A (in)justiça baseada em dados: discriminação, vigilância e perda de autonomia
Como já vimos anteriormente, o novo horizonte da Ciência Aberta é a abertura de dados para pesquisa. O recente campo de estudos da “justiça de dados” (data justice) pretende pesquisar e refletir, a partir da ideia de justiça social, como os indivíduos, comunidades e diferentes “sujeitos de dados” estão implicados no processamento de dados e como eles são percebidos na sociedade como resultado da datificação.
Datificação:
Se refere a transformação de nossas interações sociais em dados que são coletados e analisados sistematicamente por plataformas de mídia digital, governos, empresas, artefatos da “internet das coisas”, casas inteligentes, smart cities, etc.
Em outras palavras, se refere ao chamado big data e a exploração de toda sorte de registros - constância em serviços de saúde, comunicações em redes sociais, movimentos pela cidade, hábitos de consumo, transações financeiras, redes de contato e amizades, preferências políticas, entre outros - como fonte de sucesso econômico, controle político, respostas para questões comerciais ou sociais, etc.
A questão central é que a datificação engendra novas dinâmicas de poder pela reconfiguração da relação entre setores públicos e privados. Se anteriormente funções como contabilizar, categorizar e servir as necessidades dos cidadãos eram a vocação do Estado, agora elas passam a realizadas por empresas privadas que oferecem infra-estruturas, serviços e mão de obra qualificada para operacionalizar o processo.
O problema não é apenas a contratação de empresas privadas como fornecedores, mas a criação de novas assimetrias entre aqueles que observam (governos-empresas) e aqueles que são observados (cidadãos) na medida em que se estabelece um ambiente opaco e propício para discriminações estruturais. Isto porque as empresas privadas se tornam parte das instituições, influenciam seus regulamentos e práticas. Juntos, governos e empresas podem gerar um sistema interseccional que cruza múltiplas formas de discriminação a partir de categorias biológicas, sociais e culturais, tais como gênero, raça, classe, capacidade, orientação sexual, religião, idade, etc. Basta lembrar das revelações de Edward Snowden sobre o sistema de vigilância criado pela Agência de Segurança Nacional (National Security Agency - NSA em inglês) em cooperação com funcionários da Booz Allen Hamilton.
Mais além, Taylor (2017) destaca que a novidade atual é a impossibilidade de diferenciar a coleta e análise de dados voluntárias (informada e com consentimento) das involuntárias (através de devices e sensores). Essa nova dinâmica gera um mercado global no qual os dados pessoais são a mercadoria de um capitalismo informacional disputado justamente pelas empresas. As principais ameaças seriam:
- A discriminação de indivíduos ou grupos por formuladores de políticas, polícia e empresas a partir de seus dados pessoais;
- A possibilidade de ser alvo de vigilância de acordo com comportamentos e relacionamentos expressos em dados - algo que tende atingir especialmente pobres, imigrantes, grupos étnicos e culturais minoritários e ativistas;
- A concentração de poder em empresas, as dificuldades no que tange a transparência e prestação de contas, a tendência a amplificar assimetrias de poder.
Algumas questões, eminentemente políticas, a serem enfrentadas nesse “lugar incômodo” onde acontece fricções entre indivíduos e Estado, entre o público e o privado, entre a ciência e o público, com reverberações em temas como privacidade, responsabilidade e prestação de contas (accountability) são:
Como balancear e integrar a necessidade de ser visto e representado de maneira apropriada com as necessidade de autonomia e integridade?
(TAYLOR, 2017)
Quais são os bons princípios de governança para o uso do big data em um contexto democrático e quem deve determiná-los?
(TAYLOR, 2017)
Saiba mais:
Cidadão Quatro (2014)
“Em 2013, a diretora Laura Poitras recebeu um e-mail assinado com o pseudônimo “citizen four”. O contato foi o primeiro de uma série em que Edward Snowden, ex-analista de sistemas da Agência Nacional dos Estados Unidos (NSA), revelaria detalhes sobre o escândalo que comprovou atos de espionagem por parte do governo norte-americano. Vencedor do Oscar de melhor documentário, o longa retrata os primeiros encontros entre Laura, Snowden e o jornalista Glenn Greenwald, do jornal britânico The Guardian, responsável pela divulgação dos primeiros materiais.
Assista o filme on-line