Curso 1

Vacinação Covid‑19:
Protocolos e Procedimentos Técnicos

Módulo 4

Tópico 1

Atenção integral à saúde da PSR

Se por um lado, “a vida na rua expõe homens, mulheres e crianças a riscos que fazem com que essa população mereça, sob diversos aspectos, abordagem específica das equipes de saúde”, por outro, a complexidade das vulnerabilidades às quais estão expostas essas pessoas demandam do Estado planejamento e implementação intersetorial e integrado de políticas públicas.

A garantia do acesso à saúde e atendimento às pessoas em situação de rua acaba por se constituir, de uma forma geral, como um grande desafio para as políticas públicas, exigindo ações articuladas para a conquista de seus objetivos. Vitimadas por problemas sociais estruturais, muitas delas têm sua situação agravada pela contínua permanência em condições insalubres, sujeitas à violência. Embora haja avanços na implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) na última década, a exemplo da consolidação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e a implementação das equipes de Consultório na Rua (eCR), ainda são inúmeras as invisibilidades, iniquidades e barreiras na garantia de direitos às pessoas em situação de rua.

Desafio para PSR

Um desafio ainda presente para a ação pública à população em situação de rua (PSR) é a ausência da contagem oficial da população de rua em nível nacional pelos órgãos oficiais, ocasionando dificuldades no planejamento de políticas públicas. Em uma importante tentativa de mitigar essa ausência, o Ipea em 2020 realizou um estudo que aponta uma estimativa para março de 2020 de um total de 221.869 pessoas em situação de rua no Brasil, representando um aumento com relação à estimativa de março de 2012 de 140% em todo o país e 165% de aumento nas metrópoles. Estes dados reforçam o fenômeno como um problema social em contextos de crises econômicas e sociais, agravadas nos últimos anos, com a ampliação da pobreza extrema, aumento da desigualdade social e altos índices de desemprego.

Informações da nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que apresenta a estimativa da população em situação de rua no Brasil em todo o período que vai de setembro de 2012 a março de 2020.

No Brasil, as primeiras ofertas de serviços de saúde voltadas para a PSR foram:

  • Consultório de Rua do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBA), com ênfase no cuidado referente aos casos do uso de álcool e outras drogas, entre 1999 e 2006;
  • Equipes de Saúde da Família para População Sem Domicílio, iniciadas em Belo Horizonte e São Paulo no ano de 2002, e em 2010 nos municípios de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Curitiba.

Com base nessas iniciativas, por meio da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), são criadas as equipes de Consultório na Rua (eCR), para implantação em todo o país.

Imagem de um círculo com sinal de mais
Consultório na Rua (eCR)

São equipes multiprofissionais que oferecem atenção integral à PSR diretamente nas ruas e, também, na Unidade Básica de Saúde – UBS onde está lotada, lidando com a ampla gama de problemas e necessidades de saúde da PSR. Essas equipes desenvolvem ações de modo compartilhado e integrado com as equipes dos Centros de Apoio Psicossocial – CAPS, dos serviços de urgência e emergência, de outros pontos da rede de atenção à saúde e do território, em consonância com as necessidades dos usuários.

Fontes: Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e Machado (2017)

As eCR são também um dos componentes da Atenção Básica (AB) na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seu rol de atividades é o mesmo das demais equipes de AB. Elas são orientadas pela PNAB e pela Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011.

Ressalta-se que, pela prevalência de casos, há também ênfase na busca ativa de usuários de álcool e outras drogas, lógica da Redução de Danos (RD), como orientação ética para a AB, de um modo geral. Contudo, é importante não entender a RD a partir de uma leitura reducionista referente somente às questões relacionadas ao álcool e outras drogas.

Para que a atenção à saúde para pessoas em situação de rua tenha a real materialização do acesso e garantia de direitos, é necessária a adoção de uma agenda baseada na valorização da clínica e organização do processo de trabalho, não separadas dos princípios do SUS, dos atributos da Atenção Primária em Saúde e da vigilância popular em saúde de base territorial.

A atenção à saúde para pessoas em situação de rua necessita de ações construídas e executadas considerando uma abordagem específica para esse público e sempre atrelada aos registros nos sistemas de saúde, monitoramento e avaliação das políticas públicas de saúde.

Além das vulnerabilidades diversas e condições gerais de saúde das pessoas em situação de rua, soma-se a essa problemática, a contínua invisibilidade no cotidiano e na ação estatal, também expressa muitas vezes, na fragilidade dos dados relacionados à PSR.

Neste sentido, o registro das ações em saúde nos diversos sistemas do SUS cumpre um papel fundamental e estratégico não só para a continuidade do cuidado e da resolutividade das ações, mas também, para o planejamento e a implementação de políticas públicas integradas.


Papel estratégico do SUS

A partir dos princípios da integralidade, da universalidade e da equidade, o SUS prevê a Atenção Primária em Saúde como sua principal porta de entrada, definida como um conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas. Esta é desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e de gestão qualificada. Dentre as suas diretrizes, descritas na PNAB, destaca-se com maior ênfase a territorialização, a resolutividade e a coordenação do cuidado.

Pressupostos importantes que auxiliam o profissional de saúde no atendimento integral à PSR:
  • Concepção de saúde não centrada somente na assistência aos doentes, mas, sobretudo, na promoção de saúde e no resgate da qualidade de vida, com intervenção nos fatores que a colocam em risco.
  • Incorporação das ações programáticas, incluindo acesso às redes sociais.
  • Desenvolvimento de ações intersetoriais.
  • Consciência dos aspectos que condicionam e determinam um dado estado de saúde e dos recursos existentes para sua prevenção, promoção e recuperação.
  • Para a organização desse modelo, é fundamental que sejam pensadas as “linhas do cuidado” (da criança, do adolescente, do adulto, do idoso etc.).
  • O trabalho em equipe é um de seus fundamentos mais importantes.

Esses itens são importantes não somente para este grupo populacional, mas nele, devido ao alto grau de vulnerabilidade e iniquidade, se não atentarmos para esses pontos, intensifica-se o risco de barreiras de acesso e as ações pouco resolutivas ganham contornos ainda maiores.

Fonte: Ministério da Saúde

Uma das ações mais importantes, nesse contexto, é o acolhimento.


Identificação da PSR no território

Utilizar-se de diagnósticos ou mapeamentos do território para identificar onde estão as pessoas em situação de rua, quem são e quais serviços públicos e ONGs do território estas pessoas costumam estabelecer vínculos e relações, são condições primordiais para toda ação que vise a atenção em saúde da PSR. Logo, este passo é fundamental também para a especificidade de toda campanha de vacinação voltada para PSR.

Imagem de um círculo com sinal de mais
Acolhimento

Acolhimento é muito mais do que receber o usuário de forma acolhedora. Acolher é compreender a sua demanda para além da queixa principal apresentada, é perceber esse cidadão no seu contexto social e inseri-lo em uma rede de atenção à saúde em que a atenção básica é a coordenadora do cuidado.

Deste modo, o acolhimento é fundamental para a abordagem inicial do usuário, com efeitos importantes junto à PSR: observação e escuta qualificada na abordagem inicial do usuário; respeito aos diferentes modos de viver dos indivíduos, o que amplia a possibilidade da construção de vínculos de confiança junto à PSR, possibilitando em processos relacionais no cuidado integral à saúde.

Pessoas em situação de rua, muitas vezes, deixam de buscar a rede de atenção à saúde, devido, dentre outros motivos, às possíveis experiências de exclusão nesses espaços. Não é raro, esse grupo populacional ser recebido nos serviços de saúde com incômodo ou rejeição, tanto por parte dos profissionais de saúde como dos usuários presentes. Essas marcas somam-se a um contínuo processo histórico de exclusão social. Assim, se fazem necessários tanto o acolhimento como a identificação das pessoas em situação de rua, dos serviços e ofertas para este grupo no território, para busca ativa e integração de ações intersetoriais.

O Manual sobre o cuidado junto à População em Situação de Rua lista alguns dos riscos a que a PSR está exposta. Estes pontos devem ser observados pelos profissionais durante o processo de vacinação deste grupo. Veja os riscos:

Viver na rua e, portanto, sem abrigo ou proteção adequada, deixa os indivíduos mais vulneráveis às agressões de natureza física ou moral. Faz-se necessário constante estado de vigilância e preparação para ‘fugir’ ou ‘reagir’.

É comum para a equipe de saúde, ao abordar alguém à noite em uma calçada de qualquer grande cidade, ser a primeira pessoa com quem ela conversará naquele dia.

Alguns moradores de rua relatam vergonha de buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde por conta de sua condição de higiene ou vestimentas malcuidadas.
Colher informações clínicas de quem vive nas ruas tem desafios específicos. Ao ser perguntada há quanto tempo tem uma lesão de pele, uma pessoa pode responder que não sabe, porque há muito tempo não se olha no espelho.

Pode confundir febre e calafrios com as baixas temperaturas do vento da noite; aparentar emagrecimento porque suas roupas são doadas e acima do seu tamanho.

Quando se tenta construir a linha de tempo do relato clínico, muitas vezes nos deparamos com enormes vazios, como se nada naquele período tivesse ocorrido na vida do entrevistado.

É imprescindível que o profissional de saúde reconheça a necessidade da escuta qualificada para essa população e busque apoiar, sem imposições, a construção de uma história clínica, diagnóstico e projeto terapêutico adequados ao indivíduo.

Colher informações clínicas de quem vive nas ruas tem desafios específicos. Ao ser perguntada há quanto tempo tem uma lesão de pele, uma pessoa pode responder que não sabe, porque há muito tempo não se olha no espelho.
Pode confundir febre e calafrios com as baixas temperaturas do vento da noite; aparentar emagrecimento porque suas roupas são doadas e acima do seu tamanho.
Quando se tenta construir a linha de tempo do relato clínico, muitas vezes nos deparamos com enormes vazios, como se nada naquele período tivesse ocorrido na vida do entrevistado. É imprescindível que o profissional de saúde reconheça a necessidade da escuta qualificada para essa população e busque apoiar, sem imposições, a construção de uma história clínica, diagnóstico e projeto terapêutico adequados ao indivíduo.

A dificuldade recorrente de acesso ao sistema de saúde para buscar ajuda e a luta diária pela sobrevivência fazem com que muitas pessoas em situação de rua, mesmo visivelmente adoecidas, neguem estar com qualquer problema de saúde.

Tal fenômeno não costuma se dar por dissimulação, mas pelo silenciamento de sinais e sintomas que, pouco a pouco, foram se incorporando àquilo que o indivíduo passou a considerar como condição de normalidade para si.

Nesse momento, se o profissional de saúde perguntar a um morador de rua com tosse, febre e desnutrição como ele vai de saúde, ele responderá: “Vou bem”.

Caberá então como tarefa adicional às equipes de atenção à saúde dessa população apoiar o despertar do olhar do cidadão para si mesmo como alguém que pode encontrar uma nova “normalidade” de direito e de saúde, mais compatível com a vida e a dignidade humanas.

Nem sempre há meios de lavar as mãos antes das refeições.

O uso de restos ou dietas exclusivamente à base de alimentos doados faz com que o consumo de nutrientes necessários seja irregular, levando a um estado nutricional inadequado.