Unidade 1

Do Império à Primeira República: o surgimento da saúde pública​

Aula 3

O Pasteur como modelo: a transformação de Manguinhos num instituto de medicina experimental​

A partir das informações do livro Manguinhos do Sonho à Vida: a ciência na Belle Époque, de Jaime Benchimol vejamos a trajetória do Instituto de Manguinhos

Núcleo arquitetônico original de Manguinhos, 1910.
Núcleo arquitetônico original de Manguinhos, 1910.
Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz.

Já sob o novo modelo, um novo regulamento concedeu a Manguinhos maior autonomia em suas relações comerciais e administrativas com o Estado brasileiro.

O Instituto foi subordinado diretamente ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores e conquistou o direito de comercializar seus produtos e de utilizar os valores adquiridos para contratar seus profissionais. Além disso, também foi autorizado a cobrar pelos serviços prestados.

Clique nas imagens para visualizar as informações.

Oswaldo Cruz providenciou a vinda de cientistas estrangeiros com o intuito de reforçar as atividades de pesquisa no Instituto. Ao mesmo tempo,​ enviou vários de seus pesquisadores para fazer estágios de aperfeiçoamento no exterior.

Inicialmente voltado para o enfrentamento das epidemias que assolavam o Rio de Janeiro, Manguinhos, em sua nova fase, ganhou o interior do país. Por intermédio de suas expedições, o Instituto chegou aos sertões mais distantes do território brasileiro, um lugar habitado por uma gente simples e pobre, doente e largada à própria sorte pelo poder público. ​

Sob a direção de Oswaldo Cruz, Manguinhos consolidou-se como um dos mais importantes centros da medicina experimental brasileira, dedicado sobretudo às doenças tropicais. Sua inspiração era o Instituto Pasteur de Paris, um modelo assentado sobre a tríade ensino, pesquisa e produção.​

A produção ​

1900

Em outubro de 1900, o Instituto entregava os cem primeiros frascos de vacina e soro contra a peste. Logo outros produtos utilizados na imunização e no tratamento de diferentes doenças humanas e veterinárias passam a ser fabricados no Instituto.

1907

Após sete anos de trabalho a pauta de produtos fabricados por Manguinhos incluía, além dos soros e vacinas contra a peste, substâncias como a maleína, empregada no diagnóstico do mormo; a tuberculina, utilizada contra a tuberculose; os soros antidiftérico e antitetânico; a vacina anticarbunculosa; e o soro antiestreptocócico. Isso sem falar em dois produtos veterinários de grande relevância: as vacinas contra a espirilose das galinhas e contra o carbúnculo sintomático, também conhecido como “espirilose das galinhas”, “mal do ano” e “quarto inchado”.​

1908

Primeira vacina veterinária produzida no Brasil, a vacina contra a peste da manqueira foi desenvolvida por Alcides Godoy em 1907 e patenteada no ano seguinte. As receitas obtidas com a venda do profilático constituíram por muito tempo a principal fonte de renda de Manguinhos, tendo sido fundamental para a manutenção da equipe do Instituto. A descoberta da vacina esteve também ligada à inauguração, em agosto de 1906, na cidade de Belo Horizonte, da primeira filial do IOC, cuja direção foi entregue a Ezequiel Dias.​

1915

Em 1915, foram produzidas em Manguinhos mais de 1 milhão e 300 mil doses de vacina contra a peste da manqueira. No ano seguinte, a produção de soro e vacina contra a peste bubônica registrou números ainda maiores: três milhões de frascos de cada profilático.​

Quando Oswaldo Cruz deixou a direção do Instituto em 1916, o total de imunobiológicos produzidos chegava a 21 itens.

O ensino

Alunos do curso de aplicação realizado na década de 1910 tiveram aulas com o próprio Oswaldo Cruz.​
Alunos do curso de aplicação realizado na década de 1910 tiveram aulas com o próprio Oswaldo Cruz.​
Fonte: Instituto Oswaldo Cruz.

Desde o início de sua gestão como diretor do Instituto Soroterápico Federal, Oswaldo Cruz se empenhou para garantir a excelência de sua equipe de colaboradores. Tinha consciência de que era preciso dar a eles a formação e o treinamento que um verdadeiro instituto de medicina experimental requeria.

Como era o único com alguma experiência no campo da microbiologia, que adquirira durante seus estudos em Paris, assumiu ele mesmo, naqueles primeiros anos do Instituto, a tarefa de instruí-los no intrincado universo da pesquisa experimental.

Cientistas que fizeram a história da ciência no Brasil foram os primeiros professores do Curso de Aplicação.​
Cientistas que fizeram a história da ciência no Brasil foram os primeiros professores do Curso de Aplicação.​
Fonte: Instituto Oswaldo Cruz.

Com a contratação do bacteriologista Henrique da Rocha Lima em 1903, a formação dos pesquisadores ingressou em outro patamar. Diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e com especialização na Alemanha, Rocha Lima era um profissional experiente e foi o responsável por introduzir em Manguinhos o ensino da bacteriologia, da parasitologia e da anatomia e histologia patológicas.

No começo, as aulas tinham um caráter informal, mas, com a transformação do Soroterápico no Instituto Oswaldo Cruz, em 1908, foi criado o “Curso de Aplicação” do IOC.​

Na contramão do ensino praticado pelas faculdades de medicina, o Curso de Aplicação do IOC baseava-se num formato predominantemente prático e experimental.​

Número expressivo dos alunos do Curso de Aplicação era formado por estudantes que vinham ao Instituto para desenvolver suas teses de doutoramento.​

Um segundo grupo era constituído por médicos desejosos em se especializar em microbiologia.

Com o crescimento do curso e a oferta de novas disciplinas, uma clientela formada por químicos, farmacêuticos e veterinários também passou a frequentar as aulas em Manguinhos. Tornou-se comum a vinda de estudantes de outros estados e até mesmo de alguns países da América Latina.​

Saiba Mais

Depois de concluírem o curso, muitos alunos ingressavam como pesquisadores voluntários em um dos grupos de pesquisa do Instituto. Quando o orçamento permitia, alguns eram depois contratados por Manguinhos ou eram recrutados para trabalhar nos serviços públicos de saúde mantidos pela União ou pelos governos estaduais.​

“O Curso de Aplicação de Manguinhos foi a primeira experiência brasileira de pós-graduação. O Instituto foi pioneiro no ensino da microbiologia pasteuriana associada à medicina tropical e, ao combinar formação teórica e pesquisa nos laboratórios, inaugurou um novo modelo de educação no país.” ​

“Ensino” in Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz.

A pesquisa

A nomeação de Oswaldo Cruz para a chefia da DGSP em 1903, cargo que passou a acumular com a direção do Soroterápico, favoreceu a expansão e a diversificação das investigações realizadas pelos cientistas de Manguinhos, que nos primeiros anos de atividade do Instituto estiveram voltadas, prioritariamente, para o apoio às ações contra a varíola, a febre amarela e a peste bubônica.

Saiba Mais
Alunos do curso de aplicação realizado na década de 1910 tiveram aulas com o próprio Oswaldo Cruz.​
Laboratório nas antigas instalações do Instituto Soroterápico Federal.
Fonte: Instituto Oswaldo Cruz.

“Doenças como malária, tuberculose, filariose e beribéri foram incorporadas à rotina da instituição.

Com a descoberta da vacina contra a peste da manqueira por Alcides Godoy em 1907, as pesquisas veterinárias também ganhariam novo impulso, o mesmo acontecendo com a entomologia médica, cujos estudos vinham se revelando de grande importância para o desenvolvimento da medicina tropical.”

1908

A contratação de novos pesquisadores e o apoio à política de intercâmbio científico, estabelecida por Oswaldo Cruz desde o início de sua gestão, consolidaram a pesquisa biomédica como uma das bases de sustentação do Instituto ao lado da produção e do ensino. A transformação do Soroterápico no Instituto Oswaldo Cruz em 1908 foi o coroamento desse processo. Já naquele ano, Adolpho Lutz, que por mais de uma década estivera à frente do Instituto Bacteriológico de São Paulo, foi incorporado ao quadro de cientistas de Manguinhos.


Outro fato relevante do período foi a criação, em 1909, da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, até hoje um dos periódicos mais representativos da ciência brasileira.​

1909

1910

Depois de Adolpho Lutz, dois novos cientistas foram contratados para trabalhar em Manguinhos: Gaspar Viana, que assumiu a direção do setor de anatomia patológica, e José Gomes de Faria que, em 1910, descobriu o Ancylostoma braziliense, um verme nematódeo comumente encontrado no intestino de cães e gatos. ​

Muitos foram os pesquisadores de Manguinhos encaminhados por Oswaldo Cruz para estágios de aperfeiçoamento nos Estados Unidos e na Europa. Ao mesmo tempo, renomados cientistas estrangeiros vieram para o Brasil a fim de realizar pesquisas no Instituto.​

Escola de Medicina Tropical de Hamburgo​

O intercâmbio com a Alemanha foi dos mais produtivos. Stanislas Von Prowazek e Gustav Giemsa, da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo, e Max Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim, produziram em Manguinhos importantes estudos na área da entomologia médica, além de terem proporcionado aos cientistas brasileiros a oportunidade de se atualizar com as descobertas mais recentes sobre o papel dos protozoários na origem de doenças como a tripanossomíase africana, também chamada de doença do sono.​

A descoberta da doença de Chagas ​

Sob o influxo desses estudos, a medicina tropical consolidou-se em Manguinhos como um dos seus principais campos de atuação. Carlos Chagas, que no futuro se tornaria o primeiro titular da cadeira de medicina tropical na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi autor da maior contribuição do Instituto, até então, para o conhecimento das doenças infecciosas: a descoberta da tripanossomíase americana, popularmente conhecida como Doença de Chagas, um dos temas de nossa próxima aula.​

“A confluência da medicina tropical com a microbiologia em Manguinhos deu origem a um tipo de organização científica original, que articulava os interesses da lógica da produção do conhecimento com as demandas da saúde pública. Esse modelo distinguiu o Instituto Oswaldo Cruz entre as demais instituições públicas de pesquisa do país, marcando sua atuação ao longo de todo o século XX.”​

Pesquisa biomédica in Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz.

Material Complementar
  • BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos, um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992.
  • BENCHIMOL, Jayme, coord.Manguinhos do sonho à vida: a ciência na Belle Epoque s.l; Casa de Oswaldo Cruz; 1990. 248 p. ilus
  • ​CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • FERNANDES, Tânia Maria. Vacina antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens (1808-1920). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
  • SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • Sonhos Tropicais. Direção André Sturn. Brasil, 2002. 120 min. Adaptação do livro homônimo de Moacyr Scliar. Retrata a trajetória de Oswaldo Cruz e as lutas travadas pelo cientista no Rio de Janeiro no início do século XX. Destaque para as campanhas sanitárias e a Revolta da Vacina.
  • O Rio dos Trabalhadores. Direção Paulo Castiglioni e Maria Ciavatta Franco. Brasil, 2002, 20 min. Através de imagens de Augusto Malta, Marc Ferrez e outros, o documentário narra a história do Rio Janeiro nos primeiros anos do século XX, marcada pelo processo de modernização por intermédio das ações do prefeito Pereira Passos. Assista aqui.
  • A Revolta da Vacina. Direção Eduardo Vilela Thielen. Brasil, 1994. 23 min. Com esquetes teatrais e depoimentos de médicos, pesquisadores e historiadores, este documentário apresenta a história da varíola, da vacina e da revolta popular de 1904, abordando as questões sociais, políticas e culturais que envolveram a campanha de vacinação do governo de Rodrigues Alves. Assista aqui.
  • A Revolta da Vacina. Documentário produzido pela TV Senado para a série “Histórias do Brasil”. Brasil, 2007. 5 min. Assista aqui.
  • O Brasil no microscópio. Direção Eduardo Thielen e Luiz Octavio Ferreira. Brasil 1989, 21 min. A criação, em 1900, do Instituto Soroterápico Federal, hoje Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é revista com base em uma análise da conjuntura da saúde no Brasil do início do século.​
  • A Revolta que parou o Rio. Direção TV PUC RIO, Brasil, 2005, 21 min. Documentário sobre a Revolta da Vacina. Assista aqui.
  • A vacina obrigatória. Autor desconhecido. Intérprete: Mário Pinheiro. Odeon, 1904. Ouça aqui.
  • Minha viola. Noel Rosa. 1930. Ouça aqui.
  • Rato, rato, rato. Autores: Casimiro Rocha e Claudino Manoel da Costa. Intérprete: Claudino Manoel da Costa, Zon-O-Phone, 1904. Ouça aqui.
  • Febre amarela. Intérprete: Geraldo Magalhães. Odeon, 1906. Ouça aqui.
  • Exposição Virtual Revolta da Vacina. Cidadania, Ciência e Saúde. Acesse aqui.
  • Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz. Acesse aqui.