Como podemos observar, existia certo sentimento de frustração do sanitarista em relação à realidade da saúde pública do governo varguista, o que inclusive levou ao seu rompimento com o governo.
Unidade 2
Do Período Getulista à Ditadura Civil Militar
Rupturas e continuidades entre a Primeira República e a Era Vargas na saúde
É bastante comum que mudanças de governo e/ou regimes políticos tragam consigo discursos e mentalidades de ruptura com o passado. Essa ideia de que o novo representa uma quebra de tradições e oferece possibilidades mais “modernas” é constituinte de uma forma de compreender a própria passagem do tempo.
Porém, ao observar com mais calma os processos sociais, políticos, culturais e econômicos, percebemos que a história não é feita somente por rupturas, mas também está repleta de continuidades. Entender esse movimento de permanências e mudanças é bastante importante para que seja elaborada uma visão crítica sobre o passado.
De modo geral, existem muitos debates sobre o que efetivamente teria mudado na passagem da Primeira República para a Era Vargas. Esse questionamento se deve, principalmente, porque toda a construção do governo varguista se pautou na negação do que veio antes, taxando o primeiro período republicano como a “República Velha”.
Como vimos anteriormente, uma das críticas do regime de Getúlio mirava na força das oligarquias estaduais, o que deveria ser diminuído em favorecimento de uma forte centralização administrativa.
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Entretanto, na prática, as elites estaduais mantiveram bastante força política, exigindo do governo federal poder de negociação para implantar suas reformas na estrutura do Estado. Esse é um exemplo de como, mesmo havendo mudanças em alguns sentidos, em outros há continuidades.
No campo da saúde, essa discussão pode ser endereçada a quatro pontos:
A organização institucional da saúde pública
A composição ideológica do movimento sanitário
As pautas e preocupações do campo
A mobilização da classe média
Para Refletir
Para que possamos navegar por esses pontos, é preciso entender que a reforma da saúde pública nas duas últimas décadas da Primeira República foi caracterizada como um dos elementos mais importantes no processo de construção de uma ideologia da nacionalidade, com impactos relevantes na formação do Estado brasileiro.
Essa mesma interpretação divide o movimento sanitarista em dois períodos.
Saneamento Urbano
Saneamento Urbano
A primeira fase teria sua ênfase no saneamento urbano da cidade do Rio de Janeiro e o combate às epidemias de febre amarela, peste e varíola.
Saneamento Rural
Saneamento Rural
A segunda fase do movimento sanitarista teria como característica fundamental a ênfase no saneamento rural, em especial o combate às endemias rurais.
Na visão do movimento pelo saneamento do país, a higiene seria o instrumento central para a reforma deste, pois viabilizava a remoção do atributo que o identificava e o desqualificava: a doença.
Como vimos nas seções anteriores, o projeto para a saúde na Era Vargas envolvia outros fatores, principalmente a integração da nação e a centralização administrativa dos serviços de saúde. Isso não significou, porém, que as agendas do movimento sanitarista tivessem sido resolvidas ou simplesmente desaparecido. Diversos atores participantes do movimento na Primeira República assumiram papéis de destaque na administração varguista, o que colocou conflitos de visão e expectativa sobre como a saúde pública deveria funcionar.
Em termos institucionais, embora o período varguista tenha marcado uma ampliação considerável do aparato estatal, principalmente a partir da Reforma Capanema, a perspectiva de que a saúde pública deveria ser organizada tendo em vista o combate às doenças infectocontagiosas foi mantida em relação à Primeira República.
Dessa forma, portanto, existiu uma mudança na formatação institucional, mas a manutenção de uma certa dimensão da agenda política.
A composição ideológica talvez seja um dos pontos mais complexos nessa discussão, pois envolve as próprias trajetórias dos personagens que participaram da organização da saúde pública entre 1910 e 1945.
Veja, por exemplo, uma carta de Belisário Penna, importante nome do movimento sanitarista da Primeira República, a Getúlio Vargas, logo no início de seu governo:
"Depois de veemente e pertinaz propaganda pelo saneamento rural, de haver alcançado convencer os governos da necessidade de instituir os serviços de profilaxia (...), depois de todo esse esforço, e quando a confiança do governo revolucionário me entrega a direção da saúde pública, vejo-me forçado a concordar com a supressão desses serviços (...) e a ficar manietado sem o direito da mínima iniciativa nem mesmo na sede do Departamento, por insuficiência de recursos."
(Carta de Belisário Penna a Getúlio Vargas, 2-7-1931, apud Hochman & Fonseca, 1999).
Finalmente, no que diz respeito à classe médica, o período trouxe algumas questões importantes. No tocante à formação, a Era Vargas marca o movimento de criação de novas faculdades de medicina fora dos tradicionais centros (Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Pernambuco) e a gradual incorporação do modelo norte-americano – o chamado modelo flexneriano ou biomédico – no ensino médico, resultado da atuação da Fundação Rockefeller no país.
Saiba Mais: Modelo flexneriano ou biomédico
O chamado modelo flexneriano se refere à reforma do ensino médico dos Estados Unidos realizada na década de 1910, a partir do relatório de Abraham Flexner. O principal ponto dessa reforma consistia em articular ensino, pesquisa e prática médica, em uma preocupação com a ação prática dos estudantes de medicina.
Esse modelo foi adotado pela Fundação Rockefeller e levado a diversos países latino-americanos em suas campanhas sanitárias. No Brasil, o modelo flexneriano entrou em choque com o modelo experimental alemão, mas foi amplamente incorporado às escolas médicas, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial.
Quanto à atuação profissional, duas mudanças foram essenciais:
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Sanitaristas
Por um lado, com a ampliação do aparato estatal na saúde, ocorreu a profissionalização dos sanitaristas, transformados em funcionários públicos com uma carreira no Estado.
Previdência
Por outro lado, e não menos importante, a Era Vargas marcou o fortalecimento exponencial do sistema previdenciário, o que também ampliou o campo de atuação dos médicos, que passaram a atender nos institutos de previdência (IAPIs).
Na próxima aula, veremos com mais detalhes o surgimento da medicina previdenciária no Brasil.
Finalmente, embora seja um período marcado por diversas mudanças na estrutura de saúde do país, a Era Vargas não representou uma ruptura total com o passado da Primeira República, devendo ser entendida em meio ao complicado jogo das mudanças e continuidades.