Módulo 5 | Aula 3 Práticas estigmatizantes e discriminatórias dirigidas às/aos usuárias/os dos serviços de saúde

Tópico 1

Estigma como barreira ao acesso à saúde

Como apresentado ao longo do curso, o estigma e a discriminação são obstáculos para que as pessoas tenham acesso aos serviços de saúde em variados processos de adoecimento, prevenção ou tratamento. Veja algumas reflexões.

Mãos segurando um globo terrestre e bonequinhos de papel de mãos dadas ao redor do globo.
Fonte: Freepik

Estamos inseridos numa sociedade fortemente desigual, excludente e que, frequentemente, reproduz situações de estigma e discriminação. Este fato precisa ser considerado na prática cotidiana dos(as) trabalhadores(as) da saúde, seja no planejamento das ações, no acolhimento e na decisão sobre os procedimentos adotados nos serviços.

Em 2016, a UNAIDS, a Aliança Global para a Força de Trabalho em Saúde e a OMS iniciaram a campanha mundial Zero Discriminação nos Serviços de Saúde, visando as pessoas vivendo com HIV (PVHA). Tal campanha destaca que a discriminação nos serviços de saúde pode assumir diversas formas, como:

Situações de discriminação têm sido identificadas, por exemplo, no âmbito do cuidado e do controle da tuberculose. Um estudo sobre as implicações do estigma na perspectiva dos agentes comunitários de saúde evidenciou a presença de estigma na atenção aos (às) usuários(as) e discutiu suas implicações para o controle e assistência adequadas. O depoimento abaixo de uma agente comunitária de saúde, participante do estudo, ilustra bem essa situação.

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(...) é a questão do preconceito entre os próprios profissionais. Porque nós, assim, trabalhando na área já há bastante tempo, a gente já presenciou o preconceito dos profissionais, que mesmo com toda aquela bagagem de informação, de que como se pega, em que ponto o bacilo vai [...] mas na hora que ele se depara com o problema, ele não consegue, ele trava, não consegue abordar, conversar com o paciente normalmente, sem aquele preconceito.

Lima LM et al. (2014, p.4)
Consulta médica.
Fonte: Fiocruz

Estudos realizados nos serviços especializados, na atenção básica ou na interface entre eles, assinalam a presença do estigma e da discriminação nos contextos de saúde, perpassando os territórios, o fluxo de trabalho dos profissionais de saúde e reiterando sua implicação com a vulnerabilidade.

Barreiras estruturais, como pobreza, racismo, desigualdade de gênero e criminalização do trabalho e baixa escolaridade dificultam o acesso à prevenção e ao tratamento de jovens gays, travestis e mulheres trans.

Material complementar
Estigma estrutural, interpessoal e individual

O estigma pode ser classificado como estrutural, interpessoal e individual, como indicado em um estudo recente com mulheres trans. Vamos conhecer a seguir essas classificações:

Estigma estrutural

O estigma e a discriminação podem representar grandes barreiras para as mulheres trans. Muitas evitam os serviços de saúde por antecipar a discriminação e outras têm o acesso negado. Algumas preferem pagar por serviços privados ou se automedicar, seja por conta do estigma ou por experiências prévias de discriminação e maus-tratos. É comum relatarem: dificuldades no acesso aos serviços de testagem e aconselhamento de HIV; falta de acesso às informações de prevenção; preocupações com a confidencialidade dos resultados dos testes de HIV e pouco acesso ao preservativo. A estigmatização pode ainda dificultar a retenção das mulheres trans nos serviços de cuidado ao HIV/Aids.

Estigma interpessoal

As mulheres trans descrevem abusos físicos e sexuais que ampliam o risco de HIV. A discriminação relacionada ao gênero tem sido associada a comportamentos sexuais, como o sexo anal receptivo desprotegido e dificuldade de negociação do uso do preservativo. Nos serviços de saúde, as principais discriminações sofridas pelas mulheres trans são o não uso do nome social ou o pronome feminino por parte dos profissionais e longos períodos de espera pelo atendimento.

Estigma individual

A combinação do estigma interpessoal e estrutural tem consequências negativas na vida das mulheres trans, como: isolamento social, medo contínuo da discriminação, comportamentos sexuais de risco, internalização do estigma, estresse psicossocial, baixa autoestima, depressão, ideação suicida e uso de álcool e outras drogas. Cabe salientar que as mulheres trans vivendo com HIV enfrentam uma carga de estigma ainda maior.

Estigma na atenção em saúde: o caso do HIV
Mãos segurando fitas com o símbolo do combate à Aids.
Fonte: Freepik

Considerando que o estigma em relação ao HIV ainda é bastante presente na sociedade brasileira, cabe refletir sobre a atitude dos profissionais, dado que as equipes de saúde podem contribuir para a desconstrução de estigmas ou, ao contrário, fortalecê-los.

Vejam a seguir exemplos descritos por pesquisadores dedicados ao tema:

Uso de preservativo masculino
Fonte: Fiocruz

Um estudo em duas unidades de saúde de Porto Alegre analisou o estigma em relação ao HIV entre trabalhadores da saúde. A partir dos achados, os autores destacaram dois aspectos: “a (re)produção de estigmas e a relação entre estigma e estratégias de prevenção” observadas no serviço.

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A (re)produção do estigma nas práticas profissionais ocorre através da associação da Aids com a morte e com uma marca corporal, designada pelos ACS como ‘a cara da Aids’. A associação Aids-morte surgiu no início da epidemia, em decorrência da ausência de tratamentos e da alta taxa de mortalidade associada à Aids. (...) A frase veiculada no cartaz [produzido pela equipe da ESF com a frase “Basta! Aids Mata. Use camisinha”] assenta-se em uma estratégia educativa baseada no amedrontamento e na ideia de que a informação de cunho biomédico serviria para mobilizar as pessoas na direção da prevenção. Tal cartaz é direcionado às pessoas que supostamente não estão infectadas, na expectativa de que sintam medo e adotem estratégias preventivas, designando a compreensão de que a prevenção significa evitar o contato com o agente transmissor de determinada doença. Ao restringirem a prevenção a tal concepção, negligenciam-se as pessoas que têm HIV e frequentam a unidade, sendo submetidas a uma informação que reforça um estigma. A associação com a morte também pode ter como consequência o medo e consequente evitação do teste anti-HIV, em decorrência da possibilidade de se confrontar com um resultado positivo.

ZAMBENEDETTI & BOTH (2013, p.52)
Silhueta de um casal.
Fonte: Freepik

Outro trabalho registrou vivências do estigma entre jovens vivendo com HIV/Aids, atendidos por um hospital de referência. Os relatos indicaram que a maioria sofreu estigma na vida cotidiana e no cuidado em saúde, como pode ser visto no trecho abaixo.

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...o que eu passei foi muito preconceito na maternidade que meu filho nasceu, era muito preconceito, era coisa de enfermeira chegar para mim e falar assim: “Ó, quantos anos você tem?”, eu falava assim, “ah, dezesseis”, “você acabou com a sua vida tá, nunca mais faz nada sem camisinha”. Era isso, é assim, toda hora vinha e tacava pedra de gelo no meu peito e eu estava num quarto onde não tinha outras pessoas com HIV, eu era a única, todo mundo amamentando que era uma coisa que ainda mexe comigo que eu quero amamentar... Porque a mulher que é grávida e tá com HIV é um pouco diferente da normal. (M. 21 anos)

CRUZ, DARMONT & MONTEIRO (2021)
Consulta de gestante.
Fonte: Fiocruz

Em uma pesquisa realizada na região central do município do Rio de Janeiro foi abordado como as desigualdades de acesso ao diagnóstico e tratamento das PVHA têm relação com a presença marcante da violência urbana e das relações de gênero, em um contexto de entrecruzamento de vulnerabilidades. Um aspecto destacado nos resultados refere-se à influência das desigualdades de gênero, classe e raça/etnia no aumento da vulnerabilidade das mulheres, tanto em relação à exposição às IST/HIV/ Aids, quanto ao seu acompanhamento nos serviços de saúde. No entanto, o cuidado em relação ao HIV para a mulher ainda está mais estruturado para a condição materna, incluindo a realização de exames para o diagnóstico de HIV em gestantes e prevenção da transmissão vertical. Nas palavras dos autores:

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fatores estruturais, como desigualdades raciais, de gênero, opressão sexual e de idade, interagem de maneira sinérgica produzindo mais desvantagens e agregando vulnerabilidades a estes (...). Pelos relatos dos profissionais de saúde, as mulheres foram percebidas como potencialmente expostas à infecção do HIV, em função da pouca autonomia na negociação do uso da camisinha com os seus parceiros e da violência. Em uma das histórias de gestantes com sífilis, a ACS relatou a dificuldade de tratamento porque o companheiro “força a ter relações com ele” sem camisinha. O medo de que os companheiros descubram o diagnóstico induz algumas mulheres a deixarem de fazer o tratamento ou que o façam de forma irregular, por causa de estratégias para não serem descobertas, como o ocultamento de cartões de gestantes ou de medicamentos que possam revelar o diagnóstico. Analisando a literatura da área, também percebemos que dinâmicas envolvendo segredo e acobertamento fazem parte da vida dessas mulheres. O sucesso no manejo do sigilo passa a ser um fator decisivo para a garantia do acesso e da continuidade do tratamento, uma vez que a unidade está inserida no território e, portanto, sua quebra pode ter impacto na vida familiar e social.

DAMIÃO et. al (2022, p.163-174)

Outra pesquisa analisou como o estigma e a discriminação estão presentes na rotina de implementação da testagem para o HIV no contexto da atenção básica, consultando usuários e profissionais de saúde. Ainda que num primeiro momento os participantes do estudo reconheçam que todas as pessoas são vulneráveis ao vírus, referindo não haver mais um grupo de risco, algumas expressões de estigma seguem presentes. Alguns profissionais, apesar de possuírem conhecimento técnico sobre as formas de transmissão, receiam adquiri-lo por contato com os pacientes, ou contribuem para o processo de estigmatização nas unidades, como pode ser visto no relato a seguir:

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“A equipe não tanto, mas tem também. Uma coisa assim ‘olha lá o fulaninho, sempre aprontando e ó, agora viu no que deu? Agora não adianta reclamar’. Lógico que as pessoas não vão dizer isso para o paciente jamais, mas em conversinhas de corredor ainda se escuta isso.” (p. 10)

EW et. al (2018)