Módulo 1 | Aula 1 Políticas de Saúde no Brasil e Reforma Sanitária: a luta pelo direito à saúde
A luta pela democratização da saúde
Ao lado da medicina previdenciária, que privilegiava a assistência individual num modelo hospitalocêntrico, isto é, centrado nos hospitais, as ações de saúde pública desenvolvidas para a atenção coletiva ocorriam por meio de campanhas sanitárias. Esta separação entre ações coletivas da saúde pública e assistência individual da medicina previdenciária não beneficiava o desenvolvimento de um sistema de saúde integrado e que atuasse de forma a garantir o bem-estar da população.
Os maiores investimentos no desenvolvimento da medicina previdenciária em detrimento da saúde pública nas décadas de 1960 e 1970 só fez crescer o mercado privado do setor, com baixos investimentos na estruturação de serviços públicos de saúde.
Como a mão-de-obra no trabalho formal por muito tempo se concentrou em grandes centros, houve maior criação de serviços de saúde nas regiões mais urbanizadas, enquanto outras, particularmente no interior dos estados do Norte, Centro-Oeste e Nordeste, viviam verdadeiros “vazios assistenciais”.
Em resumo, nas décadas de 70 e 80 tínhamos um sistema de saúde insuficiente, inadequado, desordenado, ineficaz e injusto, mal distribuído entre as regiões do país. Esta situação de crise e as desigualdades nas condições de saúde e de acesso a ações e serviços de saúde foi alimentando a luta da sociedade pela democratização da saúde.
Desde a Segunda Guerra Mundial também foi crescendo o debate internacional sobre a importância do fortalecimento das políticas sociais que garantissem o bem-estar da população. Assim, em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos que afirma o direito à saúde como um direito social de todos:
Artigo 25: 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
Neste mesmo ano, foi criada a Organização Mundial da Saúde (OMS) para cuidar de questões relacionadas à saúde global. Para a OMS, a saúde é definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade.
Com esta ampliação do conceito de saúde, a OMS propõe que o desenvolvimento do sistema de saúde não se restrinja ao enfrentamento de doenças, mas envolva também a promoção da saúde da população como um todo.
Na verdade, os avanços científicos foram demonstrando que a saúde é impactada por um conjunto de fatores sociais, econômicos, culturais, étnico/raciais, psicológicos e comportamentais, os chamados determinantes sociais da saúde. Isso quer dizer que os problemas de saúde e fatores de risco estão relacionados com dimensões estruturais da nossa sociedade, como as condições sociais e econômicas. Portanto, as ações de saúde não devem se restringir ao indivíduo, mas exigem respostas da sociedade como um todo e do poder público.
Meu corpo, meu mundo:
Este vídeo é uma animação que reflete sobre a noção de saúde e doença e enfatiza que toda vida na Terra está interligada e que o processo saúde-doença (contextos que envolvem o adoecer e o estar saudável) é resultante do modo como nos organizamos neste mundo.
Fonte: Youtube VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz.
Outro destaque no plano internacional que contribuiu para os debates sobre a mudança das formas de organização da atenção à saúde foi a realização da I Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde, em Alma-Ata, no ano de 1978, que culminou na Declaração de Alma Ata.
As discussões deste encontro trouxeram críticas ao modelo biomédico e hospitalocêntrico que orientava a organização dos sistemas de saúde e o fortalecimento de serviços de Atenção Primária à Saúde.
Estes importantes marcos internacionais somados à insatisfação da sociedade brasileira com o modo como as políticas de saúde estavam sendo desenvolvidas fez surgir uma mobilização para que houvesse uma reestruturação do sistema de saúde no período de redemocratização no país após a ditadura militar. Entidades comunitárias, instituições acadêmicas, sociedades científicas, profissionais de saúde e entidades sindicais constituíram um movimento social organizado em prol da democratização da saúde. Essa mobilização ficou conhecida como o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira.
Um dos marcos deste movimento foi a 8.ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, quando pela primeira vez se envolveu a participação da sociedade civil nessa instância. Todas as conferências anteriores eram realizadas somente entre o Ministério da Saúde, outros setores do próprio governo e com especialistas convidados.
O Movimento da Reforma Sanitária estimulou a participação popular e de movimentos sociais, realizando pré-conferências estaduais e municipais de modo que os cidadãos pudessem discutir os temas que seriam debatidos no encontro nacional. Além disso, foram eleitos 1.000 delegados de todo o país nestas etapas que representariam a população em Brasília, sendo a primeira edição com a participação do povo brasileiro.
Dentre os segmentos sociais envolvidos nas mobilizações desta conferência, estiveram os povos indígenas. Como desdobramento deste encontro, houve a 1.ª Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio que será detalhada nos módulos seguintes.
A frase “democracia é saúde” dita pelo sanitarista Sérgio Arouca no pronunciamento da abertura da 8.ª Conferência já sinalizava importantes pautas para a reforma do sistema de saúde: a necessidade de que o direito à saúde fosse universal ao invés de se restringir somente aos trabalhadores com carteira assinada, bem como a importância da participação popular na formulação, planejamento, gestão e avaliação da política de saúde.
Discurso de Sérgio Arouca na abertura da 8.ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986.
DEMOCRACIA É SAÚDE:
Neste discurso, Arouca afirma que: “é preciso uma reforma sanitária profunda em que seja garantido à população um serviço descentralizado (mais próximo das necessidades de cada um), universal (com acesso a todos os brasileiros), integral (em que todo o ciclo de vida seja beneficiado) e com controle social (a fiscalização do atendimento deve ser feito pela própria sociedade)”.
Fonte: Youtube VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz.
Os debates da conferência se deram em torno de três temas principais: “a saúde como dever do Estado e direito do cidadão”, “a reformulação do Sistema Nacional de Saúde” e “o financiamento setorial”.
O relatório final apontou o consenso em relação à formação de um sistema público único de saúde, que fosse separado da previdência. Também conclui que as mudanças necessárias para a melhoria do sistema de saúde brasileiro precisaria ser a partir da ampliação do conceito de saúde, com a política de saúde integrada às demais políticas sociais e econômicas.
Os ideais do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira e os apontamentos do Relatório Final da 8.ª Conferência Nacional de Saúde foram incorporados na nova Constituição Federal brasileira de 1988. O direito à saúde passou a ser universal e foi afirmada a concepção ampliada de saúde:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[...]
Artigo 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
- I - Descentralização, com direção única em cada esfera de governos. [No governo federal o órgão que trata das questões é o Ministério da Saúde, no governo estadual é a Secretaria Estadual de Saúde e no governo municipal é a Secretaria Municipal de Saúde];
- II - Atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
- III - Participação da comunidade.
A Constituição Federal de 1988 foi um marco para a garantia de diversos direitos sociais, sendo chamada de Constituição Cidadã exatamente por incorporar, pela primeira vez, um sistema de proteção do tipo seguridade social.
A seguridade social foi uma resposta às demandas de reestruturação da política social no Brasil, contrapondo-se à política de seguro social e à política assistencialista, na medida em que prevê uma proteção abrangente, justa, equânime e democrática.
A proposta inicial era garantir um único ministério, forte, com financiamento para estas três áreas: saúde, assistência social e previdência. Contudo, no período pós constituição, as alianças políticas foram alteradas, as forças neoliberais se intensificaram e as disputas por recursos fragilizaram a construção do ideal de uma seguridade social forte.