Módulo 3 Fatores físicos e sociais que contribuem para a manutenção e dispersão da doençax
Aula 2
Processo de urbanização
Desde a década de 1930, o Brasil experimenta uma grande expansão urbana, acompanhada de mudanças profundas na sociedade e na economia. Essa expansão nas cidades brasileiras não seguiu um planejamento adequado. Em vez disso, prevaleceu um crescimento desorganizado nas periferias, com muitos loteamentos ilegais, construções improvisadas e habitações populares distantes do centro urbano.
Exemplos disso são as "ilhas de produtividade" que surgiram em várias partes do Brasil. Essas áreas industriais atraíram muitos trabalhadores e incentivaram a migração. Isso ajudou a absorver a população migrante e a promover o retorno de pessoas que tinham saído do Sudeste.
A urbanização no Brasil é frequentemente chamada de "desigual". Há áreas ricas e bem planejadas convivendo com áreas pobres e precárias. Nas regiões mais desfavorecidas, as condições de moradia são ruins, com aumento significativo das favelas e degradação ambiental. As ocupações ilegais e construções em áreas ambientalmente frágeis criam sérios problemas sociais e de saúde pública.
Pesquisas indicam que a pobreza e o ambiente degradado têm um impacto direto na saúde, ou seja, indivíduos pobres vivendo em ambientes degradados têm pior saúde do que indivíduos pobres vivendo em ambientes melhores. No Brasil, a elevada desigualdade na distribuição de renda e no acesso aos recursos de saúde, ao saneamento básico, à educação e a outros constituintes do padrão de vida da população, têm resultado em diferenças no risco de adoecer, e de morte dos diversos estratos sociais.
Doenças como a leishmaniose visceral, que eram consideradas rurais, agora também afetam as áreas urbanas. Isso se deve às condições precárias de vida nas periferias e à conexão dessas áreas com o campo. Desde a década de 1970, a falta de políticas econômicas e sociais eficazes têm contribuído para essa mudança, trazendo doenças antes comuns no campo para as cidades.
As populações das periferias são as mais impactadas pelas doenças transmissíveis. A urbanização desordenada aumenta a incidência e facilita a propagação dessas doenças. As leishmanioses, por exemplo, são agora comuns em várias cidades brasileiras.
A ação humana nos ecossistemas cria ambientes mais vulneráveis a doenças. Áreas urbanas degradadas, com lixo e esgoto (Figura 27), proporcionam condições ideais para a proliferação de vetores de doenças. As leishmanioses têm uma dinâmica complexa, influenciada por fatores ambientais e pelo comportamento humano. Ações humanas nos habitats dos vetores e movimentos populacionais contribuem para a mudança no cenário epidemiológico dessas doenças.

A urbanização e a pobreza estão diretamente ligadas ao aumento da leishmaniose visceral (LV) nas cidades. De forma semelhante, as cidades experimentam hoje duas situações epidêmicas que caracterizam principalmente a LV, a epidemia humana e a epidemia canina.
O processo de urbanização da LV é uma das mais notáveis e intrigantes transformações epidemiológicas já registradas no Brasil. Em se tratando de um fenômeno gradual, a sua demarcação temporal não pode ser exata, mas já se vão mais de quatro décadas, desde que as primeiras grandes epidemias urbanas de LV foram registradas no país. A leishmaniose visceral, que historicamente era reconhecida como uma endemia rural, de ocorrência focal em paisagens denominadas de pé-de-serra e boqueirões, atualmente tem um outro perfil.
A urbanização e a pobreza estão diretamente ligadas ao aumento da leishmaniose visceral (LV) nas cidades. A LV, antes típica de áreas rurais com vegetação e animais silvestres, está se tornando uma doença urbana devido ao desmatamento, migração e condições sanitárias inadequadas.
Desde os anos 1980, a urbanização da LV é uma transformação notável no Brasil. A doença, que era comum em áreas rurais específicas, agora afeta as áreas urbanas.
A urbanização influencia fatores como o aumento do desmatamento, a existência de moradias precárias, a alta densidade populacional e a desigualdade socioeconômica.
Em muitas áreas urbanas, as pessoas mantêm hábitos rurais, como criar animais próximos às suas casas. Isso contribui para a permanência do vetor da doença, o flebotomíneo, devido às condições favoráveis para sua proliferação. Antes, era fácil distinguir entre áreas urbanas e rurais. Hoje, com o avanço da urbanização, essa separação não é clara. Periferias que antes eram rurais agora são partes das grandes cidades.
A introdução da LV nas cidades exige novos métodos para vigilância e controle. O Programa Nacional de Controle da LV no Brasil se baseia em três medidas principais: (1) detectar e tratar casos humanos, (2) controlar os cães infectados, e (3) controlar os vetores. No entanto, essas medidas não têm sido suficientes para deter a expansão da LV.
A urbanização altera profundamente a relação entre o vetor, os reservatórios silvestres e os cães. Cães infectados são os principais reservatórios da L. infantum no ambiente urbano, com taxas de infecção superiores a 60% em algumas áreas. O papel do cão é crucial porque a alta carga parasitária em sua pele facilita a infecção pelos flebotomíneos adaptados às áreas urbanas.
A negligência do poder público em melhorar as condições de vida da população agrava a urbanização da leishmaniose. O crescimento desordenado, a pobreza e a migração contínua aumentam o risco de expansão da doença para novas áreas e cidades.
Conceitos como a "heterogeneidade estrutural" (Possas, 1989) e a "polarização epidemiológica" tentam descrever a persistência ou o ressurgimento de doenças em novas formas. No Brasil, tanto "velhas" quanto "novas" doenças coexistem, retratando as desigualdades sociais e a exploração descontrolada da natureza.
As altas densidades populacionais, a proximidade entre as habitações e a grande suscetibilidade da população e dos cães contribuem para a expansão da LV nas cidades. Isso nos leva a discutir a complexidade e a mudança no comportamento epidemiológico da doença no ambiente urbano.
Pense sobre como o processo de urbanização pode interferir no agravamento das leishmanioses no seu município!
Mudança de hábito dos vetores e reservatórios das leishmanioses
As leishmanioses são consideradas as mais complexas e heterogêneas de todas as doenças transmitidas por vetores, especialmente na sua ecoepidemiologia, envolvendo 21 espécies de parasitos, inúmeras espécies de reservatórios e aproximadamente 30 espécies de flebotomíneos comprovadamente vetores de Leishmania spp. A transmissão dessas doenças ocorre através de diferentes espécies de flebotomíneos, que se conectam com parasitos e reservatórios, formando ciclos de transmissão variados em todo o território nacional. Nas últimas décadas, houve mudanças significativas no padrão epidemiológico das leishmanioses.
Diversos fatores contribuem para a expansão das leishmanioses no meio urbano, como a proximidade entre as habitações, a alta densidade populacional e a grande suscetibilidade da população à infecção. Esses aspectos estão relacionados ao processo de expansão geográfica e urbanização das leishmanioses, discutindo a complexidade e as mudança comportamentais na ecoepidemiologia da doença.
Alterações ambientais, naturais ou causadas pelo homem, aceleram a mudança nos hábitos dos vetores e dos hospedeiros, permitindo que os parasitos se espalhem para novas áreas e infectando novos hospedeiros (Figura 28) Esses novos hospedeiros podem ampliar a área de ocorrência das espécies de parasitos em questão. As leishmanioses são especialmente relevantes devido à capacidade dos parasitos de infectar diversas espécies hospedeiras. Isso inclui algumas espécies do gênero Leishmania, como L. infantum (=L. chagasi), L. braziliensis e L. amazonensis, que são de grande importância para a saúde pública nas Américas.

A grande diversidade genética e biológica dos tripanossomatídeos, que podem infectar diversas ordens de mamíferos, resulta em ciclos de transmissão com características regionais específicas. Isso contribui para uma epidemiologia complexa e peculiar nas áreas de sua ocorrência.
A ecoepidemiologia das leishmanioses é complexa no seu ciclo enzoótico (permanentemente presente naquela região) e tem como consequência o desconhecimento de muitos aspectos deste ciclo. Essa complexidade aumenta ainda mais durante o processo de urbanização das leishmanioses, devido aos graves problemas sanitários que representam. Isso impõe a necessidade urgente de compreender completamente os elos da cadeia epidemiológica em todos os níveis, como pré-requisito para definir estratégias de controle efetivas (Rotureau, 2006; Tesh, 1995; Shaw, 2007).
As características epidemiológicas e padrões de infecção variam significativamente de uma região para outra, devido aos diferentes padrões ecológicos das áreas afetadas. Isso inclui variações na vegetação, clima, diversidade e abundância de espécies de animais silvestres, além de fatores demográficos como migração de pessoas e animais domésticos. Mudança no hábitat original, causada por fenômenos naturais ou por ação humana (como o crescimento das cidades e a expansão das atividades agrícolas), também influenciam esses padrões. Outros fatores como hábitos alimentares dos vetores, condição socioeconômica e cultural da população, diferentes subpopulações de parasitos e espécies de vetores e presença ou ausência de hospedeiros e reservatórios (domésticos e/ou silvestres).
Espécies de flebotomíneos antes encontradas em ambientes silvestres, agora são frequentemente observadas em áreas urbanas e periurbanas, além das áreas florestais. Isso demonstra a capacidade de adaptação do vetor às mudanças ambientais causadas pela atividade humana. Eles colonizam uma variedade de condições ecológicas, que facilita sua disseminação e adaptação ao redor de áreas habitadas por seres humanos, aumentando assim o risco de transmissão da doença. Além disso, esses flebotomíneos são vistos se alimentando em diversas espécies de vertebrados, como bois, macacos, porcos e galinhas.
Reflita sobre quais os fatores contribuem para a expansão das leishmanioses em centros urbanos!
Sinantropia – aproximação do homem
Estudos mostram que o parasito Leishmania sp. pode infectar diversas espécies de mamíferos domésticos e de vida livre, pertencentes a diversas famílias. No entanto, o cão doméstico é considerado o principal reservatório da leishmaniose visceral nas áreas urbanas do Brasil.
Ao longo da história, o processo de urbanização causou diversas mudanças ambientais que facilitaram a aproximação entre humanos e outros animais. Esse fenômeno é conhecido como sinantropia. A sinantropia refere-se à capacidade de alguns animais se adaptarem ao ambiente urbano, tornando-se frequentemente pragas. Esses animais encontram nos ambientes urbanos tudo o que precisam para sobreviver, como abrigo, alimento e água, e se beneficiam das condições criadas pelas atividades humanas.
Com a transformação de ambientes naturais em áreas urbanas e rurais, muitas espécies nativas são extintas, mas algumas conseguem se adaptar às novas condições. Essas espécies, chamadas sinantrópicas, colonizam áreas habitadas por humanos e se beneficiam do material orgânico acumulado, da disponibilidade de alimentos e da água.
Estudos mostram que os flebotomíneos têm se adaptado a ambientes urbanos, especialmente nas periferias de grandes cidades. Esses insetos podem ser encontrados tanto no peridomicílio, em galinheiros, chiqueiro, canil, paiol, entre outros ambientes, quanto dentro de casa. A presença de animais silvestres, sinantrópicos (silvestres que acabam por se adaptar a viver em ambientes urbanos) e domésticos perto de residências humanas, aumenta o risco de transmissão da Leishmania spp.
Em áreas rurais, as raposas e outros mamíferos, como os marsupiais e roedores, também atuam como reservatórios naturais das leishmanioses. Essas raposas podem ser infectadas ao procurar alimento em ambientes próximos a moradias onde a doença já está presente. Devido aos seus hábitos migratórios, as raposas têm o potencial de introduzir a Leishmania em áreas distantes, o que é epidemiologicamente significativo.
Vários fatores influenciam a transmissão das leishmanioses, incluindo:
- Distribuição dos insetos vetores: onde os flebotomíneos estão presentes;
- Abundância da espécie: o número de flebotomíneos em uma área;
- Hábitos alimentares dos insetos: preferem se alimentar de animais, humanos ou ambos;
- Concordância gonotrófica: necessidade de múltiplas refeições de sangue para reprodução;
- Suscetibilidade à infecção: quão facilmente a espécie de flebotomíneo pode ser infectada pela Leishmania;
- Capacidade de adaptação aos ambientes humanos (sinantropia): como os flebotomíneos e outros animais se adaptam aos ambientes modificados pelo homem.
Entender esses fatores é essencial para desenvolver estratégias eficazes de controle e prevenção da doença.
Pense sobre as espécies sinantrópicas que você já encontrou na sua residência e/ou no bairro onde você mora!