MÓDULO 3 | AULA 2 Educação em saúde
Um pouco de história das práticas de educação em saúde no Brasil
As práticas de educação em saúde podem ser desenvolvidas de diferentes maneiras. De forma geral, elas vão se configurar não somente a partir do modo como gestores e trabalhadores da saúde entendem os processos de adoecimento e os processos de aprendizagem, mas também a partir da maneira como compreendem que deve ser a participação dos usuários na organização do sistema de saúde.
Como o que as pessoas pensam está relacionado com a sociedade em que elas se criaram e vivem, a forma como gestores e trabalhadores da saúde pensam pode variar de acordo com diferentes contextos históricos. Dessa forma, podemos compreender que as práticas de educação em saúde também podem se constituir de formas distintas em diferentes momentos históricos.
Recuperando um pouco a história da saúde pública no Brasil, você verá algumas características importantes que marcaram as práticas educativas em saúde em nosso país e que, até hoje, percebemos nas atividades de educação em saúde no SUS.
Compreender as atividades de educação em saúde no SUS pode nos ajudar a repensar nossas práticas e problematizar a maneira como pensamos os processos educativos.
No final do século XIX e início do século XX, o Brasil vivia um período de grandes transformações. Com a Abolição da Escravatura (em 1888), o início do desenvolvimento da indústria e do comércio, e a chegada maciça de imigrantes europeus, as principais cidades do país cresciam desordenadamente, sem qualquer infraestrutura. Esse contexto produziu condições sanitárias muito precárias e epidemias, prejudicando a realização de negócios no país, em especial a exportação de café, uma das principais atividades econômicas da época.
Dessa forma, pela primeira vez no país foram estruturadas algumas ações sanitárias para combater epidemias. Essas ações eram pontuais e muito focadas na capital federal. Isso acabou por levar os sanitaristas dos anos 1910-1920, por intermédio de algumas instâncias de representação — como a Liga Pró-saneamento — a pleitearem a montagem de uma estrutura centralizada de saúde, dando origem, em 1920, ao Departamento Nacional de Saúde. Foram realizadas, então, as primeiras práticas sistemáticas de educação nessa área.
A Liga Pró-saneamento do Brasil foi fundada em 1918 como resultado do fortalecimento e organização do movimento higienista no país. Composta por diferentes agentes sociais, a Liga teve como objetivo atuar em prol do saneamento em nosso país, entendendo-o como caminho para a modernização e o desenvolvimento da nação. Ela foi extinta em 1920, por considerarem ter atingido seu objetivo com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública.
Criado em 2 de janeiro de 1920, pelo Decreto nº 3.987, o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) tinha como função ser o principal órgão federal da área, na época, uma vez que não havia ainda Ministério da Saúde e o DNSP era subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Mais do que a simples criação de um novo departamento, esse fato significou uma reforma na estrutura da saúde pública brasileira e o aumento da capacidade do governo federal para atuar para além da capital, incorporando ao governo central a preocupação com as doenças das populações do interior.
Podemos destacar dois pontos muito importantes para entender a forma como essas práticas se estruturaram na primeira metade do século XX:
A doença, na época, era entendida como um fenômeno puramente biológico (ou seja, que não tem relações com processos sociais), que ocorre na interação do ser humano com a natureza. Assim, as intervenções propostas pelas políticas de saúde pública eram voltadas basicamente para:
- O meio ambiente (como matar mosquitos, eliminar ratos e sanear a cidade); e
- O corpo (prescrevendo vacinas e hábitos de higiene para a população) (Nespoli, 2016).
Dessa forma, acabar com as doenças significava, como nos conta Nespoli (2016), limpar as cidades e higienizar as pessoas de modo a acabar com as situações em que os micro-organismos nocivos ao corpo humano podiam se desenvolver.
No início do século, o Estado investiu em ações autoritárias (sem dialogar com a população e desconsiderando seus saberes e suas formas de vida) para tentar garantir que os cidadãos se enquadrassem em um modelo “higienizado” de vida e de cidade, enfrentando enormes dificuldades. Na terceira década do século XX, entretanto, como nos apontam Cyrino e Teixeira(2017), o investimento muda de foco, sendo progressivamente substituído pelo emprego de ações mais de cunho educativo. Estas se tornam fundamentais na busca por convencer as pessoas a participarem do esforço de controle das doenças por meio de medidas preventivas de autocuidado, além, é claro, da mudança dos hábitos e comportamentos cotidianos.
Apesar do impacto que essas ações tiveram no controle das doenças, na época essa concepção não problematiza a dimensão social do processo saúde-doença, quer dizer, desconsidera a relação entre os problemas de saúde da população e suas condições de vida e trabalho, condições definidas pela realidade social, cultural, econômica e política do país (Nespoli, 2016).
O avanço do saber científico e a crença positivista de que ele é a única forma de saber verdadeiro se reflete nas práticas de saúde pública, que desqualificam o saber e as formas de vida construídas pela população a partir de sua realidade. Dessa forma, as práticas educativas desenvolvidas se estruturavam de forma vertical; quem está acima — o trabalhador da saúde, entendido como aquele que tem o conhecimento — tem a legitimidade de dizer a verdade e determinar como quem está abaixo — a população ignorante — deve se comportar (Nespoli 2016).
Esse formato de educação reforça uma relação autoritária segundo a qual o profissional de saúde espera que o usuário obedeça às suas orientações, não favorecendo o diálogo e a construção de vínculos de confiança e cuidado.
Esses dois pontos atravessaram a forma como foram desenvolvidas as práticas educativas em saúde no século passado. Essa forma de fazer educação em saúde é muito comum até hoje, baseando-se em uma maneira de compreender o que é educar e o que se pretende com um processo educativo que chamamos “concepção tradicional de educação”.
Você se lembra da animação que vimos nesta aula? Vamos pensar um pouco mais sobre seu conteúdo...
Você já teve a oportunidade de observar se os
profissionais de saúde costumam conversar com os pacientes sobre as condições sociais do território onde vivem?
Quando fazem atividades de educação em saúde,
eles escutam a população e procuram construir os conhecimentos com ela
partindo de sua realidade e de seus saberes?
Você acha que as práticas educativas nos
serviços de saúde podem ser diferentes?
Tais práticas podem produzir efeitos
diferentes em cada pessoa?
Reflita sobre como o educando pode problematizar os efeitos de diversas formas de educar.
Se você pensar um pouco, irá perceber que a educação não acontece só na escola, ela se realiza no nosso dia a dia. Ela acontece nas praças, igrejas, e em tantos outros espaços. Quando ela se dá de modo organizado, com objetivos e temas definidos, considera-se que está sendo realizado um trabalho educativo (Morel, Lopes, Pereira 2020).
Quando nos propomos a fazer este trabalho educativo, seja como professores ou trabalhadores da saúde, sempre temos um ponto de partida, mesmo que nem sempre pensemos sobre isso. Esse ponto de partida, que acaba por definir como vamos desenvolver nossa tarefa educativa, é constituído por nossa visão do que seja educar e a nossa compreensão da sociedade em que vivemos.
Na abordagem tradicional do ensino, parte-se do pressuposto de que a função de educar é transmitir conhecimentos aos educandos. É preciso decompor a realidade a ser estudada, simplificando o conhecimento a ser transmitido ao aluno que, por sua vez, deve se preocupar em assimilar o conteúdo repassado sem qualquer preocupação em compreender o processo de produção desse conhecimento. Ao estudante se atribui um papel passivo, de nenhuma relevância na elaboração e na aquisição do conhecimento. Compete a ele apenas a memorização do que lhe é transmitido (Mizukami, 1986).
É muito comum que o processo educativo seja feito a partir de exposições ou palestras sobre determinado tema, isto é, na maior parte do tempo o educador fala, procurando “depositar conhecimentos na cabeça dos educandos”, esperando que os assimilem passivamente. Segundo essa abordagem, é necessário manter a disciplina, e para isso a autoridade do educador é fundamental.
Em relação à concepção de sociedade, é comum que não haja grande reflexão crítica sobre a organização social, de modo que a função do educador é preparar o educando para viver na sociedade exatamente como ela se apresenta, isto é, para adaptá-lo ao mundo em que vivemos, sem questionamento ou críticas, e evidentemente sem qualquer ponderação sobre a possibilidade de transformá-lo. Essa maneira de ensinar, também conhecida como pedagogia da transmissão, é denominada por Paulo Freire como educação bancária. Se observarmos o cotidiano das escolas e dos serviços de saúde perceberemos que ela está muito presente nas práticas educativas em nosso país.
Você percebe essas práticas no seu cotidiano de trabalho? Quais resultados você acha que ela produz?
Em geral, no âmbito dos serviços de saúde, os trabalhadores desenvolvem suas atividades como já viram outros desenvolverem e a partir de suas vivências na escola (em geral, marcadas por concepção tradicional de educação): repassam conhecimentos científicos sem questionamento, difundem padrões de comportamento (que, muitas vezes, eles mesmos têm enorme dificuldade em seguir) objetivando o controle dos hábitos de vida dos indivíduos.
O trabalho educativo, nessa perspectiva, reproduz as antigas práticas de educação em saúde do início do século. Acontece, quase sempre, de forma autoritária e vertical.
Nesse formato educativo, os trabalhadores da saúde se aproximam pouco do cotidiano do território e da população e desqualificam seu saber e suas formas de vida. Sem conhecimento ou diálogo com os usuários, eles trazem, quase sempre, orientações prontas que, muitas vezes, não são entendidas ou não são possíveis de serem seguidas pelas pessoas em seu dia a dia. O vínculo “profissional de saúde-usuário” é frágil, dificultando a construção de uma relação de respeito e cuidado.
Além disso, esse distanciamento não favorece a reflexão sobre os processos saúde-doença no território, o que dificulta que a população os entenda como suas condições de vida. As formas como as pessoas trabalham, moram, se alimentam etc. estão diretamente relacionadas com a maneira como adoecem. A enfermidade torna-se uma questão apenas biológica, cuja solução ou remediação se dá a partir de mudanças de condutas individuais. Ademais, como muitas vezes os usuários não veem sentido/não têm possibilidade ou não conseguem seguir as condutas prescritas pelos serviços de saúde, eles acabam responsabilizados por seus problemas.
Todo esse processo acaba por favorecer a passividade e o sentimento de ignorância nas pessoas e pouco ajuda no sentido de propiciar discussões e movimentos coletivos na luta pelo direito a condições de vida mais dignas e pelo direito à saúde.