Série 1 | Curso 2

Panorama Histórico da Ciência Aberta

Aula 4

Os obstáculos que a Ciência Aberta pretende mitigar

Atualmente, diversos atores que compõem o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação parecem concordar com a proposta, quase imperativa, de “abertura” da ciência. Esta insólita coincidência é um claro indício da ambiguidade desta expressão, pois por detrás do aparente consenso, há distintos pressupostos, interesses e implicações. Trata-se então de questionar:

  • Pode a Ciência Aberta ter o mesmo significado para gestores públicos de política científica, financiadores privados de pesquisa, editores científicos, pesquisadores e sociedade?
  • No que as visões desses atores coincidem? No que eles divergem?
  • Em que direção cada um deles pretende conduzir a Ciência Aberta?
  • Quais são as suas motivações?
  • E, sobretudo, quais são as consequências dos possíveis rumos que ela irá tomar no Brasil?

Vale lembrar que esse conjunto de inovações parece ter emergido como um projeto “alternativo”, encampado por um pequeno grupo de pesquisadores que buscavam melhorar as condições de fazer ciência pela ampliação da circulação do conhecimento científico. Hoje porém a Ciência Aberta já adquiriu outro status e está sendo transformada em políticas científicas de muitos países. Só a União Europeia investirá nos próximos anos cerca de 1 milhão de euros em capacitação de profissionais e criação de infra-estruturas tecnológicas, como a European Open Science Cloud (EOSC), para fomentar maior colaboração em pesquisa e realizar a transição para a Ciência Aberta.

Dada a tendência crescente à institucionalização, é fundamental debatermos qual direção gostaríamos que a Ciência Aberta se orientasse no Brasil e, em especial, no campo da saúde pública.

  • Estamos todos de acordo com o seu significado e suas implicações?
  • Pode a Ciência Aberta proposta por países desenvolvidos ser simplesmente transplantada para o contexto nacional?
  • Como seria uma perspectiva brasileira da Ciência Aberta?
  • Podemos ser propositivos e criativos frente ao cenário internacional?
  • É possível adotar seus princípios de maneira crítica e adequada às demandas e as questões estratégicas para a sociedade brasileira?

Em busca de uma definição de Ciência Aberta

A Ciência Aberta é um aglomerado de movimentos que, em linhas gerais, pretende tornar a pesquisa científica acessível para todos. São muitas as tentativas de definir o que é a Ciência Aberta. A dificuldade de delimitar de maneira clara essa noção resultou, por algum tempo, em aproximações que não a definiam, mas apenas listavam um conjunto de práticas orientadas pelo paradigma aberto, tais como:

Acesso Aberto
(Open access)

Dados abertos
(Open data)

Hardware aberto
(Open hardware)

Ciência cidadã
(Citizen science)

Recursos educacionais abertos
(Open Educational Resources)

Revisão por pares aberta
(Open peer review)

Cadernos abertos de laboratório
(Open notebooks)

Curadoria aberta
(Open curation)

Segundo a Open Knowledge International, por exemplo:

a Ciência Aberta significa muitas coisas, mas principalmente que o conhecimento científico deve ser livre para as pessoas usarem, reutilizarem e distribuírem sem restrições legais, tecnológicas ou sociais

(OKI, s.d.)

Esta acepção deriva da open definition que afirma que “o conhecimento é aberto se qualquer pessoa é livre para acessar, usar, modificar e redistribuir estando sujeito, no máximo, as medidas que preservem a autoria e a abertura”.

Saiba mais:
Open Knowledge Internatinonal

É uma organização sem fins lucrativos, fundada em 2004 no Reino Unido, que atua como uma rede internacional de pessoas (profissionais, ativistas, pesquisadores e cidadãos) que buscam promover dados e conteúdos abertos em todas as suas formas, incluindo dados de governo, dados culturais e de pesquisa, dados pessoais, sensíveis ou sigilosos, segurança da informação, reúso e compartilhamento de dados e propriedade intelectual.

Open Definition

O Open definition se inspira nos princípios do Open Source, aplicando-os a dados e conteúdos. São eles : a) o Acesso Aberto e livre a materiais, b) a liberdade para redistribuir o material; c) a liberdade para reutilizar o material; d) a inexistência de restrição aos fundamentos anteriores baseados em alguma característica específica, como nacionalidade ou campo de atuação (comercial ou não).

Barreiras que a Ciência Aberta pretende eliminar

Diversas inovações da chamada Ciência Aberta afirmam aspirar a “livre circulação do conhecimento científico” e mobilizam a noção de “abertura” para contrapor, em diferentes graus e combinações, a obstáculos artificiais que impedem a sua difusão e avanço. Abrir significa eliminar barreiras. Elas são de natureza:

  • A cobrança de assinaturas para acessar o conteúdo de revistas científicas, cada dia mais exorbitantes, criaram uma barreira financeira (paywall) que corrói orçamentos de bibliotecas, impede o amplo acesso ao conhecimento e, em última instância, inviabiliza a realização de pesquisas. Esse cenário desolador fomentou, lá pelos anos 2000, o chamado “Acesso Aberto” em seu objetivo de “retomar a velha tradição” de fazer circular o conhecimento entre os “pares”.

    Segundo a Iniciativa do Acesso Aberto de Budapeste (Budapest Open Access Initiative - BOAI, 2000), a “antiga tradição” de pesquisadores de publicar o resultado de pesquisa sem exigência de remuneração (em nome da transparência e democratização do conhecimento), somada a então incipiente internet, poderia promover um avanço histórico e desmontar as barreiras, especialmente a econômica, que impedem o acesso à literatura científica. Aqui, o “aberto” se refere à disponibilidade gratuita na internet de produção científica, especialmente artigos publicados em revistas com revisão por pares e pré-prints, de forma que qualquer pessoa possa ler, baixar, copiar, distribuir, imprimir, buscar ou usar a literatura para qualquer propósito legal. As únicas restrições vislumbradas se referam a reprodução e a distribuição, permitindo ao autor garanta a integridade da obra e o seu direito de ser propriamente reconhecido e citado.

  • A comunicação do conhecimento científico se dá majoritariamente através da publicação de artigos em revistas que realizam a revisão às cegas por pares. Minoritariamente, alguns campos científicos, como a Física, também adotam o modelo de pré-print no qual um manuscrito completo é depositado pelos autores em um repositório público, sem avaliação prévia por pares. A crítica fundamental no âmbito editorial é a intermediação da comunicação do conhecimento por um pequeno conjunto de atores (editores, autores e avaliadores anônimos e, geralmente, voluntários) que atuam como gatekeepers da informação e definem temas prioritários, formatos, critérios de cientificidade e qualidade, enfim, o que é publicável (ou não) em revistas científicas.

    Saiba mais:
    Como funciona a revisão por pares e os preprints:

    Fonte: Claude Pirmez, Memórias do IOC

    Vídeo 2 - What are preprint? Legenda

    Fonte: The Jackson Laboratory.

    Vídeo 3 - What are preprints? Legenda

    Fonte: iBiology.

  • O uso abusivo do direito autoral pelas indústrias culturais e criativas, incluindo as de editoração científica, é considerado prejudicial para diversos campos da atividade humana na medida em que se cria uma “escassez artificial” de bens intelectuais, dificultando a circulação de informação relevante. Se, por um lado, os direitos autorais protegem a propriedade intelectual, operando como meio de atribuição de exclusividade temporária, por outro lado, ele não deve se sobrepor a direitos fundamentais como educação, acesso à informação e conhecimento, desenvolvimento científico etc. Este difícil equilíbrio é, atualmente, um campo de batalha feroz entre setores da economia que pretendem manter seus modelos de negócios e novas dinâmicas sociais que promovem o crescimento exponencial de “cópias não autorizadas”. Em contraposição a uma crescente “cultura de permissão”, alguns ativistas elaboraram a noção de “cultura livre” (LESSIG, 2004, p. 28) para advogar a favor de “culturas que deixam uma grande parcela de si aberta para outros poderem trabalhar em cima”.

    Saiba mais:
  • A adoção de formatos abertos é considerada mais adequada para fomentar a circulação da informação porque favorece a preservação de documentos a longo prazo e a interoperabilidade entre sistemas, além de evitar a dependência de indivíduos e instituições de fornecedores que monopolizam um formato. Mais recentemente, a aquisição e geração de dados digitais levou a acumulação de um enorme volume de dados cuja exploração, através da mineração de texto, pode levar a descoberta de padrões e tendências. Vislumbra-se que a mineração de conteúdos, incluindo documentos de texto e conjuntos de dados, poderá auxiliar processos de previsão, identificar correlações e subsidiar a tomada de decisão.

    Saiba mais:
    O que são formatos abertos e fechados?
    Formato aberto:

    É um formato cuja especificação técnica, usada para a descrição e armazenamento de dados digitais, está em domínio público e, portanto, sua adoção está livre de restrições legais. Ao abrir as especificidades técnicas, os formatos abertos podem ser adotados por qualquer sistema sem demandar pagamento ou estar sujeito a licença de uso restrito.

    O Open Document Format for Office Applications (ODF), por exemplo, é um formato de arquivo usado para armazenamento e troca de documentos como textos, folhas de cálculo, bases de dados, desenhos e apresentações. As principais vantagens da sua adoção são: favorecer a preservação de documentos a longo prazo e a interoperabilidade entre sistemas, além de estimular a concorrência entre fornecedores já que nenhum deles detém um monopólio sobre o formato. Órgãos públicos tendem a adotar formatos abertos porque precisam garantir que seus arquivos se mantenham utilizáveis a longo prazo.

    Formato proprietário:

    É um formato cuja especificação técnica é definida e controlada por uma organização ou indivíduo. O seu esquema de codificação é privado e elaborado para operar adequadamente em softwares ou hardwares específicos. O formato proprietário estabelece uma relação de dependência entre os usuários e fornecedores, pois os arquivos podem ser ilegíveis em outros sistemas ou descontinuados com o passar do tempo. Além disso, a interoperabilidade com outros sistemas ou softwares pode ser reduzida ou nula.

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