Unidade 1

Do Império à Primeira República: o surgimento da saúde pública​

Aula 3

O Brasil dos sertões

Durante as três primeiras décadas do século XX, o debate intelectual no Brasil foi objeto de intensas polêmicas sobre a identidade nacional e as medidas capazes de promover o desenvolvimento do país.

Em diversos setores, predominava a ideia de que a debilidade física e moral dos brasileiros era fruto da miscigenação.

Para os críticos da miscigenação, era necessário adotar uma política de embranquecimento progressivo da população por meio do incentivo à imigração de origem europeia.

Só assim, segundo eles, o Brasil poderia superar o atraso em que se encontrava e ingressar no rumo da civilização.

Em Os sertões, livro clássico de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos, a população mestiça e sertaneja do Brasil é retratada em sua bravura e resistência na luta contra as asperezas do clima e as dificuldades da pobreza. Publicada em 1902, a obra contribuiu para a descoberta do interior do país e para a valorização da figura do sertanejo.

Capa de uma edição de Os sertões, a obra clássica de Euclides da Cunha

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que pelejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço de nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...

CUNHA, Euclides da. Os sertões.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979, p. 138.

Influenciados pelas ideias presentes em Os Sertões, os líderes do Movimento Sanitarista se destacaram na oposição ao determinismo de cunho biológico e racista professado por parte considerável das elites brasileiras.

Como vimos, algumas pessoas atribuíam o atraso do progresso brasileiro ao caráter mestiço de nossa população.

Atenção

O Movimento Sanitarista entendia que o que prejudicava o progresso do país não era a mestiçagem, mas sim o abandono pelo poder público de um imenso contingente de brasileiros entregue à própria sorte e desprovido dos meios mínimos de subsistência.

Doentes, analfabetos e famintos, eles formavam um exército de incapazes, cuja redenção somente seria alcançada quando o Estado assumisse a tarefa de integrá-los num projeto de desenvolvimento nacional.

A origem do Movimento Sanitarista esteve diretamente ligada à descoberta da doença de Chagas e à divulgação dos resultados das expedições do IOC.

Capa de Saneamento do Brasil, livro de Belisário Penna, com dedicatória a Carlos Chagas.
Capa de Saneamento do Brasil, livro de Belisário Penna, com dedicatória a Carlos Chagas.
Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz

1916

Arthur Neiva e Belisário Penna publicam um alentado relatório sobre a viagem que fizeram às regiões Nordeste e Centro-Oeste do país. O documento é um diagnóstico preciso e detalhado das condições nosológicas de um vasto território ainda ignorado pela maioria dos brasileiros.

Em cores fortes, eles pintaram um quadro ainda mais preocupante do que aquele revelado por Carlos Chagas no norte de Minas. Suas descrições mostraram uma população sertaneja degradada física e socialmente, inepta para o trabalho, e vitimada não só pela tripanossomíase, mas também por outras endemias. Tudo isso envolto num ambiente de miséria e ausência do poder público.

"É habitual dizer-se, e nós mesmos já temos cometido esse pecado, que o povo sertanejo é indolente e sem iniciativa. A verdade, porém, é outra. A ausência de esforço e iniciativa dessa pobre gente é proveniente do abandono em que vive, e da incapacidade física e intelectual resultante de moléstias deprimentes e aniquiladoras, cabendo nessas regiões à moléstia de Chagas a primazia desse malefício."

NEIVA, Arthur & PENNA, Belisário. “Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás”. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, v. 8, n. 3, 1916, p. 220-221
O médico Miguel Pereira: para ele, o Brasil era um “imenso hospital”.
O médico Miguel Pereira: para ele, o Brasil era um “imenso hospital”.
Fonte: Acervo Academia Nacional de Medicina

O relatório Neiva-Penna teve grande repercussão, atravessou as fronteiras da área médica e passou a embasar as reivindicações pelo saneamento rural do Brasil.

Nesse contexto, progressivamente a doença tomaria o lugar da raça nas análises dos problemas sociais da nação. Sensibilizados pelo brado do médico Miguel Pereira, para quem o país era um “imenso hospital”, setores importantes da intelectualidade brasileira aderiram ao movimento.

"É bem que se organizem milícias, que se armem legiões, que se cerrem fileiras em torno da bandeira, mas melhor seria que se não esquecessem nesse paroxismo do entusiasmo que, fora do Rio ou de S. Paulo, capitais mais ou menos saneadas, e de algumas outras cidades em que a providência superintende a higiene, o Brasil ainda é um imenso hospital ... Em chegando a tal extremo de zelo patriótico uma grande decepção acolheria sua generosa e nobre iniciativa. Parte, e parte ponderável, dessa brava gente não se levantaria; inválidos, exangues, esgotados pela ancilostomíase e pela malária; estropiados e arrasados pela moléstia de Chagas; corroídos pela sífilis e pela lepra ... Não carrego as cores ao quadro. É isso sem exagero a nossa população do interior. Uma legião de doentes e de imprestáveis."

PEREIRA, Miguel. “A manifestação dos acadêmicos ao professor Aloysio de Castro.” Rio de Janeiro. Jornal do Commercio, 11 out. 1916, p. 4.
O escritor Monteiro Lobato.
O escritor Monteiro Lobato.
Fonte: Wikipedia

O escritor Monteiro Lobato foi um dos que abraçou com entusiasmo as teses do Movimento Sanitarista. Ele criou o personagem Jeca Tatu, um representante literário do sertanejo doente e desamparado pelo Estado.

"O Jeca Tatu não é assim; ele está assim."

Monteiro Lobato

Um dos frutos do Movimento Sanitarista foi a criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil, fundada em 11 de fevereiro de 1918, um ano depois da morte de Oswaldo Cruz. Sua principal bandeira era a criação de um organismo federal para centralizar e coordenar as ações de saúde pública.

Presidida por Belisário Penna, a Liga fortaleceu o movimento em defesa de uma reforma sanitária que ampliasse os serviços de saúde para todo o país.

Veja mais informações sobre a Liga e Belisário Penna:

Belisário Penna discursa na sessão comemorativa do primeiro aniversário da Liga Pró-Saneamento do Brasil. A Liga buscou chamar a atenção das elites para as precárias condições de saúde da população e para a necessidade de investimentos no saneamento do interior do país.

Fonte: Rio de Janeiro, 11 fev. 1919. Acervo Casa de Oswaldo Cruz.

Belisário, o autoproclamado “apóstolo do saneamento rural” e diretor da Liga Pró-Saneamento do Brasil, discursa para moradores de Pilares, no Rio de Janeiro.

Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz
Saiba Mais

Vários intelectuais, cientistas, militares e escritores se filiaram à Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Até o presidente da República, Wenceslau Brás (1914-1918), fez parte do movimento.