhimento. Além disso, é válido ressaltar o expressivo aumento na cobertura assistencial à saúde pelas equipes de Saúde da Família, principal estratégia de atenção básica do Ministério da Saúde, bem como a integração da atenção básica com a vigilância em saúde, além da redução dos leitos psiquiátricos e o aumento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e das residências terapêuticas como resposta aos princípios de desospitalização e reinserção social na área de saúde mental. Destaca-se também o aumento da capacidade instalada e o crescimento da assistência ambulatorial do setor público, tendência anterior ao advento do SUS, mas que se mantém nos anos 1990 e primeiras duas décadas de 2000, do mesmo modo a ampliação do número de transplantes, a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Igualmente ainda salienta-se o aumento do acesso a medicamentos essenciais, bem como a quebra de patentes de medicamentos e a universalidade do atendimento aos casos de HIV/AIDS. Por fim, cabe apontar a ampliação e diversificação dos postos de trabalho na área de saúde, decorrentes do progressivo processo de descentralização e municipalização das ações de saúde.

Gráfico de pizza de onde trabalham os técnicos de saúde em 2018, dividindo entre SUS e setor privado, 13% (297.778 profissionais) trabalham no setor privado, 87% (2.050.503 profissionais) trabalham no SUS.

CNES, 2018. Gráfico extraído de: “Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva dos Trabalhadores”, projeto de pesquisa da Rede PMA APS coordenado por Márcia Valéria Morosini e Márcia Teixeira e desenvolvido pelo Observatório dos Técnicos em Saúde - EPSJV/Fiocruz

Assim, a direção da Reforma Sanitária e da perspectiva unitária e politécnica dos ensinos médio e técnico é a direção estabelecida para o SUS pela Constituição Federal de 1988 e para a educação pela LDB de 1996. Esta direção vem sendo constrangida pela política econômica de corte neoliberal centrada no ajuste fiscal; em políticas reprodutoras de um modelo de saúde centrado no hospital, no ato médico e nas tecnologias duras ou instrumentais; em um projeto educacional que mantém sistemas diferenciados e hierarquizados de organização educacional e pedagógica - levado adiante por instituições privadas subsidiadas pelo poder público sem regulação, acompanhamento ou verificação de qualidade e adequação à finalidade pública da formação em saúde; numa política de precarização do trabalho na área da saúde, mormente no SUS, que abrange mais de 80% dos postos de trabalho, contribuindo para a criação de circunstâncias desfavoráveis à sua missão.

Como enfrentar o desafio de qualificação de trabalhadores técnicos para o SUS?

A partir dessas constatações e considerando as experiências já realizadas no campo das políticas, projetos e ações voltadas à educação profissional em saúde, como enfrentar o enorme e constante desafio de qualificação de trabalhadores técnicos para o SUS, tendo em vista a garantia a uma educação de qualidade, que permita a elevação de seus conhecimentos básicos, técnicos e tecnológicos, vinculando-os aos princípios e diretrizes do direito universal à saúde de qualidade, humanizado e resolutivo?

Se a mínima qualificação compatível com o trabalho em saúde na atualidade é a formação técnica de nível médio, tendo em vista que todo trabalho em saúde envolve conhecimentos e habilidades de caráter técnico-científico e o cuidado em saúde envolve a aplicação de tecnologias leves, a formação dos Técnicos em Saúde deve ser orientada por princípios e diretrizes do SUS, não do ensino técnico privado.

O principal desafio do poder público é ampliar o investimento na formação dos Técnicos em Saúde mediante o fortalecimento das redes públicas de formação profissional, de modo a inverter a estatística que indica, atualmente, a concentração de 80% das matrículas desses técnicos no setor privado.

Gráfico de colunas com o comparativo de matrículas por esfera administrativa de 2010 a 2018.

INEP, 2018. Gráfico extraído de: “Processo de Trabalho dos Técnicos em Saúde na perspectiva dos saberes, práticas e competências”, projeto de pesquisa coordenado por Marise Ramos e desenvolvido pelo Observatório dos Técnicos em Saúde - EPSJV/Fiocruz

Investir nas redes públicas implica ampliar a capacidade da Rede Federal de Educação Profissional. Científica e Tecnológica, cuja atuação na área da saúde é ainda tímida. É preciso rearticular a Rede de Escolas Técnicas do SUS e aproximá-las às demais redes públicas de formação em saúde, no sentido de prover a formação pública dos trabalhadores técnicos da saúde. Ao mesmo tempo, é necessário que o Ministério da Saúde recupere o seu papel de ordenador da formação dos trabalhadores técnicos em saúde articulado ao Ministério da Educação, retomando a importância da formação técnica na agenda política da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde e recompondo o financiamento das políticas de educação na saúde, em especial os projetos de qualificação e formação profissional dos técnicos da saúde.

PARA SABER MAIS:

Matéria 35 ANOS DE POLITECNIA NA SAÚDE

Fundada em 1985, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (ESJV) nasce em meio à mobilização social em torno dos rumos da saúde e da educação durante a redemocratização do país, e sua história coincide com o período da Nova República no Brasil. Nesta matéria, a Poli traça um panorama do que foram as políticas de educação profissional nesse período e destaca suas interseções com a trajetória da Escola.

Leia a matéria na página da EPSJV

Vídeo TRABALHO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE NA CORDA BAMBA DE SOMBRINHA

O vídeo-documentário é parte integrante do livro ‘Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história’ e traz entrevistas com pessoas que participaram do processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e militaram pela formação profissional em saúde. Entre outras, o filme tem entrevistas com Nelson Rodrigues dos Santos (Nelsão), Arlindo Fábio, Izabel dos Santos, Roberto Passos Nogueira e Gaudêncio Frigotto.

Veja o vídeo na página da EPSJV

OBSERVATÓRIO DOS TÉCNICOS EM SAÚDE - OTS - EPSJV/Fiocruz

O Observatório dos Técnicos em Saúde tem como missão produzir estudos e pesquisas sobre o trabalho técnico, a educação profissional e as políticas sociais de educação e saúde, buscando disponibilizar um conjunto de dados e informações em publicações impressas e eletrônicas para alunos, professores, pesquisadores, gestores do Sistema Único de Saúde, sindicatos e associações profissionais dos trabalhadores técnicos.

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Nesta aula você viu os seguintes tópicos:

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    O exemplo dos trabalhadores técnicos em saúde

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    O SUS e uma nova proposta para o Trabalho e a Educação Profissional em Saúde

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    Políticas, Projetos e Ações de Formação Profissional em Saúde em Tempos Neoliberais

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    Desafios para as políticas, projetos e ações no campo Trabalho-Educação-Saúde no século XXI

REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS:

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