Módulo 4 | Aula 3 Mecanismos de correção da literatura

Conforme discutido previamente na aula 2 deste módulo, a revisão por pares é responsável por fazer o “filtro” do que será publicado, identificando quais pesquisas são robustas e apresentam resultados sólidos. Essa função é crucial para manter a qualidade e a integridade da produção científica. No entanto, nem sempre a revisão por pares é capaz de identificar todos os problemas em um manuscrito submetido. Assim, alguns artigos acabam sendo publicados contendo erros (textuais, metodológicos e/ou nos resultados), ou, na pior das hipóteses, instâncias de má conduta científica ou práticas questionáveis (revisite esses conceitos no módulo 1, se necessário).
O que acontece com artigos que apresentam erros, dados fabricados ou fraudulentos?
Estes podem (e devem) ser corrigidos ou, ainda, serem retratados (“descreditados ou invalidados”). Esse processo se chama “correção da literatura”, cuja função é sinalizar o que pode ser feito por diferentes mecanismos (consideradas ferramentas editoriais), conforme descrito a seguir.
A necessidade de correções pós-publicação pode ser apontada por qualquer pessoa (leitores, coautores, avaliadores, editores), sendo decidida e executada pelo corpo editorial dos periódicos científicos. Estes, em geral, seguem recomendações estabelecidas internacionalmente pelo Comitê de Ética em Publicações (Committee on Publication Ethics, COPE, em consonância com o Comitê Internacional de Editores de Periódicos na Área Médica (International Committee of Medical Journal Editors; ICMJE, e com o Guia da SciELO para publicações. O ideal é que tais correções (mesmo quando apontadas por terceiros) sejam solicitadas ao editor pelos autores do artigo.
Notem que artigos corrigidos ou retratados continuam nas bases indexadoras e nos portais dos periódicos em que foram publicados. Os registros de todas as notificações ou alterações são mantidos visando a transparência e a rastreabilidade do processo.
Errata e Corrigenda
Erratum (no plural, errata) e corrigendum (no plural, corrigenda) se referem a uma ou mais correções pontuais feitas em um artigo pós-publicação. Estas têm o objetivo de corrigir qualquer tipo de erro, seja resultante de um erro honesto, má conduta ou prática questionável, incluindo autoria indevida. Importante destacar, no entanto, que em casos de correções desse tipo, entende-se que os problemas encontrados são pontuais e não afetam as conclusões científicas do trabalho original. Assim, as publicações destas correções se referem ao registro original do artigo publicado (DOI e demais informações), que permanece “válido”, com as devidas correções destacadas.
Para algumas editoras, como a Elsevier, existe uma diferença entre errata e corrigenda: errata é uma correção demandada pelo editor, enquanto corrigenda é solicitada pelo autor, ambas pós-publicação. No entanto, alguns periódicos usam “errata” e “corrigenda” de maneira intercambiável, não diferindo entre um e outro.
Addendum
Addendum (no plural, addenda) é uma ou mais informação(ções) adicional(is) sobre um artigo publicado, notificando os leitores sobre questões relacionadas à compreensão do artigo, por parte do corpo editorial. Estas podem ser feitas para aprofundamento ou esclarecimento de um conteúdo do artigo publicado.
Expressão de preocupação
Uma "expressão de preocupação" (do inglês, expression of concern) é uma declaração editorial que manifesta uma dúvida ou preocupação em relação a aspectos de uma publicação científica, sinalizando ao leitor que tenha cuidado com suas interpretações. Essas expressões podem surgir, por exemplo, quando alguém identifica possíveis problemas éticos, metodológicos ou interpretativos que possam afetar a validade ou a integridade dos resultados apresentados. As expressões de preocupação podem levar a investigações mais aprofundadas e, caso seja evidenciado um real problema na publicação, elas podem “resultar” em uma correção formal ou retratação.
Retratação
A retratação é uma “desacreditação” ou “invalidação” do artigo científico, que tem como objetivo informar aos leitores que o conteúdo (total ou parcial) descrito em tal publicação não é confiável. As retratações podem acontecer por diversos motivos, desde erros honestos (por exemplo, um erro estatístico), práticas questionáveis (como a publicação salame) até má conduta (por exemplo, a fabricação deliberada de um resultado). Importante ressaltar que a falta de conduta ética na condução da pesquisa envolvendo animais e seres humanos também pode levar à retratação de um artigo. Em geral, conforme recomendado pelo COPE, há uma notificação clara de que o artigo está retratado (por exemplo, uma marca d’água). As retratações devem ser acompanhadas de uma “Nota de Retratação”, a qual explica aos leitores de maneira clara e o(s) motivo(s) da retratação do artigo, o que aumenta a transparência do processo. No entanto, infelizmente, diversos periódicos e autores emitem notas de retratação que não seguem as recomendações de transparência do COPE, dificultando o processo de entendimento dos problemas envolvidos na retratação de um artigo.
"Retratação” é um termo usado por alguns para preprints além de artigos científicos (por exemplo, o blog Retraction Watch).
Há também um banco de dados que compila retratações de artigos indexados desde 1995.
Veja a seguir o exemplo de um artigo do médico britânico Andrew Wakefield, publicado na revista Lancet, que dizia relacionar a vacina tríplice ao autismo. O artigo gerou ferrenho debate na comunidade científica e também entre o público não científico. O artigo passou por diversos mecanismos de correção na literatura científica, até ser retratado após investigações concluírem diversos problemas éticos, como conflito de interesse e dados fraudulentos.
![Fonte: tradução de Campus Virtual Fiocruz, a partir de NCBI Captura de tela de uma retratação de artigo, com a errata em retratação de uma interpretação [Lancet, 2004]. Retratação em Hiperplasia nodular linfoide do íleo, colite inespecífica, e distúrbio de desenvolvimento mental difuso em crianças. [Lancet, 2010]. Expressão de preocupação em a importância da hiperplasia nodular linfoide íleo-colônica em crianças com distúrbio do espectro autista: expressão de preocupação. [Eur J Gastroenterol Hepatol, 2011].](../media/modulo4/aula5-img1.png)
Referente à retratação de artigos, é importante destacar:
“A retratação é um mecanismo para corrigir a literatura e alertar os leitores sobre as publicações que contêm dados tão seriamente falhos ou errôneos que seus achados e conclusões não podem ser confiáveis. Dados não confiáveis podem resultar de erro honesto ou de má conduta em pesquisa.”
WAGER E, BARBOUR V, YENTIS S, KLEINERT S. (2009)
As retratações desempenham um papel fundamental na manutenção da confiabilidade da literatura científica, pois permitem corrigir erros e esclarecer informações imprecisas. Elas são essenciais para a integridade do conhecimento, garantindo que a comunidade acadêmica tenha acesso a dados corretos e robustos. É importante desestigmatizar as retratações, reconhecendo que nem todas as retratações acontecem por alguma forma de má conduta e elas não representam falhas pessoais, mas sim um compromisso com a transparência e a responsabilidade científica. Aceitar e valorizar esse processo fortalece a confiança na pesquisa e promove um ambiente mais rigoroso e ético.