Módulo 4 | Aula 1 População Negra

Tópico 1

Racismo e resistência política

Quando falamos em racismo, estamos abordando um processo de dominação que infringiu a humanidade negra para produzir corpos à serviço dos interesses coloniais. O esforço para a manutenção desse domínio sobre a população negra foi muito grande e permaneceu ao longo do tempo, gerando um estereótipo que precisa ser combatido até hoje.

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“A construção sociorracial da população negra brasileira, imposta pela colonização, atribuiu à pessoa negra representações de inferioridade, selvageria, baixa cognição, utilidade ao trabalho braçal, além dos mais diversos descasos.”

NASCIMENTO, 2017; MOURA, 2019; SOUZA; 1983

Com o fim legalista da escravização dos povos africanos, a população negra foi lançada à própria sorte, sem recursos financeiros, posses, escolaridade ou moradia que possibilitasse a sua organização no novo momento e uma inclusão social digna em termos de acesso aos direitos e oportunidades sociais, uma vez que ao longo dos anos, diversas leis foram elaboradas com o objetivo de restringir o acesso e a liberdade destes povos a direitos básicos, incluindo humanidade e dignidade, veja:

Primeira lei de educação: negros não podem ir à escola - Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837
“São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.

Lei dos vadios e capoeiras
Código Penal – Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 (2 anos depois da abolição)
Esse decreto estabeleceu que os que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam para a cadeia, assim como os que estivessem jogando ou portando objetos relativos à capoeira.

Pintura em cores representando a abolição da escravatura. Duas pessoas negras com o dorso nu se abraçam ao centro do quadro, carregando em suas mãos, algemas abertas. Há várias outras pessoas negras próximas e algumas poucas pessoas brancas também.
Quadro “A abolição da escravatura”, de 1849, de François-Auguste Biard.
Fonte: Observatório do Terceiro Setor

Além disso, a construção dos dispositivos legais no Brasil definiu formas de retaliação nos espaços públicos e de encarceramento de pessoas negras. Em um cenário de intensa perseguição vários mecanismos de “extirpação da mancha negra” (NASCIMENTO, 2017) passaram a se configurar como interesse prioritário da dominação branca, que abriu as fronteiras brasileiras para a entrada de imigrantes europeus, proibiram a entrada de negros e contingenciou a entrada de asiáticos (OLIVEIRA, 2006). Desse modo, buscou instaurar um processo de intenso branqueamento racial (a partir da miscigenação) e de embranquecimento cultural sustentado pelo que foi denominado o mito da democracia racial.

Os reflexos desse período são muitos:

População negra

De um lado, estão o acúmulo de estratégias de sobrevivência, construídas em face das condições de extrema vulnerabilidade às quais a população negra foi exposta, o emprego dos conhecimentos produzidos no território africano à realidade vivenciada no Brasil, as múltiplas formas de cuidado com bases nos costumes e nas tradições religiosas - que têm atravessado tempo e espaço - e as resistências negras diante desse cenário de dominação.

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População branca

De outro, as contínuas retaliações desempenhadas pelo segmento branco colonizador à organização negra brasileira, a produção de espaços e dispositivos de privilégios que negam e subalternizam a presença das pessoas negras (casas-grandes, fazendas, faculdades, hospitais, leis etc.); além da produção de discursos que afirmavam sua desumanização e inferioridade e ganharam força no século XX com as formulações do racismo científico.

Lopes e Werneck (2010) destacam as estratégias desenvolvidas em diferentes níveis pela população negra a fim de garantir o autocuidado individual e coletivo desde o período escravocrata. Tratava-se da adaptação ao meio e da resistência política que foram desempenhadas contra o conjunto de opressões e crueldades praticadas pelo segmento branco colonizador do território brasileiro.

1988

Este ano foi um marco histórico para o movimento negro. Primeiro, pela passagem dos 100 anos de abolição da escravidão no Brasil, que motivou a realização de várias manifestações no país. Nesse contexto, a Constituição Federal foi promulgada por constituintes compelidos pelo movimento negro a participar deste diálogo, que trata diretamente das situações e condicionantes da discriminação racial, destacando a defesa da afirmação da igualdade, do combate aos preconceitos, do repúdio ao racismo, a defesa da pluralidade e da liberdade de culto, sendo o racismo considerado crime inafiançável e imprescritível (PAIXÃO 2003).

1990

A partir deste ano houve um considerável recuo no que se refere à disseminação do mito da democracia racial. Por um lado, devido à luta do movimento negro, que exigia que o Brasil se reconhecesse como um país racista, tendo como resultado as desigualdades raciais. Por outro lado, com o fato da produção e divulgação de indicadores sociais, que serviram de subsídios para essa discussão (PAIXÃO 2003).

Diversas manifestações vindas da academia e do ativismo social têm apontado como as desigualdades sociais possuem um forte componente de discriminação, tendo a raça como base. Esses argumentos desmontam as ideias que reduzem a problemática das desigualdades sociais ao apresentá-las como causa exclusiva da pobreza.

Para dar conta desta questão, um conjunto de metodologias e estratégias de análise, incluindo o critério raça/cor e o impacto do racismo na saúde foi desenvolvido, permitindo a qualificação dos dados em saúde e o alcance do segmento populacional negro, comumente invisibilizado por discussões que negam a questão racial.

Esse é um dos efeitos da resistência política do movimento negro brasileiro no campo da saúde: qualificar o entendimento das condições de nascer, viver e morrer e permitir a atuação nos contextos de iniquidade racial.

Este trabalho político-intelectual converge para a qualificação da situação das infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV/Aids, hepatites virais (HV), micoses endêmicas (ME), tuberculose (TB) e hanseníase, que discutiremos mais adiante.

Devido a constatação de que o racismo e a discriminação racial expõem homens e mulheres a situações mais vulneráveis de adoecimento e de morte, o movimento negro brasileiro explicitou suas demandas e reivindicou a implementação de políticas públicas de forma que atendessem às especificidades desta população com equidade.