Módulo 3 | Aula 3 Pessoas que usam álcool e outras drogas

Tópico 3

Uma dimensão adicional: a criminalização

Uma dimensão específica do consumo de substâncias psicoativas, definidas como ilícitas é a sobreposição, habitualmente conflituosa, entre as iniciativas em saúde pública e o Direito penal. Vamos analisar alguns pontos?

Em primeiro lugar, a despeito da existência de Tratados Internacionais aprovados pela maioria dos países membros das Nações Unidas (ONU), há uma série de especificidades no que é definido como legal ou ilegal em cada contexto, assim como diferentes aplicações práticas da legislação internacional e nacional. Dois exemplos opostos se referem ao caráter ilegal do consumo de álcool na maioria dos países islâmicos, onde a legislação ancorada numa interpretação estrita do Alcorão se sobrepõe, na prática, à legislação internacional.

Por outro lado, embora não haja qualquer ruptura dos EUA com relação aos Tratados internacionais, os referendos locais de cada estado da federação relativos ao caráter lícito ou não da cannabis e seus derivados se sobrepõem, na prática, a estes tratados. O cenário é absolutamente dinâmico e é extremamente difícil acompanhar as alterações das legislações locais nos 50 estados norte-americanos e territórios. Veja um mapa com os dados de 2021:

Ilustração do mapa dos Estados Unidos mostrando todos os estados com suas siglas, separados por cores onde onde azul representa locais onde a maconha é medicinalmente liberada, em verde onde é totalmente legalizada e em vermelho onde é proibida. O mapa inclui as ilhas além do continente . Acima do mapa temos a legenda com pequenos quadrados mostrando o significado de cada cor usada.
Mapa da maconha legalizada.
Fonte: oberk.com/marijuanalawsbystate

Para os interessados, há painéis atualizados das referidas legislações locais.

Numa perspectiva histórica mais ampla, o caráter lícito ou ilícito de cada substância varia e em cada contexto e momento histórico. Por exemplo, poucos sabem que a venda de ópio foi uma operação comercial inteiramente lícita, em diversos países, como a Inglaterra, e que o ópio era parte da cesta de produtos básicos de um amplo segmento da população por 8 séculos (XI-XIX)!

Material complementar

Se você quiser saber mais sobre esse assunto, sugerimos o interessantíssimo livro “Confissões de um Comedor de Ópio” (Quincey, 1982) que constitui um testemunho pessoal individual e histórico inestimável.

Algo similar aconteceu com a cocaína, que no século XIX foi amplamente utilizada por personagens ilustres, como Sigmund Freud (1856-1939) e da ficção, como Sherlock Holmes. A partir da aprovação dos Tratados internacionais no início do século XX, a cocaína e os opioides passaram a ser drogas ilícitas.

Estudos mais recentes, como os de David Nutt, do Imperial College, mostram que não há correlação objetiva entre os riscos efetivos associados às substâncias psicoativas e sua classificação tradicional por parte das agências reguladoras internacionais. Mas, segundo o autor, há pouca esperança de que normas e legislações venham a ter sintonia com os achados científicos.

A criminalização da venda e do uso de determinadas substâncias e sua inter-relação com o Direito penal tornam a sua inter-relação natural com a psicologia, as ciências sociais e a saúde pública problemática. Uma questão definida de forma consensual por essas áreas e que deveria focar nos indivíduos, suas famílias e comunidade, acaba por ficar sob o olhar da Justiça e da Segurança Pública.

Para refletir...

Não resta dúvida de que qualquer mercadoria ou bem (commodity) definido como ilícito e para o qual existe alguma demanda, dá lugar a um mercado que supre essa necessidade, com uma oferta dos referidos produtos. Em se tratando de um mercado de produtos definidos de antemão como ilícitos, não existe a possibilidade de criar um mercado lícito sem que as normas sejam alteradas.

As políticas de drogas de países com políticas econômicas liberais, acopladas a elementos do denominado “Estado de Bem-Estar Social”, como a Suécia, estão fortemente ancoradas no Direito Penal e na criminalização do uso. Isto resulta no encarceramento de pessoas que usam drogas ilícitas. Este nó conceitual e político está muito longe de ser desatado. A política sueca segue sendo balizada pela denominada “tolerância zero” e pelo conceito de que o usuário deve ser objeto de “reabilitação total”, amplamente discutido em fóruns internacionais.

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Embora longe da ideia de um Estado de Bem-Estar Social, a política de drogas brasileira, até recentemente mais branda e orientada por metas mais realistas do que a sueca, nos últimos anos procura seguir o mesmo modelo híbrido. Qual seja, na contramão da crença na eficiência dos mercados na resolução dos problemas econômicos, delega-se à intervenção do Direito Penal e do aparelho jurídico-policial e do encarceramento o equacionamento do mercado desta “commodity” que são as drogas. Resumindo, convivem de forma pouco harmônica, ações na esfera da saúde pública, uma política econômica de corte supostamente neoliberal e políticas de drogas cuja matriz é o Direito Penal.

Abstraindo os efeitos macropolíticos, devido à sua extrema complexidade, a exigir livros inteiros, como o referido livro de Bruce Alexander, cabe observar que na dimensão individual e microssocial a coexistência de normas inconsistentes entre si, e especialmente explicitamente contrapostas, promovem, na esfera psíquica o que o antropólogo e filósofo Gregory Bateson (1904-1980) denominou “estrutura de duplo vínculo”, que, à época (anos 1950) associou à gênese da esquizofrenia, mas, que numa vertente ampliada, vem sendo tematizada no campo do tratamento e prevenção do uso prejudicial e dependente de drogas.

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Numa vertente que combina a psique dos indivíduos e seu entorno social, cabe observar que tais conflitos e mensagens contrapostas alimentam o estigma e a marginalização, ao subtraírem aos indivíduos a sua autoestima e sua capacidade de interação cotidiana em sociedade. Não por acaso, um dos mais perspicazes analistas do conceito de estigma, o sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982) é autor de duas obras clássicas, justamente denominadas “Estigma: Notas sobre a manipulação de identidade deteriorada” (ed. LTC, 1981) e “Representação do Eu na Vida Cotidiana” (ed. Vozes, 2014).