Módulo 3 | Aula 3 Pessoas que usam álcool e outras drogas
Populações marginalizadas e assistência e cuidado em saúde
Do ponto de vista dos profissionais de saúde, as populações marginalizadas e estigmatizadas, que incluem pessoas que fazem uso abusivo de drogas, interagem muito menos do que seria desejável com o sistema de saúde. Obviamente, os possíveis usuários dos serviços têm sua própria opinião sobre isso, ou nem se preocupam com a questão, a não ser em casos de emergência.
Na verdade, é fácil compreender essa interação baixa e pouco regular. Como você tem aprendido ao longo deste curso, o preconceito e as atitudes de discriminação explícitas ou implícitas, ou tão somente a “percepção” por parte das populações vulneráveis de possíveis preconceitos e discriminação fazem com que pacientes e profissionais e serviços interajam, com relativa frequência, de forma problemática, e por vezes mesmo conflituosa.
É importante tentar distinguir a percepção de ações potencialmente estigmatizantes e a sua eventual concretização. Dos inúmeros desdobramentos no cuidado em saúde, tematizaremos três questões relevantes:
Cada vivência que experimentamos tem lugar nas nossas trajetórias de vida, ou seja, ficam guardadas em nossas memórias de forma consciente ou não. Por isso, devemos ter muito cuidado ao lidar com o outro, pois pode ser que alguma ação (aparentemente sem importância) que você realize, junto com alguma vivência anterior da pessoa (que pode ter sido desagradável, hostil ou traumática) pode desencadear uma reação inesperada.
Poucos profissionais de saúde estão atentos a isso, e frequentemente, se surpreendem com reações que julgam injustificadas, despropositadas e inexplicáveis por parte dos usuários.
E como essa questão pode ser resolvida, como conhecer melhor os usuários do sistema de saúde? Uma anamnese (história médica e relatos similares) bem-feita permite que você compreenda melhor, ao menos parcialmente, as possíveis associações entre ações atuais e experiências anteriores.
Infelizmente, sob a pressão do dia a dia e com uma clientela quase sempre numerosa e com diferentes problemas de saúde e sociais, realizar uma anamnese mais profunda é raro, pois as interações profissionais de saúde/clientela tendem a ser breves, incompletas e guiadas pelas situações mais evidentes.
Um estudo, realizado por pesquisadores norte-americanos e da Fiocruz, mostrou que grande parte de usuários de um serviço de referência não havia respondido a questões definidas como básicas em Manuais da OMS, referentes à operação de serviços. Igualmente não havia recebido aconselhamento em relação a questões simples e não foram perguntados quanto a seu consumo de álcool, tampouco sobre o uso sistemático de preservativos.
Para mais informações, ver: Finocchario Kessler, S; Bastos, F; Malta, M; Bertoni, N; Hanif, H; Kerrigan, D. HHIV+ Men Need Reproductive Counseling Too: Assessing Childbearing Goals and Provider Communication Among HIV+ Male Patients in Rio de Janeiro, Brazil Aids Patient Care and STDs; 28 (5), 2014).
Outra pesquisa com profissionais de saúde que atuam na prevenção e tratamento da sífilis congênita, realizada em maternidades do Piauí por pesquisadores brasileiros, concluiu que uma fração substancial desses profissionais não tinha conhecimento dos Manuais do próprio Ministério da Saúde ou sabia da existência dos referidos manuais, mas não os consultava.
Para mais informações, ver: Dos Santos R; Niquini RP; Bastos FI; Domingues RM. Diagnostic and Therapeutic Knowledge and Practices in the Management of Congenital Syphilis by Pediatricians in Public Maternity Hospitals in Brazil. Int J Health Serv. 2019 Apr;49(2):322-342.
Estas são questões centrais que estão relacionadas com a importância de como fatos passados podem influenciar em reações e atitudes no presente. Como exemplo histórico, podemos indicar o livro “Memória e Sociedade” (1979), de Ecléa Bosi, sobre a história de vida de um grupo de idosos de São Paulo. Pinçando vivências e lembranças, todos os idosos entrevistados se recordam vivamente da então denominada “gripe espanhola”, em torno de 1918.
É extremamente interessante comparar e contrastar a reação de indivíduos, famílias e da sociedade de um modo geral a duas grandes epidemias (a “gripe espanhola”, em torno de 1918) e a pandemia pelo COVID, mais de um século depois.
Uma segunda dimensão central é a memória, que não é um “arquivo passivo”, a ser “consultado” pelo indivíduo quando desejar, ela é na verdade um processo ativo, repleto de lacunas (esquecimento, memórias inacessíveis à consciência) e permanentemente reconstituído, com base em lembranças de alguma forma correlatas (nem sempre clara para o observador externo), fragmentos imaginários e até mesmo conteúdos aparentemente desconexos.
Praticamente todos os livros, filmes e mesmo canções se referem à memória a partir de uma vertente exclusivamente retrospectiva. O modo como memórias interagem com situações presentes é surpreendente. Nesse sentido, mesmo uma anamnese extremamente detalhada não é capaz de captar essas sutilezas. O eminente neurocientista argentino, radicado no Brasil, Ivan Izquierdo, falecido em 2021, tem livros e palestras esclarecedoras sobre o tema.
Assista ao vídeo "A arte de esquecer".
Fonte: Youtube.com
Cabe lembrar que pessoas que fizeram uso prolongado e intenso de substâncias psicoativas experimentaram uma interação contínua ou intermitente dessas substâncias ou seus derivados com o sistema nervoso central. Não há como ignorar esses efeitos sobre a memória, que pode ser moderado, mas também grave e profundo, como na síndrome da encefalopatia de Wernicke e da síndrome de Korsakoff (WK). Relativamente frequente entre alcoolistas crônicos, que, geralmente, se alimentam de forma inadequada e têm deficiência de tiamina (vitamina B1), a síndrome de WK representa o extremo de uma gama de alterações da memória, atenção e cognição.
A imensa maioria dos clínicos não incorpora uma avaliação dessas dimensões entre usuários de longa duração e maior intensidade de psicoativos e costumam propor esquemas terapêuticos que eles são incapazes de cumprir, mesmo em relação ao agendamento das consultas.
Uma constatação, que pode parecer óbvia, mas é habitualmente ignorada na assistência, é o fato de que o estigma e a marginalização não são fenômenos exclusivamente externos, ou seja, eles não deixam de fazer parte da vida atual dos usuários, mesmo que eles não estejam mais presentes nesse contexto. Para alguns, as leis que estigmatizam e criminalizam determinados hábitos são habitualmente “internalizadas” pelas pessoas.
Na verdade, trata-se de uma dinâmica circular: movimentos sociais, como o da temperança. A temperança é, basicamente, sujeita à ideia de que substâncias seriam “predadores”, prontos a fazerem vítimas dentre seus usuários (daí a denominação de “demon drugs”, de óbvia ressonância moral e religiosa), portanto, caberia evitá-las, por todos os meios, inclusive legais. Um movimento social se impôs à sociedade norte-americana da época, levando à Emenda Constitucional de número 18, de 1919.
Um exemplo marcante e historicamente raro foi a supressão da denominada Lei Seca, que criminalizou a venda e consumo de álcool nos EUA, nas décadas de 1920 e 1930. Há centenas de livros e filmes sobre o tema.
Após uma década de sua vigência e implementação, novas gerações, que jamais vivenciaram esse período, podem internalizar esses conceitos e valores.
Transcorrido mais de um século, conceitos e políticas derivadas do Movimento da Temperança continuam presentes em diversos segmentos sociais, não necessariamente numa vertente moral ou religiosa. A ideia, amplamente difundida, de que existiriam determinadas substâncias que determinariam quadros instantâneos de dependência, está ancorada nesses conceitos seculares. No Brasil, tal papel imaginário, uma vez que em contraposição à natureza processual da habituação, tolerância e dependência, amplamente respaldada pelas neurociências e pela psicologia contemporâneas, tem sido habitualmente associado ao crack, nos EUA, mais recentemente, à anfetamina fumável denominada “Crystal” e ao opioide sintético fentanil.
Sobre esse assunto indicamos assistir ao clássico “Era uma Vez na América”, que combina um filme policial, uma narrativa histórica de caráter épico e o desenvolvimento de diversos temas psicológicos e culturais.
Hoje, inúmeros estudos mostram a correlação entre tais vivências internalizadas e quadros de estresse crônico e mesmo de doenças. Uma das doenças analisadas sob esta perspectiva é a hipertensão arterial, que por razões biológicas (e.g. genéticas), hábitos (e.g. alimentares) e fatores culturais e sociais, é mais frequente entre americanos negros do que brancos. Esta é uma vertente bastante explorada pela epidemiologia e sociologia contemporâneas. Neste caso, trata-se do conceito de racismo estrutural internalizado.
A questão do racismo será bastante discutida no Módulo 4 deste curso, na aula sobre População Negra.
Na verdade, é possível internalizar quaisquer formas de preconceito e estigma, num amplo repertório que inclui a clássica síndrome de Estocolmo, em que pessoas submetidas à tortura por longos períodos, acabam, paradoxalmente, a desenvolver laços de proximidade e mesmo afeto com seus agressores. Mais recentemente, tem sido explorado o conceito de homofobia internalizada, ou seja, a incorporação, por parte de pessoas que demonstram afeto e mantêm relações com pessoas do mesmo sexo, com valores que, implícita ou explicitamente, condenam exatamente essas práticas. Tais quadros podem se mostrar associados a uma sensação de baixa autoestima, repulsa e mesmo ódio que essas pessoas podem dirigir a si mesmas e seus parceiros, podendo evoluir para quadros graves de depressão e mesmo suicídio!
As inter-relações entre estigmatização, marginalização e criminalização do uso de substâncias psicoativas são mais complexas e difíceis de mensurar, seja pela variabilidade dos seus usuários (dos experimentadores ocasionais aos quadros de dependência), contextos, substâncias, legislações e sua aplicação no dia a dia, e mesmo da ação das próprias substâncias sobre o psiquismo.
Tentar destrinchar as inter-relações entre fatores diversos, individuais e contextuais não é tarefa simples, mas isso não deve se transformar na justificativa para a inércia e negligência que, infelizmente, ouvimos com frequência: “isso é complicado demais, melhor ignorar!”.