Série 1 | Curso 2

Panorama Histórico da Ciência Aberta

Aula 6

Visões críticas da Ciência Aberta

Philip Mirowski

Fonte: Plurale Ökonomik Hamburg.

No artigo “O Futuro da Ciência Aberta”, o historiador e filósofo da economia Philip Mirowski (2018) faz críticas contumazes à proposta da Ciência Aberta, reconhecendo que ela não é um porvir, mas representa mudanças já em curso. O autor analisa os quatro principais argumentos contra o “antigo regime da ciência” e conclui que a Ciência Aberta, tal qual vem sendo implementada, não consertará aquilo que se julga problemático.

Segundo o autor, além da iminente frustração de expectativas, o que está em jogo é a quebra do monopólio histórico da produção de conhecimento a partir de um estranho discurso “sem cheiro de mercado”. Nesse sentido, Mirowski descreve a Ciência Aberta como a associação de um ethos de uma "ciência radicalmente colaborativa" às estruturas emergentes do "capitalismo de plataforma". Em suas palavras, "o movimento da Ciência Aberta é um artefato do atual regime neoliberal da ciência, que reconfigura ambas instituições e a natureza do conhecimento para melhor se adequar aos imperativos do mercado”. (2018, pg 172)

Saiba mais:
Capitalismo de Plataforma:

Cria novas formas de exploração e concentração de riqueza a partir de infraestruturas digitais desenhadas para conectar, através de aplicativos, uma massa de milhões de trabalhadores precários (invisíveis e sub-remunerados) a consumidores que demandam por esses serviços. Nessa perspectiva, empresas como Uber, Airbnb não desenvolvem apenas produtos tecnológicos, mas controlam a demanda, a oferta e o lucro de setores como transporte, hospedagem, alimentação, etc.

Cooperativismo de Plataforma:

Scholz (2016) o propõe como alternativa à financerização da vida comum, pois considera que as cooperativas são um importante instrumento para a construção de poder econômico por grupos marginalizados. No contexto de uma economia digital, as cooperativas seriam plataformas com sistema de governança democrática, baseadas em valores como a solidariedade, de propriedade coletiva (das pessoas que produzem seu valor) e que objetivam o benefício de todos, e não sugam lucros para poucos acionistas.

Problematizando as expectativas da Ciência Aberta

Sobre os quatro problemas que a Ciência Aberta resolveria, Mirowski (2018) contra-argumenta:

O avanço do capitalismo de plataforma sobre a produção do conhecimento

Refutados os principais argumentos favoráveis à Ciência Aberta, Mirowisky (2018) faz perguntas incômodas para questionar os interesses subjacentes às propostas, como:

Quem precisamente pretende arrombar (crack) a ciência para abrí-la?

Mirowisky (2018)

De onde vem o financiamento para tornar uma opinião vaga e mal especificada em um movimento?

Mirowisky (2018)

Logos das editoras acadêmicas: Elsevier, Taylor & Francis e Wiley.

Para o autor, a Ciência Aberta, tal qual vem sendo conduzida, representa o avanço neoliberal sobre o campo da produção do conhecimento científico. Este diagnóstico é corroborado pelas pesquisas de Pozada e Chen (2018) sobre as recentes aquisições de três das cinco principais editoras acadêmicas do mundo (Elsevier; Wiley; Taylor and Francis), cujos resultados apontam que elas expandiram seu campo de atuação se reposicionando como “provedores de soluções” ou “analistas de informação” de modo a atuar em todo o ciclo de pesquisa, para além do papel tradicional de editores de periódicos científicos.

Para tal, as antigas editoras estão investindo na acumulação desproporcional de conteúdos científicos e na aquisição de outros serviços, realizando uma “integração vertical” que garanta o seu monopólio sobre bens intelectuais assim como gerar novas fontes de lucro. As figuras abaixo ilustram o ciclo de vida da produção do conhecimento em etapas como pesquisa, publicação e avaliação (figura 1) e a presença da Elsevier, através de seus produtos e serviços (figura 2).

Figura 1 - O processo de produção do conhecimento acadêmico

Fonte: A partir de POSADA, CHEN (2018, p.6).

Figura 2 - A presença da Elsevier ao longo do processo. As marcas aqui destacadas são de produtos adquiridos pela Elsevier.

Fonte: A partir de POSADA, CHEN (2018, p.6).

Se, por um lado, a integração de conteúdos e serviços acadêmicos pode gerar benefícios práticos para o desenvolvimento de pesquisa, os riscos associados à construção de monopólios são assustadores uma vez que essas empresas se tornam ponto de passagem obrigatório para a produção de conhecimento científico. A “integração vertical” de conteúdos e infraestruturas incorpora todo o fluxo de trabalho da pesquisa científica nos produtos, serviços e estratégias de cinco mega corporações.

As principais consequências são:

  • O aumento da dependência de consumidores (universidades, professores e pesquisadores) em relação às linhas de produtos dos “provedores de soluções”;
  • O aumento da influência e o controle das editoras no nível individual e institucional;
  • O fortalecimento do poder de monopólio (pela garantia da demanda contínua);
  • O agravamento de desigualdades no fazer científico fora desses esquemas;
  • O aumento da vulnerabilidade de pesquisadores e instituições, especialmente aquelas em países em desenvolvimento; ameaça à diversidade na produção de conteúdo;
  • Implicações diretas na capacidade dos pesquisadores de encontrar empregos, ou acesso a financiamento e colaborar com outros pesquisadores; a exacerbação de uma estratégia rentista etc.
Saiba mais:

Na contramão do capitalismo de plataforma e da integração vertical, o Humanities Commons é uma plataforma de Acesso Aberto, de código aberto e sem fins lucrativos, criada por sociedades acadêmicas para atender às necessidades de estudantes e pesquisadores do campo das Humanidades. Seu objetivo é ser um espaço para discutir, compartilhar e armazenar pesquisa e pedagogias inovadoras. É a principal alternativa a produtos como o Academia.edu e o Research Gate.

A (in)justiça baseada em dados: discriminação, vigilância e perda de autonomia

Como já vimos anteriormente, o novo horizonte da Ciência Aberta é a abertura de dados para pesquisa. O recente campo de estudos da “justiça de dados” (data justice) pretende pesquisar e refletir, a partir da ideia de justiça social, como os indivíduos, comunidades e diferentes “sujeitos de dados” estão implicados no processamento de dados e como eles são percebidos na sociedade como resultado da datificação.

Datificação:

Se refere a transformação de nossas interações sociais em dados que são coletados e analisados sistematicamente por plataformas de mídia digital, governos, empresas, artefatos da “internet das coisas”, casas inteligentes, smart cities, etc.

Em outras palavras, se refere ao chamado big data e a exploração de toda sorte de registros - constância em serviços de saúde, comunicações em redes sociais, movimentos pela cidade, hábitos de consumo, transações financeiras, redes de contato e amizades, preferências políticas, entre outros - como fonte de sucesso econômico, controle político, respostas para questões comerciais ou sociais, etc.

A questão central é que a datificação engendra novas dinâmicas de poder pela reconfiguração da relação entre setores públicos e privados. Se anteriormente funções como contabilizar, categorizar e servir as necessidades dos cidadãos eram a vocação do Estado, agora elas passam a realizadas por empresas privadas que oferecem infra-estruturas, serviços e mão de obra qualificada para operacionalizar o processo.

O problema não é apenas a contratação de empresas privadas como fornecedores, mas a criação de novas assimetrias entre aqueles que observam (governos-empresas) e aqueles que são observados (cidadãos) na medida em que se estabelece um ambiente opaco e propício para discriminações estruturais. Isto porque as empresas privadas se tornam parte das instituições, influenciam seus regulamentos e práticas. Juntos, governos e empresas podem gerar um sistema interseccional que cruza múltiplas formas de discriminação a partir de categorias biológicas, sociais e culturais, tais como gênero, raça, classe, capacidade, orientação sexual, religião, idade, etc. Basta lembrar das revelações de Edward Snowden sobre o sistema de vigilância criado pela Agência de Segurança Nacional (National Security Agency - NSA em inglês) em cooperação com funcionários da Booz Allen Hamilton.

Mais além, Taylor (2017) destaca que a novidade atual é a impossibilidade de diferenciar a coleta e análise de dados voluntárias (informada e com consentimento) das involuntárias (através de devices e sensores). Essa nova dinâmica gera um mercado global no qual os dados pessoais são a mercadoria de um capitalismo informacional disputado justamente pelas empresas. As principais ameaças seriam:

  • A discriminação de indivíduos ou grupos por formuladores de políticas, polícia e empresas a partir de seus dados pessoais;
  • A possibilidade de ser alvo de vigilância de acordo com comportamentos e relacionamentos expressos em dados - algo que tende atingir especialmente pobres, imigrantes, grupos étnicos e culturais minoritários e ativistas;
  • A concentração de poder em empresas, as dificuldades no que tange a transparência e prestação de contas, a tendência a amplificar assimetrias de poder.

Algumas questões, eminentemente políticas, a serem enfrentadas nesse “lugar incômodo” onde acontece fricções entre indivíduos e Estado, entre o público e o privado, entre a ciência e o público, com reverberações em temas como privacidade, responsabilidade e prestação de contas (accountability) são:

Como balancear e integrar a necessidade de ser visto e representado de maneira apropriada com as necessidade de autonomia e integridade?

(TAYLOR, 2017)

Quais são os bons princípios de governança para o uso do big data em um contexto democrático e quem deve determiná-los?

(TAYLOR, 2017)

Saiba mais:
Cidadão Quatro (2014)

“Em 2013, a diretora Laura Poitras recebeu um e-mail assinado com o pseudônimo “citizen four”. O contato foi o primeiro de uma série em que Edward Snowden, ex-analista de sistemas da Agência Nacional dos Estados Unidos (NSA), revelaria detalhes sobre o escândalo que comprovou atos de espionagem por parte do governo norte-americano. Vencedor do Oscar de melhor documentário, o longa retrata os primeiros encontros entre Laura, Snowden e o jornalista Glenn Greenwald, do jornal britânico The Guardian, responsável pela divulgação dos primeiros materiais.

Assista o filme on-line

O epistemicídio

Tema ausente nos debates atuais sobre a Ciência Aberta, o epistemicídio é um termo popularizado nas obras de Boaventura de Souza Santos e se refere às tentativas de extermínio de determinados sistemas de conhecimento. Para o autor, haveria um “pensamento abissal” que separa aqueles que detém o conhecimento (e o poder) daqueles que devem ser extintos, inferiorizados ou invisibilizados. Enquanto os pesquisadores profissionais são legítimos produtores de conhecimento válido, os leigos os camponeses, os indígenas, as mulheres, as pessoas com deficiência, a população LGBTQI+, entre tantas outras “minorias” são vinculadas ao plano das crenças e das opiniões subjetivas que, na melhor das hipóteses podem ser objetos de pesquisa, mas não sujeitos de conhecimento.

O pensamento abissal consiste em conceder à Ciência Moderna o monopólio da distinção universal entre verdadeiro e falso em detrimento de corpos alternativos de conhecimento

(SOUZA SANTOS, 2007, p. 47).

Por isso, em uma perspectiva histórica, o epistemicídio remete à destruição de conhecimentos, saberes e culturas tradicionais pela cultura europeia nas experiências coloniais e o papel estratégico da Ciência Moderna em dominar a Natureza e estabelecer os meios para a exploração e apropriação dos recursos da América, África e Ásia.

Na atualidade, o epistemicídio é ainda uma forte tradição das instituições de educação superior e sua recorrente exclusão de diversos outros sistemas de conhecimento a partir de categorias como raça, gênero, classe e sexualidade. No contexto da Ciência Aberta, essa perspectiva colonial tende a ser agravada pelo produtivismo acadêmico que valoriza como indicadores de “excelência” o número de publicações em revistas indexadas, patentes registadas e a captação de financiamentos públicos e privado. Por isso, é possível produzir “mais conhecimento” e simultaneamente reforçar a “injustiça cognitiva” ao excluir outras comunidades, para além das científicas, igualmente capazes de propor soluções para problemas complexos e coletivos (Visvanatha, 2009).

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