Módulo 4 | Aula 1 População Negra

Tópico 3

Estigma e discriminação racial no cuidado em saúde

As desigualdades raciais são berço para o desenvolvimento do estigma e da discriminação racial. Para Goffman (1980), o estigma constitui um atributo negativo e indesejado para um indivíduo em determinado contexto social, condição que lhe causa sensação de diferença e desvantagem. O autor destaca que o estigma pode ser de dois tipos:

Desacreditável

Estigma que, mesmo experimentado pelo indivíduo, não é imediatamente percebido pelo olhar estranho.

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Desacreditado

Estigma que é imediatamente percebido e impossível de ser ocultado diante do olhar estranho.

Dias (2013) destaca como a vivência real do estigma desacreditado, ou da possibilidade de ele ocorrer, tende a produzir respostas que tornam o estigma sentido ou antecipado. Com base em Scambler (1998), a autora argumenta que o estigma sentido se refere às situações em que ele tem como efeito a discriminação, enquanto o segundo diz respeito a uma situação possível de acontecer e antecedida pelo indivíduo, que busca evitar a discriminação.

Nos serviços de saúde, o processo de discriminação contra pessoas negras ultrapassa a dimensão interpessoal. Ou seja, embora seja importante estarmos atentos e atentas para o profissional que exerce racismo de forma individual, é imprescindível avaliar e responder como as instituições de saúde tornam possível o racismo.

Para refletir...

Assim, um dos principais problemas que está em questão é a institucionalização do racismo nos serviços de saúde e os seus impactos sobre a população negra, situação conhecida como racisracismo institucional na saúdeS, SOUSA, 2020). Nele, o que se expressa de maneira decisiva é a contínua autorização para a realização de práticas invasivas, que consideram o corpo negro como forte e resistente às mais precárias e dolorosas formas de intervenção.

Nutriz de pele negra amamenta um bebê negro.
Fonte: freepik.com

Leal (et al.2017) indicaram que a realização de episiotomia sem anestésico é 50% maior para mulheres negras em relação às brancas durante o parto. Além disso, quanto mais discriminados os segmentos populacionais, menor é o acesso à analgesia. A pesquisa ainda revela que mulheres pretas e pardas possuem alta prevalência na realização de partos pós-termo como reflexo de uma menor assistência gestacional.

Já Carvalho et al. (2021) destacam o descrédito dos relatos de dor de pacientes com doença falciforme em interações com familiares, público geral e com profissionais da saúde, a atribuição de rótulos e estereótipos, a culpabilização por não terem melhoras do seu quadro de dor, a discriminação, o racismo, a avaliação inadequada da dor e a demora no atendimento. Como efeito, sofrem retardo nos atendimentos, tratamento indelicado, além de serem atendidos por profissionais menos qualificados.

Material complementar
Capa do PDF Doença Falciforme Diretrizes Básicas Da Linha De Cuidado
Fonte: bvsms.saude.gov.br

Leia Doença Falciforme Diretrizes Básicas Da Linha De Cuidado

Nesta leitura você poderá entender melhor sobre os cuidados da doença falciforme.

Santos (2013) assinala que práticas procedentes do racismo podem discriminar, criar obstáculos e prejudicar os interesses de um grupo por causa de sua raça, cor e cultura, como ocorre com a população negra.

Conheça agora alguns casos que evidenciam práticas procedentes do racismo:

Mulher negra pobre de 28 anos, moradora da cidade Belford Roxo, no Rio de Janeiro, que foi a óbito por morte materna, após peregrinar por diferentes serviços de saúde com um quadro de gravidez de risco e ter sua demanda de saúde negligenciada.

Fonte: Senado Notícias.

Mulher negra de 31 anos, moradora de Petrópolis, Rio de Janeiro, que foi a óbito por infecção generalizada após recorrer a um abortamento inseguro.

Fonte: Catarinas Jornalismo com perspectiva de gênero.

Homem negro de 62 anos, agredido e humilhado por seguranças do Hospital Dom João Backer, em Gravataí, Rio Grande do Sul, após ser acusado pelo furto de um celular pelas funcionárias do hospital onde estava internada sua esposa, Maria Lopes, que vendo o marido passar por tal situação, sofreu uma parada cardíaca e foi a óbito.

Fonte: g1 Rio Grande do Sul.

Para refletir...

O racismo marca os serviços de saúde como espaços onde a atenção e o cuidado de pessoas negras são fortemente negligenciados, desassistidos e produtores de intensas violências. Como, por exemplo, homens trans negros expostos a maiores tempos de espera ou à negação de atendimento em relação a homens trans brancos em serviços de saúde do município de Salvador, Bahia. Ou seja, o racismo se dá, necessariamente, pela produção e manifestação de violência, marcando os corpos passíveis de cuidado e os corpos aos quais o cuidado deve ser negado ou postergado.

Reconhecidos os impactos do estigma e da discriminação racial sobre as condições de saúde e doença, é importante olhar para o cenário que envolve as infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV/Aids, hepatites virais (HV), micoses endêmicas (ME), tuberculose (TB) e hanseníase. Os indicadores sobre HIV/Aids e hanseníase são relevantes para essa discussão.

Dados do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis - DCCI informam que a hanseníase possui maior incidência, respectivamente, entre homens, nos grupos entre 20 e 69 anos (com aumento de casos, entre 2020 e 2021, para pessoas com mais de 40 anos) e entre negros. Nota-se que entre 2020 e 2021, o número de novos casos de hanseníase segundo raça/cor mais que dobraram entre pessoas pretas. Veja esses gráficos:

Gráfico de barras com a distribuição do número de casos novos de hanseníase segundo raça/cor, entre os anos de 2014 e 2021, demonstrando a predominância dos casos em pessoas pardas, seguidos de casos em pessoas brancas, pessoas pretas e por fim pessoas amarelas e indígenas em todo esse período.
Fonte: SINAN/SVS/MS

No que diz respeito aos indicadores do HIV/Aids, o DCCI apresenta uma maior notificação de casos de Aids entre homens ao longo de toda a série temporal (1980-2021), em especial, homossexuais e heterossexuais.

Sobre a diminuição dos casos de Aids notificados no SINAN para todos os grupos raciais, a população negra é aquela que registra os maiores números. Em 2021, pretos e pardos somaram 60% dos casos notificados, com os percentuais de 10,6% e 49,4% respectivamente.

Gráfico de barras mostrando a distribuição percentual dos casos de AIDS notificados no SINAN por cor ou raça
Fonte: MS/SVS/DCCI - Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis.

Ao considerar os indivíduos com a informação de raça/cor conhecida no ano de 2020, é possível observar que aqueles autodeclarados pardos ou pretos concentraram a maior proporção de casos de Hepatite A, 51,5%. Veja os números:

Gráfico de pizza representando o percentual dos casos de Hepatite A por cor ou raça em 2020, com 47,6% em brancos, 42,4% em pardos, 9,1% em pretos, 0,6% em indígenas e 0,3% em amarelos.
Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico: Hepatites Virais 2021. Número especial. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.

Para a situação da Hepatite B, indivíduos pardos e pretos somaram 55,2%. Veja os números:

 Gráfico de pizza representando o percentual dos casos de Hepatite B por cor ou raça em 2020, com 42,5% em brancos, 42,7% em pardos, 12,5% em pretos, 1,2% em indígenas e 1,1% em amarelos.
Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico: Hepatites Virais 2021. Número especial. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.

Segundo o boletim epidemiológico sobre hepatites virais, ao comparar 1999 com 2020, “observa-se que as proporções das notificações de casos entre pessoas autodeclaradas pretas e pardas é ascendente, com aumento de 95,3% e 116,2%, respectivamente. A tendência contrária é verificada nas notificações entre pessoas autodeclaradas de raça/cor branca, com queda de 40%” (BRASIL, 2021, p. 18).

Veja mais alguns dados:

Gráfico de pizza representando o percentual dos casos de Hepatite C por cor ou raça em 2020, com 55,3% em brancos, 33,3% em pardos, 10,2% em pretos, 0,9% em amarelos e 0,3% em indígenas.
Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico: Hepatites Virais 2021. Número especial. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.
Gráfico de pizza representando o percentual dos casos de Hepatite D por cor ou raça em 2020, com 57% em pardos, 16,8% em brancos, 12,9% em pessoas com raça/cor ignorados, 7% em indígenas, 4,9% em pretos e 1,4% em amarelos.
Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico: Hepatites Virais 2021. Número especial. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.

O que se evidencia a partir desse conjunto de dados é que o racismo impacta de forma desigual as formas de adoecimento, expondo o segmento populacional negro. Considerando o estigma e a discriminação raciais como barreiras para o cuidado, essa situação demanda esforços para a superação desse quadro.

Para isso, as análises interseccionais e aquelas que preveem a sinergia entre as vulnerabilidades são fundamentais para responder aos desafios expostos. Isto significa olhar para as dimensões estruturais que operam nas construções de condições de saúde desiguais e para o impacto que a questão racial, de gênero, classe, escolaridade, dentre outras, possuem em relação a agravos que já têm em si um conjunto de estigmas atrelados.

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“A saúde da população negra, enquanto campo de produção de conhecimento e saberes, atitudes, práticas e estratégias de gestão, é construído e aprimorado a partir da necessidade de compreender e intervir nos impactos do racismo sobre a saúde das pessoas, em particular de negras e negros, de confrontá-los e superá-los como pressuposto para a consecução de uma sociedade efetivamente democrática, menos desigual e injusta.”

LOPES e WERNECK, 2010, p. 9