Pandemia Covid-19 no contexto das mulheres indígenas
Olá! Essa é a primeira aula do Módulo 2 do curso Covid-19 e a atenção à gestante em comunidades indígenas e tradicionais. Ao final da aula, você vai ser capaz de:
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Compreender as particularidades na epidemiologia dos indígenas no contexto da Covid-19.
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Conhecer sobre a saúde da mulher indígena antes da Covid-19.
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Analisar as peculiaridades da Covid-19 nas mulheres indígenas.
Para uma experiência de aprendizagem mais ampla, assista aos vídeos e visite os materiais e links externos que estão disponíveis ao longo do texto. Eu vou sempre te indicar materiais que podem contribuir para o seu aprendizado.
Particularidades na epidemiologia dos indígenas no contexto da Covid-19
A Covid-19 tem gerado uma emergência sanitária em todas as regiões do Brasil e do Mundo. Pela primeira vez, uma pandemia desta magnitude atinge o mundo conectado digitalmente e por meios de transporte aéreo, terrestre e marítimo. A despeito de ter assolado todas as partes do mundo, a pandemia Covid-19 mostra particularidades importantes às comunidades tradicionais, como as indígenas, já que estas costumam apresentar uma dinâmica epidemiológica muito própria.
Quer saber mais sobre o assunto?
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Confira o papel dos meios de transporte aéreo e terrestre na disseminação da Covid-19 no estado de Pernambuco (em inglês) no Journal of Travel Medicine
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Leia artigo opinativo com considerações sobre as estratégias de gerenciamento de crise na pandemia Covid-19, na Revista Científica do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco
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Veja o livro que aborda diversos aspectos sobre a pandemia Covid-19, inclusive no capítulo 3 há uma perspectiva de quem de fato atua como profissional de saúde contra a pandemia, publicado pela Sociedade Brasileria de Ecologia Humana – SABEH
As doenças e suas epidemiologias dependem de uma tríade formada pelo indivíduo humano (hospedeiro), o vetor da doença e o ambiente. Considerando esses três fatores, é fácil entender que os grupos indígenas brasileiros possuem parâmetros epidemiológicos muito distintos entre si. Ocorre uma heterogeneidade grande entre os grupos que se relaciona com características culturais próprias às diferentes etnias, com o grau de urbanização em que vivem, com o grau de contato com não indígenas, com tamanho populacional, com a região em que vivem e o ambiente de cada aldeia.
Chama logo nossa atenção a dimensão continental do Brasil, com ambientes que variam de áreas semidesérticas no Sertão Nordestino a ambientes temperados com neve ocasional no Sul e florestas úmidas no Norte. Naturalmente, cada ambiente vai ter um papel forte na epidemiologia das diferentes doenças. Notadamente, vetores de doenças como malária, filariose, esquistossomose e doença de Chagas terão presença característica em algumas regiões. Enquanto o clima mais frio, e consequentemente mais propenso a aglomerações em ambientes fechados, podem ter aspecto relevante na disseminação de doenças virais respiratórias.
O grau de urbanização do grupo também influencia na epidemiologia de diversas doenças. Como exemplo, demonstramos em estudo prévio que o grau de urbanização tem papel relevante na epidemiologia das doenças cardiovasculares nas populações indígenas do Nordeste brasileiro. A despeito de investigarmos grupos indígenas de tradições próximas, que habitam o ambiente do Vale do Rio São Francisco, observamos que grupos mais urbanizados apresentaram proporcionalmente maior mortalidade cardiovascular. De forma interessante, superando a mortalidade dos centros urbanos próximos. Acredita-se que o fato de os indígenas estarem assumindo a forma de vida mais sedentária e de alimentação industrializada aumenta o risco de desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, o que parece ser ampliado pela menor oferta de serviços de saúde a essas populações e menor grau de educação em saúde.
Esse assunto vale uma reflexão
Leia o artigo sobre urbanização e aumento da mortalidade cardiovascular em populações indígenas, no Portal Scielo
De fato, esse aspecto está intimamente ligado à proximidade de populações indígenas e não indígenas. Em regiões em que a população indígena tem um relacionamento mais próximo com a população regional, tem se notado o aparecimento de novos problemas de saúde relacionados às mudanças introduzidas no seu modo de vida e na alimentação. Assim, hipertensão arterial, diabetes, câncer, alcoolismo, depressão e suicídio são problemas cada vez mais frequentes em diversas comunidades.
O médico cardiologista e epidemiologista, Anderson da Costa Armstrong apresenta características da população indígena e seu impacto na dinâmica da Covid-19.
O contexto em que estão inseridas as mulheres indígenas
Já é conhecido o contexto de conflitos étnicos, raciais e territoriais em que costumam estar inseridos os povos indígenas brasileiros. Nesse meio, as mulheres indígenas possuem papel singular, não apenas por terem um papel fundamental na formação das novas gerações em seu papel maternal repleto de coletividade, tal qual núcleos da formação e replicação da cultura indígena. De fato, as mulheres indígenas também costumam assumir papéis de destaque em suas comunidades, como líderes espirituais. No entanto, estão frequentemente sujeitas a situações de violência, o que as atinge no âmbito físico, cultural e espiritual.
Nos atendimentos de saúde a comunidades indígenas do Nordeste do Brasil, não é incomum ouvir relatos das mulheres indígenas sobre violência doméstica, abusos sexuais e discriminação racial, por exemplo. Tais relatos invariavelmente se associam com graves repercussões físicas e mentais sobre suas vítimas, permeando seus modos de vida e suas relações sociais.
Tais circunstâncias possuem potencial deletério ampliado no contexto da pandemia Covid-19, considerando o impacto psicossocial evidente que esta crise sanitária vem apresentando globalmente. Os impactos particulares da pandemia do novo coronavírus nas comunidades indígenas brasileiras ainda não é totalmente conhecido, mas espera-se que – ao se colocar já em um contexto socialmente desfavorável – desempenhe papel potencializado contra as mulheres indígenas.
Portanto, para que se possa avançar nos aspectos relativos à saúde da mulher indígena no contexto da pandemia Covid-19, é importante contextualizar o cenário em que essas mulheres se inserem. Nesse aspecto, a compreensão sobre as formas de violência particulares a esse grupo populacional e a regulamentação internacional contra este aspecto são pontos de grande importância.
A Organização dos Estados Americanos, em 1994, emitiu documento resultante da CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, conhecida como “ CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ ”. Tal documento, em seu Capítulo I, traz dois artigos que definem a violência contra a mulher indígena dos seus aspectos domésticos às ações ou omissões do Estado:
Artigo 1- Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Artigo 2- Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:
a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Mais recentemente, em 2017, a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, em seu Relatório “ As Mulheres Indígenas e seus Direitos Humanos nas Américas ”, descreveu as condições de maior vulnerabilidade para violência contra as mulheres indígenas em situações específicas relacionadas a contexto de conflitos armados; execução de projetos de desenvolvimento, investimento e extração; militarização de seus territórios; privação de liberdade; violência doméstica; ataques contra defensoras de direitos humanos; meio urbano e no contexto de migração e deslocamento; violência obstétrica; e violência espiritual.
Enfim, a violência contra a mulher indígena é motivo de preocupação por estender-se a múltiplos pontos de sua vida cotidiana domiciliar até suas relações com o Estado. A sombra das diversas formas de violência contra a mulher gera um estado de vigilância constante, que afeta aspectos psíquicos, físicos e sociais do indivíduo e da coletividade indígena.
Veja o documentário Mulheres Indígenas: Vozes por Direitos e Justiça . Lançado pela ONU Brasil em março de 2018, em Brasília (DF). O vídeo recupera alguns momentos do diálogo entre as mulheres indígenas e as Nações Unidas em torno de sua articulação pelos direitos humanos e em defesa de seus povos e territórios, no Brasil e no exterior.
O processo individual e coletivo de autocuidado em saúde
Existem particularidades importantes na lida com aspectos de saúde em mulheres indígenas. O processo da autoatenção à saúde vai impactar na forma da mulher tentar compreender os processos fisiológicos e patológicos pelos quais passa desde sua alimentação regular, passando por fenômenos fisiológicos próprios como menstruação e gravidez, até o enfrentamento de doenças pelas quais venha a passar. As práticas relativas ao processo de saúde-doença e sua prevenção, no contexto do autocuidado, será próprio a cada povo e sua cultura, sendo uma construção social e ontológica. Os cuidados em saúde nas comunidades indígenas estão, quase sempre, inseridos em uma visão polimórfica que envolve saberes tradicionais, a ótica biomédica e aspectos religiosos. Portanto, deve o profissional de saúde estar atento às particularidades do grupo social em que se insere para prestar cuidados adequados às mulheres, estando apto a reconhecer o autocuidado em saúde próprio a cada grupo.
Os cuidados de saúde costumam estar inseridos em um contexto de coletividade e tradição. O povo Munduruku, por exemplo, habita estados do Mato Grosso, Pará e Amazonas, atingindo cerca de 10 mil pessoas. A investigação antropológica do processo de autoatenção às mulheres Munduruku do Amazonas mostrou que se dá de forma coletiva, de cuidado mútuo, com implicações no desenvolvimento da mulher e de como ela se insere no cosmos. Alguns rituais observados por ocasião da menarca incluíram isolamento, “defumações” e “banhos com plantas cheirosas”. Nessa cultura, a pessoa e seu corpo são vistos como produto de ação coletiva, com intervenção contínua de pessoas mais velhas na manutenção da saúde. No período de gestação, pais e mães cumprem conjuntamente restrições alimentares que evitem problemas ao desenvolvimento do feto.
Quer saber mais sobre o assunto?
Leia o artigo sobre promoção da saúde da mulher indígena, no Portal Scielo
Dessa forma, as recomendações de autocuidado contra a pandemia Covid-19 devem ser contextualizadas em consonância com a perspectiva de autoatenção que as mulheres indígenas já disponham em cada grupo social distinto. Tentar conciliar as recomendações de higiene do modelo biomédico aos conceitos já praticados na comunidade podem melhorar a adesão a medidas de reconhecido impacto, mantendo a harmonia com o grupo em que se atua.
Esse assunto vale uma reflexão
Leia o texto Saúde e relações de gênero: uma reflexão sobre os desafios para a implantação de políticas públicas de atenção à saúde da mulher indígena, no Portal Scielo .
Princípios para elaboração de políticas de saúde voltadas à mulher indígena
Há contrastes entre os discursos das políticas públicas de atenção à saúde da mulher indígena e o discurso etnológico que enfatiza a especificidade das relações de gênero em sociedades indígenas. Historicamente, políticas públicas de saúde voltadas à mulher indígena não dialogam propriamente com as especificidades próprias a esse grupo.
A despeito dos contrastes, esses aspectos estão intrinsecamente ligados já que o desenvolvimento dessas políticas públicas e a consequente organização dos serviços de atenção à saúde têm um efeito transformador sobre as relações de gênero vigentes nas sociedades ameríndias. Portanto, fazem-se necessários princípios claros que estabeleçam uma relação positiva e balanceada entre as políticas de saúde e as tradições indígenas.
A Comissão Interamericana dos Direitos Humanos em seu Relatório “As Mulheres Indígenas e seus Direitos Humanos nas Américas” (2017), descreve os princípios a serem adotados nas ações dos Estados latino-americanos, a fim de garantir o acesso das mulheres indígenas aos seus direitos humanos.
Esse conjunto de conceitos parece adequado como princípios fundamentais a serem considerados na elaboração de políticas de saúde voltadas às mulheres indígenas:
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Enfoque holístico - as leis e políticas que afetam as mulheres indígenas devem abordar as múltiplas e interconectadas formas de discriminação que elas enfrentam;
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Agentes empoderadas – as mulheres indígenas devem ser tratadas como sujeitos de direito e não simplesmente vítimas;
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Interseccionalidade – a superposição de várias camadas de discriminação — exemplo: sexo, gênero, raça, origem étnica, religiosidade, saúde, idade, classe — resulta em uma forma de discriminação potencializada;
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Autodeterminação - respeitar o direito dos povos indígenas aos seus territórios e recursos naturais, e à vida livre de racismo;
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Incorporação de suas perspectivas - incorporar a cosmovisão e as ideias das mulheres indígenas em todas as políticas que as afetam;
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Participação Ativa - proporcionar espaço às mulheres indígenas de participar em todos os projetos que as afetem;
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Indivisibilidade – manter a conexão entre a proteção dos direitos civis e políticos das mulheres indígenas e seus direitos econômicos, sociais e culturais;
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Dimensão coletiva - os direitos das mulheres indígenas devem ser contextualizados em suas dimensões inseparáveis individual e coletiva.
Portanto, a mulher indígena deve ser vista pelo gestor de saúde na sua integralidade individual, porém respeitando o caráter coletivo intrinsecamente relacionado ao seu modo de vida. O estilo de vida indígena coletivo, com vários momentos de aglomeração social ao longo da rotina e com o compartilhamento regular de utensílios entre as pessoas pode favorecer a disseminação viral, em especial no contexto pandêmico da Covid-19. Para que tais condições possam ser mitigadas, faz-se necessário o envolvimento coletivo da comunidade em que as mulheres indígenas se encontram inseridas, garantindo o respeito ao papel social que cada uma desempenha na sua coletividade.
O papel de destaque social da mulher indígena deve garantir seu protagonismo na elaboração e implementação de políticas públicas epidemiológicas que visem a conter o avanço da pandemia Covid-19, bem como as ações de atenção à saúde das pessoas que porventura contraiam o vírus.
De fato, o destaque das mulheres indígenas em seu convívio social tem resultado em várias entidades voltadas à luta dessas mulheres. O protagonismo que a elas se atribui impulsionou que mulheres indígenas em todo o país criassem suas próprias estruturas organizacionais no movimento indígena. Em fevereiro de 2020, o Instituto Socioambiental mapeou 85 organizações de mulheres indígenas e sete organizações indígenas que possuem departamentos de mulheres, totalizando 92 organizações, presentes em 21 estados do país (mapa)
A Saúde da mulher indígena antes da pandemia Covid-19
Há poucos estudos voltados à identificação epidemiológica das diversas doenças que acometem as mulheres indígenas no Brasil. De fato, existem no Brasil cerca de 408.056 mulheres indígenas, sendo essa população aparenta ser mais vulnerável que a população geral aos agravos como o câncer do colo do útero.
As mulheres indígenas, de maneira geral, constituem um grupo bastante suscetível ao desenvolvimento de doenças e carências nutricionais, em função de alterações fisiológicas e hormonais ocorridas ao longo da vida.
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Leia o artigo sobre a saúde reprodutivas e as mulheres indígenas do Alto Rio Negro, no Portal Scielo
Nesse sentido, Orellana e colaboradores (2011) realizaram um estudo transversal com o objetivo de investigar a prevalência e os fatores associados à ocorrência de anemia em mulheres indígenas Suruí. A população investigada compreendeu 182 mulheres não-gestantes e 14 gestantes (196/225), representando 87,1% do total de mulheres Suruí, com idade entre 15 e 49 anos, das nove aldeias. Os resultados apontaram que a prevalência global de anemia nas não-gestantes foi de 67,3% e nas gestantes de 81,8%. A análise multivariada demonstrou que as mulheres com um ou dois filhos anêmicos com idade entre 6 e 35 meses tiveram três vezes mais chances de serem anêmicas. De modo importante, mulheres do estrato socioeconômico mais baixo apresentaram 3,5 vezes mais chance de serem anêmicas. Assim, ficam claros que fatores internos às comunidades também determinam uma maior vulnerabilidade de estratos socioeconômicos menos favorecidos, dentro de um mesmo grupo indígena. O estudo está disponível no Portal Scielo - acesse aqui .
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Leia o artigo o perfil dos exames citopatológicos realizados na população indígena brasileira em comparação a não indígenas na Revista Brasileira de Cancerologia
Os dados epidemiológicos disponíveis para avaliação dos problemas de saúde de mulheres ainda são incipientes. Entretanto, há certa clareza de que a atenção à saúde da mulher dos povos indígenas ainda é precária, não se conseguindo garantir ações como a assistência pré-natal, de prevenção do câncer de colo de útero, de prevenção de IST/HIV/AIDS, prevenção da desnutrição em crianças, doenças respiratórias, dentre outras.
Desse modo, parece claro que as mulheres indígenas já se apresentavam com perfil epidemiológico desfavorável antes mesmo da chegada da pandemia Covid-19. A associação deletéria entre urbanização, estilo de vida em transformação, pouco desenvolvimento de educação em saúde, baixo acesso às políticas de saúde e constante estado de vigilância contra potenciais violências geram um potencial agravamento da prevalência de comorbidades já rotineiramente associadas à maior gravidade na fase inflamatória da Covid-19, em particular aos quadros de SRAG.
Peculiaridades da Covid-19 nas mulheres
A pandemia Covid-19 tem sido extremamente impactante em vários aspectos da sociedade mundial. Naturalmente, há a ação direta da doença gerando elevada morbimortaildade nos pacientes acometidos. Sobrepondo-se a isso, surgem inúmeros elementos sociais e econômicos relevantes, alguns que atingem especificamente a população feminina e mais severamente os grupos de maior vulnerabilidade, como as mulheres indígenas.
Ação direta da COVID na população feminina
Os primeiros relatos de parâmetros de maior gravidade da Covid-19 já demonstraram que os homens internados por SRAG possuíam maior risco de morte quando comparados às mulheres na mesma condição. De fato, após mais de um ano de experiência com a Covid-19, ainda hoje observamos maior risco de morte para homens internados por SRAG em relação às mulheres. Porém há situações próprias à população feminina de grande relevância.
A gravidez é uma situação própria à mulher de reconhecida vulnerabilidade. Ademais, o racional passa a ser focado no binômio materno-fetal, em que o bem estar da mulher e da criança devem ser assegurados. A apresentação da Covid-19 durante a gravidez ainda está em processo de compreensão por parte da comunidade médica, mas já é consenso que implica em cuidados redobrados, uma vez que o binômio materno-fetal precisa ser considerado.
"Muitas mulheres grávidas terão quadros gripais leves relacionados à Covid-19, sem interferência no curso da gestação e sem evidências relacionadas a complicações detectáveis à criança, pelo menos nos seus primeiros meses de vida.
Em minha experiência, mulheres grávidas que apresentam quadros graves de SRAG na Covid-19 possuem elevada morbidade, porque costumam afetar significativamente o curso natural da gestação.
Em alguns casos, tem sido necessário interromper precocemente a gestação, levando a significativas consequências deletérias às crianças, próprias à prematuridade extrema. Em geral, é necessário monitorar as mulheres grávidas antes e depois do parto, bem como seus bebês, durante esta pandemia."
Revisão de dados da literatura científica mostra que as mulheres grávidas ao contraírem Covid-19 geralmente apresentam-se assintomáticas ou desenvolvem sintomas leves a moderados, o que se mostra semelhante ao quadro descrito para mulheres não grávidas. A pneumonia é um dos desfechos mais comuns em mulheres grávidas com Covid-19. No entanto, não é ainda possível afirmar de forma conclusiva que a infecção por SARS-CoV-2 aumenta o risco de complicações maternas, fetais e neonatais. Similar ao que se sabe para a população geral, mulheres grávidas com Covid-19 que tenham comorbidades têm risco aumentado de complicações graves. De forma importante, o terceiro trimestre de gestação parece ser o período em que a mulher é mais vulnerável. Embora incomum, tudo indica que a transmissão vertical é possível. Assim, a mãe infectada pode transmitir a Covid-19 ao recém nascido, embora estes não costumem apresentar complicações graves.
Consequências indiretas da COVID na população feminina
No período da pandemia Covid-19, houve consequências sociais importantes para a população geral e, em particular, as mulheres. De modo geral, o isolamento social foi disruptivo para os laços que unem as sociedades humanas. Em especial nas comunidades indígenas, em que a coletividade assume um papel ainda mais preponderante e que conta com as mulheres com papel de protagonismo.
Os relatos no Brasil dão conta de um aumento grande de tensão e agressão no núcleo familiar, compreendendo aumento nas taxas de divórcio e aumento significativo nos casos de violência doméstica. As mulheres têm sido uma vítima contumaz nesses casos de violência domiciliar, o que também inclui as mulheres indígenas. O papel potencializador de aspectos étnicos, culturais e tensões sociais de preconceito já foram abordados previamente nesse curso.
Portanto, não causa surpresa que haja um aumento de problemas relacionados à saúde mental durante a pandemia Covid-19 e que as mulheres sejam um grupo especialmente vulnerável nessa seara. Investigações mostram que mulheres grávidas, no pós-parto, com aborto espontâneo ou sofrendo de violência pelo parceiro íntimo correm um risco especialmente alto de desenvolver problemas de saúde mental durante a pandemia. O alcance proativo a esses grupos de mulheres e o aprimoramento dos apoios sociais podem levar à prevenção, detecção precoce e tratamento imediato.
Importante ressaltar o papel da maternidade durante a pandemia Covid-19, o qual tem se mostrado com aspectos adicionais que geram estresse e ansiedade. As crianças afastadas de suas atividades escolares regulares e do convívio social com familiares e amigos trazem desafios adicionais às mães nesse período. Considerando o aspecto coletivo que a criação dos filhos costuma ter nas comunidades indígenas, a redução no apoio social, um fator de proteção fundamental, potencializa os efeitos deletérios relacionados ao papel da mãe nos cuidados infantis.
Chegamos ao fim da aula!
Nessa aula, você compreendeu a epidemiologia dos indígenas no contexto da Covid-19 e o contexto que nós, mulheres indígenas, estamos inseridas, como era a nossa saúde antes e depois da pandemia de Covid-19. Conheceu, também, os princípios para elaboração de políticas voltadas à mulher indígena. Ah! Antes de seguirmos para a próxima aula, eu quero agradecer ao professor Carlos Dornels Freire de Souza do Departamento de Medicina- Universidade Federal de Alagoas, que ajudou o doutor Anderson na coleta de dados epidemiológicos para essa aula!