No plano sindical, estabeleceu-se o corporativismo com a lei de sindicalização de março de 1931 (decreto 19.770), que consagrava um modelo de organização em que os sindicatos eram definidos não como órgãos de representação de interesses de patrões e operários e, sim, como órgãos consultivos e técnicos de colaboração entre as classes mediadas pelo Estado.
Unidade 2
Do Período Getulista à Ditadura Civil Militar
Relação entre os IAPs, Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio e os trabalhadores: corporativismo, cidadania regulada e controle social
De um modo geral, os estudiosos da história da saúde no Brasil observam uma cisão nesse campo, com a assistência médica individual dependente dos Institutos de Previdência vinculados ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), e a saúde pública dedicada em geral, mas não só, às ações sanitárias contra epidemias e endemias que grassavam largamente no país (doenças de massa). Esta, por sua vez, estaria subordinada ao Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), criado em 1930, e que, em 1953, daria origem ao Ministério da Saúde – tema, aliás, da nossa próxima aula.
Saúde Pública
Esta seria fruto de iniciativas governamentais e voltada à população em geral.
≠
Assistência Médica
Sua inclusão, via corporativismo e por intermédio dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) dos anos 1930, apresentaria um caráter fragmentário, segmentado e seletivo. Portanto, não universalista e não inclusivo, nos termos da chamada “cidadania regulada”, de acordo com o conceito já consagrado de Wanderley Guilherme dos Santos.
Saiba Mais
Cidadania Regulada
“Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes se encontram, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece. A implicação imediata deste ponto é clara: seriam pré-cidadãos todos os trabalhadores da área rural, que fazem parte ativa do processo produtivo e, não obstante, desempenham ocupações difusas, para efeito legal; assim como seriam pré-cidadãos os trabalhadores urbanos em igual condição, isto é, cujas ocupações não tenham sido reguladas por lei (...) a regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato público definem, assim, os três parâmetros no interior dos quais passa a se definir a cidadania”. (Santos,1979. p. 75)
Atenção
No caso da Assistência Médica, o que se veria estabelecido no âmbito da assistência à saúde por intermédio da cultura política trabalhista brasileira, de forte viés corporativista, não seria uma cultura de direitos solidária, universalista e sim uma cultura de direitos muito peculiar que transmudaria a ideia de direito em privilégio. Privilégio daqueles que possuíam carteira de trabalho assinada e que, portanto, estariam inseridos no mercado formal de trabalho.
Para Refletir
A conclusão que geralmente se apresenta em boa parte dos estudos é que o processo de estruturação da assistência à saúde no Brasil a partir dos anos 1930 se define não como um direito de cidadania, fruto de certa mobilização e reivindicação social e sim como outorga ou dádiva governamental, tendo em vista os objetivos políticos e ideológicos do Governo Vargas, afiançador inicial e principal de tal processo. Mas será que foi exatamente assim?
Com efeito, desde o início da Era Vargas, embora isso se intensifique no Estado Novo, um ponto chave das estratégias de afirmação ideológica do regime era aquele que colocava Getúlio no lugar especial de ser predestinado, providencial, capaz de, como dito pelo Ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho, surpreender “na fase nascente as aspirações e tendências populares”.
Vale dizer, do presidente “pai dos pobres”, grande doador das leis sociais, a chamada ideologia da outorga, que apresentava a legislação trabalhista do período não como uma conquista dos trabalhadores, mas sim como uma dádiva do governante.
Com esse objetivo, pois, foram estabelecidas políticas públicas que procuravam atingir o cotidiano das classes trabalhadoras, de modo a criar uma audiência operária de apoio para o regime e, ao mesmo tempo, promover a imagem de Vargas, responsabilizando-o de modo pessoal por toda política social e trabalhista implantada no período.
Basta citar a criação, logo em 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), identificado, como dissemos, pelo próprio regime como Ministério da Revolução e a implantação de diversas medidas que regulavam as condições de trabalho, como a criação da carteira de trabalho, registro profissional e prova documental para fins de controle e obtenção de direitos, para ficarmos apenas em algumas indicações.
Sem esquecer, obviamente, da implantação, a partir de 1933, dos institutos de previdência, os IAPs, objeto da nossa aula.
Quanto à concessão de serviços e benefícios, as discrepâncias variando de instituto para instituto permanecem como uma característica, na estreita dependência da maior ou menor capacidade de mobilização e pressão política de uma dada categoria de trabalhadores junto ao aparelho de Estado.
Além disso, sua oferta continua restrita aos indivíduos inseridos formalmente no mercado de trabalho, o que lhes facultava o ingresso em algum IAP específico, nos marcos da chamada “cidadania regulada”.
Nas palavras do presidente...
Um Homem velava pelo Brasil. Nos conciliábulos misteriosos com o Destino, ele escutava as vozes do futuro e indicava o rumo certo a seu povo. Surgiam e envelheciam rapidamente as fórmulas de governo e os quadros de dirigentes. Mas a figura do Chefe continuava atual e presente no auge dos acontecimentos, imprescindível na torre de comando. E o seu segredo era muito simples: nunca perdera a comunicação com o povo. O instinto divinatório das massas compreendia intuitivamente o Chefe que nem sempre era compreendido pelos políticos, emaranhados numa cadeia de conveniências pessoais. E o Brasil amadurecera para uma realidade maior. Ninguém se dava conta das mutações profundas que se operavam no seio de todas as classes. Cristalizara-se na inteligência do povo a necessidade de alguma coisa que deveria surgir. Tudo estava pronto para a grande metamorfose. Bastava apenas que uma luz nova iluminasse o painel gigantesco que se esboçava no laboratório sombrio da História. E as sombras foram dissipadas à luz que raiou com a manhã de 10 de Novembro de 1937.
Getúlio Vargas Para os Escolares, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Imprensa Nacional, 1940.Para Escutar
Ouça, agora, três músicas da época:
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É negócio casar - Música de Ataulfo Alves e Felisberto Martins, 1941.
Ouça a música aqui. -
Recenseamanto - Música de Assis Valente, 1940.
Ouça a música aqui. -
Bonde de São Januário - Música de Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1940.
Ouça a música aqui.
Atenção
Uma importante característica do período (1930-45) foi a forte intervenção do Estado no âmbito do trabalho, através da implantação de uma profusa legislação trabalhista e sindical, ocorrendo nesse período, por assim dizer, a implantação de uma cultura política trabalhista estruturadora do sistema corporativista de relações de trabalho, gestada no 1º Governo Vargas, notadamente no período fortemente repressivo do Estado Novo, mas consolidada ao longo da experiência democrática do pós 1945.
Mas o que seria precisamente um tal sistema corporativista de relações de trabalho? Em linhas gerais, ele apresentava as seguintes características:
- Sindicato como órgão consultivo e de colaboração com o poder público;
- Unicidade sindical;
- Contribuição sindical obrigatória (imposto sindical implantado em 1940);
- Função normativa do poder público através, sobretudo, da Justiça do Trabalho (criada em 1939 e instalada em 1941);
- E pela possibilidade de intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos.
O objetivo do referido sistema corporativista de relações de trabalho, na perspectiva do varguismo, era, obviamente, obter aquiescência e apaziguamento social no registro da colaboração e harmonia de classes.
No entanto, diversos são os trabalhos que têm procurado apresentar um quadro mais sofisticado e nuançado desse processo, questionando as interpretações que, via de regra, realçam exclusivamente a capacidade do Estado de impor suas mensagens e projetos de controle social, na perspectiva da mencionada colaboração de classes.
Atenção
Nesse sentido, se propõe a problematizar determinado modo de interpretação da realidade que em geral sobrelevam o papel protagonista do Estado, ativo e poderoso, diante de uma classe trabalhadora passiva, objeto de cooptação desse Estado. Ao inverso, tais estudos têm observado uma classe trabalhadora que desde sempre e para além de importantes e violentos constrangimentos, se apresenta como um sujeito que realiza escolhas segundo o horizonte de um campo de possibilidades políticas. (Gomes, 2001)
No caso do corporativismo brasileiro, por exemplo, trabalhos recentes de historiadores, como o de Correa (2016), têm procurado apontar para sua capacidade de gerar efeitos não exatamente previstos por aqueles que o implantaram, dada certa flexibilidade e possibilidade de reapropriação e ressignificação por parte dos trabalhadores.
Vale dizer, a depender dos diferentes contextos históricos, períodos mais autoritários ou mais democráticos, a experiência dos trabalhadores com o corporativismo teria sido bastante diversa.
Saiba Mais: Corporativismo à brasileira
O corporativismo brasileiro apesar de sua grande capacidade de sobrevivência e adaptação ao longo do tempo e de ter sido imposto de cima para baixo através de procedimentos autoritários e de possuir inegável objetivo de controle social, como salienta Lobo (2016), não teria impedido que os trabalhadores, nas diversas conjunturas em que se atualizou, rearticulassem e reinventassem suas formas de luta, constituindo uma identidade e uma consciência de classe marcadas pela dura experiência vivenciadas nos mundos do trabalho, de modo a constituir uma particular cultura de direitos.
Cultura de direitos que, reelaborada ou reinventada pelos trabalhadores, sobretudo nos anos da experiência democrática de 1945-1964, ganharia contornos distintos do seu momento de gestação, incorporando demandas de cidadania bem mais amplas e expressivas em termos de justiça, participação política, reconhecimento e luta por direitos.
Assim, em que pese os objetivos de controle e conciliação de classes por parte dos formuladores da legislação trabalhista ou da estrutura sindical corporativa, o que os estudos recentes têm apontado é que, de um modo geral, aquilo que foi prescrito no plano ideológico no mundo real não teve efetiva ou completa vigência, gerando efeitos, por assim dizer, não esperados.
O mesmo ocorre em relação à cidadania regulada, que não parece ter sido algo tão peculiar assim, se considerarmos que todo processo de construção de cidadania em qualquer lugar do mundo nunca deixou de sofrer algum tipo de regulação.
Saiba Mais
Modelos liberais de cidadania vigentes em muitos países, como os EUA, sempre exigiram algum tipo de contrapartida em termos de inserção no mercado, exceto no caso de mínimos sociais para aqueles comprovadamente indigentes ou em situação de grande vulnerabilidade. Dessa forma, também aí não se teria acesso aos bens sociais apenas por ser membro da comunidade, o que mostra que o nosso caso de cidadania regulada não foi exatamente uma aberração histórica.
Aliás, na própria Europa ocidental, no início dos sistemas de proteção social (primeiros anos do século XX), nada se processou como acesso universal e em grande medida estavam relacionadas à capacidade de contribuição dos sujeitos.
Atenção
O conceito ampliado de proteção social de escopo universal, baseado na ideia de seguridade social, só se afirmou, e mesmo assim com diferenças de país a país, no pós-Segunda Guerra. Sendo assim, o que se tem salientado é que o modo de operar direitos no Brasil deve ser visto sob uma ótica mais complexa, uma forma particular de estruturação de uma cultura de direitos que não deve ser descartada como algo menor ou desprovida de significado e importância, posto que incompleta e distante de modelos consagrados como ótimos.
De acordo com o sociólogo Adalberto Cardoso (2010), por exemplo, a cidadania regulada foi a forma possível da consciência de classe no Brasil, a consciência do direito a seus direitos, uma espécie de promessa integradora, cheia de limites, é verdade, mas que pautou o próprio horizonte da luta de classes no Brasil. Uma luta tanto por parte daqueles que estavam incluídos quanto dos não incluídos, em três direções:
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Ítem 1
Pela implantação efetiva dos direitos estabelecidos (que, de modo algum, por constarem na lei, estavam garantidos).
Ítem 2
Pela constante ampliação desses direitos.
Ítem 3
Pela extensão dos que podiam ser incluídos nessa nova formulação de direitos, ou seja, pela introdução de novas categorias de trabalhadores no universo da cidadania regulada, portanto, no universo dos direitos. (Cardoso, 2010, p. 223).
Para Refletir
A concepção de cidadania regulada, de acordo, pois, com as interpretações mencionadas, parece não combinar muito bem com a ideia de um sentido monolítico e necessariamente limitador da luta por direitos, vale dizer, de um quadro estável de uma “cidadania regulada” atravessada por um sentido determinadamente corporativo, segmentado, particularista e marcado pela completa ausência de solidariedade entre os trabalhadores, sobretudo entre incluídos (cidadãos) e excluídos (pré-cidadãos, sub-cidadãos ou quase cidadãos).
Pode-se concluir então que, se por um lado os sistemas de previdência do pós 1930 – interesse principal da nossa aula – constituíam parte inegável da estratégia de cooptação do regime e de institucionalização da imagem redentora de Vargas, mais uma dádiva ou outorga getulista, por outro, gerava um forte sentimento nos indivíduos de que estes órgãos de previdência haviam sido criados para lhes servir e oferecer proteção, sinalizando para um importante sentido de reconhecimento de direitos, ainda que contraditoriamente amalgamado com a fórmula retórica da benesse getulista, como parece sugerir a carta do operário José Luiz de Moura, com a qual finalizo esta aula.
Carta que José Luiz de Moura escreve ao presidente para solicitar-lhe apoio para a sua inscrição como segurado do IAPB, que considera um direito seu diante de “mais de quarenta anos de serviço na indústria de fiação em Minas Gerais”, embora, de modo ambíguo, também reivindicada como resultado da “pequena parcela das leis sociais” “generosamente” concedida por Vargas.
Quero, apenas, uma pequena parcela das leis sociais que V. Excia., generosamente, nos deu, com o objetivo de afastar o operário da miséria, quando este for velho e cansado. Exmo. Sr. Presidente, requeri em junho do ano passado a minha inscrição no INSTITUTO DE APOSENTADORIA E PENSÕES DOS INDUSTRIARIOS, mas esta me foi negada unicamente porque não trabalhei nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1938, embora, Dr. Getúlio, desde 1895 venha eu labutando na indústria têxtil!
Ora, está provado pelos documentos que ofereço a V. Excia., em pública forma, que desde 1895, há 47 anos, portanto, venho trabalhando como industriário (...) tenho 65 nos feitos e não desejo senão um descanso na velhice e o sossego dos meus filhos.