Módulo 3 | Aula 3 Pessoas que usam álcool e outras drogas
Conceitos básicos sobre as drogas e sua utilização histórica e atual
O consumo de substâncias psicoativas é muito antigo e diversificado como a história da humanidade. Nas últimas décadas houve uma alteração profunda no mercado global e nos padrões de consumo de substâncias psicoativas, pois os contextos de drogas mudam ao longo do tempo e do espaço. Isso pode ser observado nas edições anuais do World Drug Report, do sistema ONU.
Aqui no Brasil, nas últimas décadas houve uma profunda alteração dos contextos e padrões de consumo, com o predomínio de formas não injetáveis de autoadministração, como no caso do crack e similares, derivados da pasta base da coca/cocaína, que são, basicamente, substâncias fumadas. Embora seja possível macerar e injetar pedras de crack, tal prática é pouco comum.
No Brasil é fácil entender a dinâmica dos mercados e do padrão de consumo das mais diversas substâncias. Uma visão mais refinada é discutida de forma detalhada no livro de Bruce Alexander (disponível em parte no seu site como conteúdo gratuito). Segundo o autor canadense, a dinâmica não se dá entre substâncias, mas sim entre modalidades de vícios, das quais o uso de substâncias corresponde a uma fração. Esta fração é cada vez menos expressiva, frente aos vícios massivos a jogos on-line ou não, a formas compulsivas de lidar com o consumo (frequentemente supérfluo), o sexo e mesmo as relações de trabalho.
Em países de renda média e elevada observa-se uma redução substancial do uso de todas as substâncias psicoativas por via injetável, fenômeno este que não é observado em países de renda mais baixa e regiões de conflito. Uma visão, bastante parcial, desta dinâmica, é que nos países com uma situação mais estável e algum grau de acesso aos bens e direitos mais básicos, a população se mostrou sensível à ameaça posta pela disseminação do HIV (vírus da Aids) e diversas outras infecções e agravos (por exemplo, inflamações locais como as flebites e suas eventuais consequências para todo o organismo, como as embolias). Já nos países em situação mais difícil, devido à escassez de bens e serviços, por razões sociais e econômicas, por vezes somadas a conflitos e guerras, há tantas ameaças concretas e imediatas, que a disseminação de hábitos menos arriscados é pouco disseminada, seja pelos órgãos técnicos, seja pela divulgação boca a boca entre os próprios usuários de drogas.
Em países de maior poder aquisitivo, como Estados Unidos, Canadá e países da Europa Ocidental, existe um mercado muito diversificado, onde surgiram com força as drogas sintéticas como, por exemplo, os comprimidos de ecstasy, por vezes classificadas como substâncias “enteógenas”, ou seja, capazes de alterar a consciência, a percepção e, em alguns casos, induzir alucinações.
Mais recentemente, um opioide sintético passou a dominar a cena de uso norte-americana e de outros países de renda elevada e alta capacidade de síntese farmacológica de substâncias complexas via mercados informais e ilícitos. Nenhuma substância tem-se difundido de forma tão acelerada e lesiva como o fentanil, um opioide sintético de alta potência (informações detalhadas e baseadas em evidências científicas estão disponíveis aqui.
Diversas preparações, hoje disponíveis dos mercados ilícitos são originalmente de uso médico, mas acabam por entrar no mercado paralelo, por meio de desvios, vendas fraudulentas, roubos, etc. Em diversos países observa-se um florescente mercado ilícito, que se tornou independente do mercado propriamente terapêutico. Como por exemplo o desvio maciço de um medicamento utilizado na terapia de substituição da dependência à heroína, a metadona. Essa substância, a princípio de uso estritamente terapêutico, ganhou as ruas, atraindo tanto facções criminosas como potenciais consumidores (informações detalhadas estão disponíveis aqui).
De um modo geral, essas substâncias “desviadas” encontram um mercado receptivo entre populações empobrecidas, minorias étnicas dado o seu baixo custo e fácil acesso. Curiosamente, ao serem usados com finalidade e de modos inteiramente diversos dos originalmente propostos, acabam por aumentar (ao invés de reduzir, como era seu propósito original) a disseminação das mais diversas infecções de transmissão sanguínea e sexual. Em primeiro lugar, por uma forma de utilização em absoluta oposição ao que consta das respectivas bulas, e, em segundo lugar, porque, em se tratando, originalmente, de medicamentos, têm sua imagem associada à saúde e a uma suposta proteção contra diferentes infecções e doenças, transmissíveis ou não.
No Brasil o uso, terapêutico ou não, da metadona não tem maior relevância, dada a sua escassa presença no mercado brasileiro. Por outro lado, o uso não terapêutico de diversos compostos esteroides, especialmente os assim denominados “anabolizantes esteroides” tem uso cada vez mais frequente, e sua difusão e danos e riscos associados tem sido abordado por excelentes pesquisas brasileiras (ver, por exemplo, informações básicas na BVS do Ministério da Saúde e artigos como o de Iriart e Andrade).
Uso de drogas e práticas sexuais
Embora alterações globais do funcionamento de cérebro tenham evidentes implicações sobre uma gama de comportamentos e práticas, inclusive sexuais, a análise de possíveis associações entre, por exemplo, alterações sensoriais globais e práticas sexuais de risco é mediada por diversos e complexos fatores que não têm uma dimensão prática em saúde pública. Não existem estudos que correlacionem alterações globais de consciência e dos sentidos e alterações mensuráveis de comportamentos e práticas sexuais.
O uso simultâneo e combinado de um número de substâncias, em especial no contexto de interações sexuais coletivas, como festas, denominado “chemsex”, torna algumas associações tão emaranhadas, que não há como singularizá-las; pois o uso é, de fato, combinado e tem efeitos necessariamente mistos e complexos.
O uso concomitante de substâncias psicoativas e práticas sexuais tem uma história muito longa e diversificada, já desde os antigos gregos. Obviamente há inúmeras diferenças entre os dois contextos, dentre elas:
No mundo grego o consumo de bebidas alcoólicas, como nas festas em homenagem ao Deus Baco ocorriam de forma ritualizada e quase sempre associada a festivais ou, em outras ocasiões a longos debates denominados Simpósios, em que se conjugavam banquetes, refinados debates intelectuais, o consumo do álcool e o sexo (a excelente Antologia denominada “Elegia Grega Arcaica”, com textos cuidadosamente traduzidos do grego clássico documenta esses eventos de forma muito cuidadosa.
O repertório de substâncias psicoativas, todas elas naturais (sequer havia o conceito de drogas sintéticas) era bastante reduzido, basicamente álcool e algumas plantas alucinógenas consumidas “in natura”. O conceito moderno de risco não existia. Obviamente, isso não quer dizer que os participantes não pudessem eventualmente passar mal ou mesmo vir a morrer em decorrência dos excessos, o que é amplamente documentado na literatura clássica. Mas todo o repertório semântico derivado do conceito de “risco” inexistia, assim como conceitos associados, tais como danos ou mesmo o conceito de “doenças transmissíveis”.
Os conceitos de sexualidade, clássica e contemporânea, são inteiramente diversos. Há inúmeras obras sobre o tema, mas a simples leitura da Antologia mencionada já é bastante esclarecedora.
Portanto, ainda que exista um vasto repositório, o conceito de chemsex só é pensável no contexto de uma sociedade que eliminou os ritos originários, assim como seus deuses e respectivos valores, na presença de uma sexualidade em transformação e sob o efeito de um conjunto de substâncias, em sua maioria sintéticas, utilizadas com frequência de forma combinada.
Agora, pensando de uma maneira mais ampla sobre o consumo de drogas em qualquer contexto, é possível afirmar que a sociedade contemporânea terá de lidar com uma combinação de fatores diversos, e inteiramente diferentes dos conceitos clássicos. Trata-se de tarefa extremamente desafiadora, mas possível.
É possível debater e propor um conjunto de propostas objetivas, tanto na esfera individual e microssocial, como no que diz respeito ao conjunto da sociedade. Novamente as profundas reflexões de Bruce Alexander (op. cit.) oferecem excelentes pistas e sugestões concretas. No Seminário Internacional Drogas e Dependências: Paradigmas e Controvérsias, Bruce afirmou que não se deve restringir apenas à perspectiva neuroquímica na tentativa de entender o fenômeno da dependência. Para ele, é fundamental entender o contexto em que os sujeitos estão inseridos para entender sua relação de dependência com qualquer coisa.
Leia o artigo sobre o Seminário Internacional Drogas e Dependências: Paradigmas e Controvérsias na íntegra aqui.