Inspirada no plano de remodelação de Paris concebido pelo barão Georges-Eugène Haussmann no século XIX, a Reforma Pereira Passos transformou radicalmente a aparência e as formas de vida no Centro do Rio.
Unidade 1
Do Império à Primeira República: o surgimento da saúde pública
O Rio remodelado: reforma urbana e saneamento na capital da República
Pereira Passos e o “bota-abaixo”
No começo do século XX, fruto de um processo de urbanização frenético e desordenado, o Rio de Janeiro era muitas vezes um lugar difícil para se viver.
O centro da cidade, com suas vielas insalubres e mal-iluminadas, constituía um foco permanente de doenças. As epidemias grassavam quase todo ano. O trânsito era caótico. Grande parte dos pobres residia em habitações coletivas sem as mínimas condições de higiene.
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"Pelas ruas, uma profusão de gente, carroças e carruagens disputava com o bonde e com os primeiros automóveis o pouco espaço existente. Para muitos higienistas, sanear era construir avenidas; era alargar as ruas para melhor aproveitamento do sol e dos ventos; era mudar os costumes; era demolir o velho e insalubre casario”
Eleito presidente da República em março de 1902, Francisco Rodrigues Alves (1902-1906) baseou seu programa de governo no compromisso com a modernização e o saneamento do Rio de Janeiro. O novo presidente nomeou para comandar a reforma urbana da capital o engenheiro Francisco Pereira Passos, a quem foi delegado amplos poderes. A modernização do porto e a construção das avenidas Central e do Mangue, entre outras obras de porte, ficaram sob responsabilidade da administração federal. A direção da saúde pública foi entregue a Oswaldo Cruz, que, como vimos, chefiava o Instituto de Manguinhos.
Apesar de seu ar de modernidade, a reforma também teve seu lado cruel e desumano. Centenas de casebres e cortiços, habitados pelas camadas mais vulneráveis da população, foram demolidos com base nas novas diretrizes da saúde pública ou simplesmente para dar passagem às novas ruas e avenidas que surgiam.
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Demolições
Com as demolições, milhares de pessoas foram desalojadas de suas casas.
Favelas
Parte da população foi obrigada a se mudar para os subúrbios. Quanto aos mais pobres, não restou outra alternativa senão procurar abrigo nas favelas que começavam a surgir.
Urbanização
Com a Reforma Pereira Passos, o “velho Rio colonial” ficou definitivamente para trás. O processo de urbanização da cidade tornou-se daí em diante uma força irreversível.
As reformas sanitárias de Oswaldo Cruz
Em março de 1903, logo depois de assumir a direção de Manguinhos, Oswaldo Cruz foi nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) em substituição a Nuno de Andrade. Sua indicação veio acompanhada de um nobre compromisso: o de derrotar as principais doenças que anualmente surgiam como epidemias na capital - a febre amarela, a varíola e a peste bubônica.
Amparado por uma nova legislação sanitária que impedia a interposição de recursos judiciais a suas decisões, Oswaldo Cruz estruturou suas ações a partir das seguintes iniciativas:
- Organização de uma brigada de mata-mosquitos para combater o mosquito transmissor da febre amarela;
- Instituição de uma polícia sanitária com poder de multar e de intimar os proprietários de imóveis considerados insalubres, obrigando-os a reformá-los ou a demoli-los;
- Adoção da vacinação compulsória contra a varíola;
- Promoção de uma ampla campanha de erradicação dos ratos da cidade como medida de combate à peste bubônica.
As campanhas contra a febre amarela e a peste, apesar das oposições que sofreram, acabaram vitoriosas. Em 1904, já se podia notar uma redução significativa dos índices de morbidade e de mortalidade das duas doenças, tendência que seria confirmada nos anos seguintes.
Em relação à varíola, o resultado a princípio, não foi o mesmo. Baseada na vacinação compulsória, a campanha foi duramente combatida, originando uma revolta popular que passou para a história com o nome de Revolta da Vacina.
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A suspensão da obrigatoriedade da vacinação em fins de 1904 teve graves consequências para as condições de saúde na capital da República. Quatro anos depois, um violento surto da doença voltou a assolar o Rio de Janeiro.
Vamos ver agora, mais detidamente, cada um desses acontecimentos.
A erradicação da febre amarela
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“Túmulo dos estrangeiros"
Quando Oswaldo Cruz foi nomeado diretor-geral de Saúde Pública, a febre amarela era o principal problema sanitário do Rio de Janeiro. Só em 1902, quase mil pessoas morreram na cidade em virtude da doença. Não admira que por causa dela, o Rio tenha sido chamado na época de “túmulo dos estrangeiros”.
Aedes aegypt
A teoria dos miasmas propunha que as doenças transmissíveis provinham do envenenamento do ar. Em relação à febre amarela, ela foi questionada na virada para o século XX, quando a tese do médico cubano Juan Carlos Finlay sobre a transmissão da doença pelo mosquito Stegomyia fasciata (atualmente chamado de Aedes aegypt, que também transmite a dengue) foi testada com êxito em Cuba por uma comissão de especialistas do Exército norte-americano.
Serviço de Profilaxia
Conhecidas como “Teoria Havanesa”, as teses de Finlay foram abraçadas com entusiasmo por Oswaldo Cruz, que baseou sua campanha contra o mosquito nas ideias do cientista cubano. Iniciada em abril de 1903 com a criação do Serviço de Profilaxia Especial da Febre Amarela, a campanha foi estruturada, como vimos, em moldes tipicamente militares.
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A cidade foi dividida em dez distritos sanitários subordinados às delegacias de saúde. Estas recebiam a notificação de doentes, aplicavam multas e intimavam os donos de imóveis considerados insalubres a reformá-los ou demoli-los.
“Mata-mosquitos”
Para impedir a proliferação dos transmissores da febre amarela foram criadas equipes de “mata-mosquitos” que tinham a incumbência de visitar os diversos distritos da cidade, realizando a desinfecção de todos os locais onde pudessem ser encontradas larvas do vetor da doença. As equipes usavam inseticidas e substâncias que, incineradas, produziam fumaça que espantava os insetos.
No âmbito da saúde pública, foi criada uma Seção de Isolamento e Expurgo, responsável pela desinfecção das casas e pelo isolamento domiciliar ou hospitalar dos doentes.
Conselhos do Povo
A fim de divulgar suas ações, Oswaldo Cruz criou os Conselhos ao Povo, uma coleção de folhetos educativos publicados na imprensa com os quais o sanitarista buscava convencer a população e a classe médica do acerto das medidas adotadas.
Como a maioria da população não sabia ler e muitos médicos ainda se mantinham refratários às ideias de Finlay, a iniciativa não foi capaz de superar as resistências à campanha.
O combate à peste bubônica
Em 1904, com o combate à febre amarela ainda em curso, Oswaldo Cruz pôs à frente uma nova iniciativa: a campanha contra a peste bubônica.
Dessa vez o processo foi mais simples porque a forma de transmissão da doença, pela picada das pulgas de ratos infectados, era conhecida e socialmente aceita.
Em 1894, os médicos Alexandre Yersin e Shibasaburo Sato haviam descoberto a bactéria por eles denominada Yersinia pestis, responsável pela transmissão da doença.
Tratava-se agora de vacinar os que residiam em regiões de risco, utilizar o soro aos que estivessem doentes e destruir os ratos que infestavam a cidade.
Um instrumento central utilizado na campanha contra a peste foi a notificação compulsória. Ela permitia que a saúde pública conhecesse os locais onde havia focos da doença para aplicar a vacina e isolar os doentes.
Outra medida posta em prática foi a desratização da cidade. Para isso foram destacados funcionários da Diretoria Geral de Saúde Pública. Eles tinham uma espécie de meta a cumprir: levar a seus superiores 150 ratos mortos por mês. Os que batiam a meta ganhavam uma recompensa em dinheiro. A Diretoria também passou a comprar ratos mortos da população.
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“Como qualquer pessoa estava autorizada a vender ratos para o governo, logo surgiria uma nova profissão na cidade: a dos ratoeiros – indivíduos que corriam as ruas comprando ratos a baixo preço, para depois revendê-los à DGSP. Houve até quem se dedicasse a criar roedores em casa com essa finalidade. E não faltou quem fosse buscá-los em outras cidades. Em pouco tempo, o ofício de ratoeiro se transformou num grande negócio.
A 'guerra aos ratos' virou motivo de deboche e piada entre os cariocas, servindo de inspiração para inúmeras charges e caricaturas, crônicas e até canções populares. Obviamente, o alvo preferido e personagem principal dessas obras chamava-se Oswaldo Cruz”.
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“Apesar de ter caído num ritmo mais lento do que o da febre amarela, o número de óbitos por peste bubônica na capital também experimentaria uma sensível redução, revelando o acerto da campanha.
Os casos fatais da doença, que em 1903 atingiram o índice de 48,74 mortes para cada 100 mil habitantes, seriam drasticamente reduzidos nos cinco anos seguintes.
Em 1909, ano em que Oswaldo Cruz deixou a DGSP, esse índice chegou ao seu mais baixo patamar: 1,73 mortes para cada 100 mil habitantes.”
A luta contra a varíola
Entre as epidemias que Oswaldo Cruz procurou debelar no Rio de Janeiro, no período em que atuou como diretor de Saúde Pública, a mais controversa foi sem dúvida a campanha contra a varíola.
Em meados de 1904, uma violenta epidemia de varíola voltou a atingir o Rio de Janeiro provocando a morte de mais de 3.500 pessoas. Uma lei de 1837 havia tornado a vacina contra a doença obrigatória para crianças. Nove anos depois, a obrigatoriedade fora estendida aos adultos, mas, de forma semelhante ao que hoje vemos em diversos setores, a lei não pegou.
Tentando ampliar a utilização da vacina, Oswaldo Cruz sugeriu que o governo levasse ao Congresso Nacional um projeto de lei reafirmando a obrigatoriedade da vacina em todo o território nacional. Entre outras medidas, a proposta previa a aplicação de multas para quem se recusasse a se vacinar e estabelecia a exigência de atestados de vacinação para matrícula nas escolas e para o ingresso no serviço púbico.
A nova lei da vacinação obrigatória recebeu a desaprovação de vários segmentos da sociedade carioca, o que incluía desde parcelas da oficialidade do Exército, até monarquistas e republicanos radicais, além de operários, estudantes, partidários do positivismo, jornalistas e médicos contrários ao paradigma pasteuriano. Chamado pelo povo de “Código de Torturas”, sua tramitação no Congresso foi acidentada e duramente combatida pela oposição. O movimento deu origem à Liga contra a Vacina Obrigatória.
Oswaldo Cruz e os defensores da vacina argumentavam que ela havia sido adotada com sucesso na Europa, mas, para seus opositores, a obrigatoriedade da vacinação constituía um grave atentado à liberdade individual. Alguns chegaram a difundir a ideia de que a própria vacina ajudaria a espalhar a doença. Isso sem falar no aspecto moral embutido em muitas dessas críticas: o fato de que, para serem imunizadas, as mulheres teriam de se submeter à indecorosa situação de desnudar seus braços, suas coxas ou até mesmo suas nádegas perante os servidores da saúde pública, maculando, dessa forma, sua imagem e a honra de seus maridos.
Atenção
Apesar de toda a polêmica que suscitou, a lei da vacinação obrigatória acabou sendo aprovada pelo Congresso em 31 de outubro de 1904. Mas isso não significou o fim dos conflitos.
Com a regulamentação da lei nove dias depois, a crise ganharia contornos dramáticos. No dia 10 de novembro, a Revolta da Vacina explodiu nas ruas do Rio. Foi o início de um dos maiores movimentos de insurreição popular da história da cidade.
A Revolta da Vacina
"Durante uma semana, milhares de pessoas saíram às ruas do Rio de Janeiro para protestar. O comércio fechou as portas em várias localidades; o transporte público entrou em colapso. Em meio à rebelião, uma insurreição militar tentou depor o presidente Rodrigues Alves. O desfile de 15 de novembro, que naquele ano comemorava 15 anos de República, teve de ser cancelado.
Com o apoio de tropas do Exército, Rodrigues Alves resistiu ao ataque e negou-se a demitir Oswaldo Cruz, principal alvo das manifestações. A decretação do estado de sítio no dia 16 permitiu ao governo recuperar o controle da situação."
"A Revolta da Vacina” in Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz.Saiba Mais
A reação do governo foi violenta: 30 mortos, 110 feridos e 945 prisioneiros. Destes, quase a metade foi enviada para o Acre, onde muitos foram submetidos a trabalhos forçados.
A vitória de Rodrigues Alves não foi, entretanto, completa. Desgastado, o governo foi obrigado a ceder e anunciou o fim da vacinação obrigatória.
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Em 1906, o número de mortes por varíola no Rio de Janeiro caiu para menos de dez casos. A boa notícia, no entanto, não durou muito tempo. Dois anos depois, a epidemia voltava com toda força, vitimando desta vez aproximadamente 6.500 almas. Foi o preço a se pagar pelo fim da vacinação obrigatória.
A população, assustada, correu então para se vacinar. Em pouco tempo, a cidade estaria finalmente livre do mal.
Com o prestígio em alta por ter conseguido debelar a febre amarela, Oswaldo Cruz conservou-se à frente da DGSP na presidência de Afonso Pena (1906-1909). Depois de enfrentar com êxito as principais epidemias que atormentavam a vida dos cariocas, preparava-se agora para dar combate a um novo inimigo: a tuberculose, sua nova prioridade.
Desta feita, no entanto, seus planos não foram adiante. Faltaram-lhe os recursos necessários e um apoio mais efetivo do governo. Assim, quando entrou em vigor uma lei proibindo a acumulação de cargos no serviço público federal (novembro de 1909), não foi difícil a decisão: Oswaldo optou por permanecer à frente do Instituto Soroterápico Federal e renunciou à direção da DGSP.