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Mpox: Vigilância, Informação e Educação em Saúde

MÓDULO 3 | AULA 3 Educação popular em saúde e o planejamento de atividades educativas

Tópico 1

Educação popular: histórico e principais referências

Como crítica importante às práticas tradicionais e normativas de educação em saúde, desde os anos 1970, trabalhadores da saúde, docentes e estudantes têm apostado em experiências de educação em saúde mais próximas da realidade de vida dos usuários, orientadas pelo referencial da educação popular.

A educação popular é uma concepção de educação formulada na segunda metade do século XX na América Latina. O educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) é a maior referência teórico-prática dessa concepção de educação, que possui terminologias sinônimas, tais como:

  • Pedagogia freireana.
  • Pedagogia da problematização.
  • Educação libertadora.
Saiba Mais
Fonte: Instituto Paulo Freire (2025).

Paulo Freire (1921-1997) nasceu em Recife, capital pernambucana. Educador rigoroso, mediou a condução de processos educativos comprometidos com a compreensão da realidade de vida dos educandos. Teve, na experiência de alfabetização de adultos não escolarizados, a possibilidade de aproximar a educação de um processo de conscientização, transformando a leitura e a escrita em experiências de leitura do mundo e libertação dos oprimidos. Para Freire (1987), os oprimidos são todos aqueles que vivenciam de diversas formas a violenta vocação de “ser menos”, como distorção do ser mais.

No livro Pedagogia do Oprimido — considerada a principal obra de Paulo Freire e a terceira obra mais citada em trabalhos das ciências humanas pelo mundo —, o educador afirma a importância de transcender o ato educativo para um processo de compreensão da realidade e não somente de aprendizagem sobre como ler as palavras.

[...] ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente é reflexão, conduz à prática.

(Freire, 1987, p. 31)

Pensar a relação entre teoria ("o que se sabe") e a prática ("o que se faz") é fundamental para que possamos superar a noção do ato educativo como um lugar de repasse de informações para que as pessoas mudem seus comportamentos. O ato educativo passa a ser, portanto, um processo de ampliação da compreensão sobre a realidade, que permite às pessoas estabelecerem relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo.

A educação popular compreende esse processo como “conscientização", que seria a transição de uma consciência ingênua, ou o fato de simplesmente compreender que há um problema de saúde, para a consciência reflexiva, o que implica reconhecer o problema, suas determinações e nossas possibilidades de agir. Essa noção pode nos ajudar a problematizar, por exemplo, as razões que fazem com que muitos usuários, mesmo aqueles que já possuem informações sobre as doenças ou as melhores estratégias de tratamento, precisem de tempo, reflexões e diálogos antes de mudar comportamentos.

Isso significa admitir como parte do trabalho em saúde o compromisso com a reflexão sobre a realidade de vida de cada usuário e da população. Para tal compromisso, é essencial ampliar a capacidade de escuta dos trabalhadores da saúde.

Estudioso e amigo de Paulo Freire nas lutas pela educação como prática da liberdade, o educador Carlos Brandão destaca alguns marcos das origens da educação popular no Brasil. Aqui destacamos dois deles:

Destaque 1

A partir dos anos 1920, com os movimentos dirigidos à democratização do ensino e a ruptura de uma educação vinculada ao catolicismo (Brandão, 2014).

Destaque 2

A experiência de cultura popular nos anos 1960. Esse movimento teve Paulo Freire como uma das principais lideranças. A principal bandeira era: a ideia de um país que valorizasse sua cultura nacional, contrapondo-se à cultura colonialista, representada sobretudo pelos Estados Unidos.

Educação popular em saúde

Fundamentados pelas análises e experiências da educação popular e agregando a crítica de que os processos de adoecimento e saúde não dizem respeito a atitudes e possibilidades pessoais, a concepção de educação popular em saúde passa a se constituir no Brasil a partir dos anos 1960. Adoecer, ou ter condições de manter-se saudável, em um país desigual como o Brasil é um processo de engajamento para compreensão dos efeitos e superação das desigualdades sociais.

Tendo como referência a compreensão de Paulo Freire e de Carlos Brandão mencionadas anteriormente, o educador Eymard Mourão Vasconcelos afirma que a educação popular em saúde é um modo de participação de agentes considerados "eruditos" com o povo, tais como professores, padres, cientistas sociais, profissionais de saúde, dado que, muitas vezes, esses agentes desconhecem o modo de viver e cuidar das classes populares. Assim, o compromisso com essas classes é parte das lutas por direitos e pelo direito à saúde no Brasil.

O contexto do golpe militar de 1964, marcado pelo apoio do empresariado e de grandes proprietários rurais, criou, contraditoriamente, condições para a emergência de protestos, organizações e movimentos sociais, festivais e uma série de experiências de educação popular e, por consequência de educação popular em saúde, muitos deles apoiados pela Igreja Católica, movimentos populares, sindicatos e intelectuais. Esse período também tem como marco histórico a formulação das bases da Reforma Sanitária Brasileira. O movimento popular mais conhecido desse período é o Movimento Popular de Saúde (MOPS).

A educação popular em saúde busca trabalhar, pedagogicamente, o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fortalecendo as formas coletivas de aprendizado sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta. Assim, as experiências iniciais de educação popular em saúde ajudaram a criar uma mudança com o tradicional modo "prescritivo" dos profissionais de saúde (Vasconcelos, 2004).

A seguir você poderá compreender melhor o histórico da formulação da educação popular em saúde no Brasil. A linha contempla apenas alguns dos marcos dessa construção histórica.

Anos 1960

Anos 1960

Primeiras iniciativas como os movimentos populares de cultura, de educação de base. Alguns profissionais e estudantes de saúde engajados aproximam-se da cultura popular.

1964

Pós-golpe 1964

O movimento sanitário toma forma, com articulações acadêmicas (departamentos de medicina preventiva de universidades brasileiras, do movimento estudantil (médicos residentes), do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) com formulação das bases da Reforma Sanitária Brasileira

1975 - 1988

1975-1988

O período de 1976-1988 é caracterizado pela crise do desenvolvimento capitalista em países dependentes como o Brasil, esvaziamento das bases sociais da ditadura militar, transição e redemocratização política com intensificação da luta popular.

Esses movimentos desempenharam papel importante na conformação dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Profissionais de saúde passam a se engajar em experiências de atenção à saúde inseridas no meio popular, o que fomenta o início da medicina comunitária. Nesse período realizam-se os I, II e III Encontro Nacional de Experiências de Medicina Comunitária (ENEMEC), ocorridos na virada dos anos de 1970 para 1980. Em 1981, o ENEMEC transforma-se em Movimento Popular de Saúde (MOPS).

1990

Anos 1990

Emerge o movimento social denominado Educação Popular e Saúde (EP&S). Foram marcos desse período:

  • 1991 - criação da Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde (ANEPS), no I Encontro Nacional de Educação Popular em Saúde.
  • 1998 - a Articulação passa a denominar-se Rede de Educação Popular e Saúde.

2003 - 2016

2003-2016

Com a abertura do governo Lula, principalmente no Ministério da Saúde, à participação dos movimentos sociais foi possível construir uma proposta de atuação comum.

É criada uma secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SEGTES), que abrigava o Departamento de Gestão em Educação e Saúde (DEGES) em suas três dimensões que envolvem o Ministério da Saúde: educação popular, educação técnica e educação superior. No caso da educação popular, há destaque importante para as ações vinculadas à Coordenação Geral de Ações Populares de Educação na Saúde no ano de 2008, com importante papel da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP/MS), que recebeu a reivindicação por parte dos movimentos e coletivos nacionais de EPS de fortalecimento. Essa Secretaria nomeou um grupo de trabalho permanente, que teve como objetivo principal a formulação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEP-SUS), aprovada em maio de 2013.

2016 - 2022

2016-2022

Embora a institucionalização da EPS seja um marco importante para mudanças na formação dos profissionais e nas práticas nos serviços de saúde, os anos que sucederem a institucionalização da política, especialmente entre 2016 e 2022, foram de intensificação do modelo biomédico e das desigualdades sociais, ampliando a necessidade de luta e resistência pelos movimentos sociais.

Princípios da educação popular em saúde

Como você já viu, alguns fundamentos de crítica são parte da formulação da educação popular em saúde, especialmente:

  • Critica o modelo biomédico, com ênfase biologicista, pois reconhece as demais dimensões sociais e ambientais que determinam o adoecimento.
  • Contrapõe-se ao método tradicional de educar e culpabilizar os indivíduos pelo adoecimento.
  • Reconhece as evidências e saberes científicos, porém evita a lógica da imposição de conhecimentos técnicos sobre as doenças.
  • Produz intercâmbio entre os saberes científicos e os saberes populares.

Ao criticar esses pontos, a educação popular em saúde propõe:

  • Para a educação popular em saúde, o ponto de partida do processo pedagógico é o saber anterior do educando, suas experiências e compreensão sobre os problemas e, por isso, o diálogo é fundamental. O diálogo compreendido aqui como expressão da construção compartilhada do conhecimento.
  • Valorizar os saberes dos educandos permite a criação e a ampliação de vínculos entre as pessoas. Vínculo é, inclusive, premissa e objetivo do cuidado em saúde e é também um modo de organizar serviços de saúde, como na Atenção Primária.

Alguns pressupostos do trabalho na Atenção Primária à Saúde, por exemplo dois que destacamos a seguir, podem se beneficiar da educação popular em saúde:

Pressuposto 1

O trabalho em saúde é interdisciplinar e deve ser desenvolvido por equipes multiprofissionais, que vão além da composição mais tradicional estabelecida entre medicina e enfermagem, pois o diálogo de profissionais de diferentes áreas de atuação e saberes permite entender a realidade como uma síntese desse conhecimento.

Pressuposto 2

O território é espaço de produção da vida e, portanto, da saúde. O território é espaço geográfico, histórico, cultural, social e econômico, construído coletivamente e de forma dinâmica por uma série de sujeitos e instituições.

Essa associação é fundante da própria educação popular em saúde, uma vez que parte da formulação e das experiências da Atenção Primária brasileira, que foram constituídas antes mesmo da criação do SUS. Podemos citar como exemplo o trabalho dos agentes de saúde e das pastorais da saúde e da criança, grupos vinculados à Igreja Católica, que contribuíram, posteriormente, em 1991, para a institucionalização do Programa de Agentes Comunitários de Saúde.