Unidade 1

Do Império à Primeira República: o surgimento da saúde pública​

Aula 3

O Rio remodelado: reforma urbana e saneamento na capital da República​

Pereira Passos e o “bota-abaixo”​

No começo do século XX, fruto de um processo de urbanização frenético e desordenado, o Rio de Janeiro era muitas vezes um lugar difícil para se viver.

O centro da cidade, com suas vielas insalubres e mal-iluminadas, constituía um foco permanente de doenças. As epidemias grassavam quase todo ano. O trânsito era caótico. Grande parte dos pobres residia em habitações coletivas sem as mínimas condições de higiene.

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Aspecto de favela carioca no início do século XX.
Aspecto de favela carioca no início do século XX.
Fonte: Acervo COC.​

​"Pelas ruas, uma profusão de gente, carroças e carruagens disputava com o bonde e com os primeiros automóveis o pouco espaço existente. Para muitos higienistas, sanear era construir avenidas; era alargar as ruas para melhor aproveitamento do sol e dos ventos; era mudar os costumes; era demolir o velho e insalubre casario”

(“Reforma Pereira Passos” in Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz).

Inauguração do trecho da rua Sete de Setembro entre a avenida 1º de Março e avenida Central
Inauguração do trecho da rua Sete de Setembro entre a avenida 1º de Março e avenida Central (atual Rio Branco). Da esquerda para a direita, em primeiro plano, o presidente da República, Rodrigues Alves, e o prefeito do Distrito Federal, Francisco Pereira Passos. 6 set. 1906.
Fonte: Biblioteca Virtual OSWALDO CRUZ.

Eleito presidente da República em março de 1902, Francisco Rodrigues Alves (1902-1906) baseou seu programa de governo no compromisso com a modernização e o saneamento do Rio de Janeiro. O novo presidente nomeou para comandar a reforma urbana da capital o engenheiro Francisco Pereira Passos, a quem foi delegado amplos poderes. A modernização do porto e a construção das avenidas Central e do Mangue, entre outras obras de porte, ficaram sob responsabilidade da administração federal. A direção da saúde pública foi entregue a Oswaldo Cruz, que, como vimos, chefiava o Instituto de Manguinhos.​

Apesar de seu ar de modernidade, a reforma também teve seu lado cruel e desumano. Centenas de casebres e cortiços, habitados pelas camadas mais vulneráveis da população, foram demolidos com base nas novas diretrizes da saúde pública ou simplesmente para dar passagem às novas ruas e avenidas que surgiam.​

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Com as demolições, milhares de pessoas foram desalojadas de suas casas.​

Parte da população foi obrigada a se mudar para os subúrbios. Quanto aos mais pobres, não restou outra alternativa senão procurar abrigo nas favelas que começavam a surgir. ​

Com a Reforma Pereira Passos, o “velho Rio colonial” ficou definitivamente para trás. O processo de urbanização da cidade tornou-se daí em diante uma força irreversível.​

As reformas sanitárias de Oswaldo Cruz​

Em março de 1903, logo depois de assumir a direção de Manguinhos, Oswaldo Cruz foi nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) em substituição a Nuno de Andrade. Sua indicação veio acompanhada de um nobre compromisso: o de derrotar as principais doenças que anualmente surgiam como epidemias na capital - a febre amarela, a varíola e a peste bubônica.

Amparado por uma nova legislação sanitária que impedia a interposição de recursos judiciais a suas decisões, Oswaldo Cruz estruturou suas ações a partir das seguintes iniciativas:​

  1. Organização de uma brigada de mata-mosquitos para combater o mosquito transmissor da febre amarela;​
  2. Instituição de uma polícia sanitária com poder de multar e de intimar os proprietários de imóveis considerados insalubres, obrigando-os a reformá-los ou a demoli-los;​
  3. Adoção da vacinação compulsória contra a varíola;
  4. Promoção de uma ampla campanha de erradicação dos ratos da cidade como medida de combate à peste bubônica.

As campanhas contra a febre amarela e a peste, apesar das oposições que sofreram, acabaram vitoriosas. Em 1904, já se podia notar uma redução significativa dos índices de morbidade e de mortalidade das duas doenças, tendência que seria confirmada nos anos seguintes.

Em relação à varíola, o resultado a princípio, não foi o mesmo. Baseada na vacinação compulsória, a campanha foi duramente combatida, originando uma revolta popular que passou para a história com o nome de Revolta da Vacina.

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Charge favorável às medidas impostas por Oswaldo Cruz durante a campanha sanitária no Rio de Janeiro.
"As epidemias": charge favorável às medidas impostas por Oswaldo Cruz durante a campanha sanitária no Rio de Janeiro. Revista da Semana do Jornal do Brasil, 1907.
Fonte: Acervo COC.

A suspensão da obrigatoriedade da vacinação em fins de 1904 teve graves consequências para as condições de saúde na capital da República. Quatro anos depois, um violento surto da doença voltou a assolar o Rio de Janeiro.​

Vamos ver agora, mais detidamente, cada um desses acontecimentos.​

A erradicação da febre amarela​

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Quando Oswaldo Cruz foi nomeado diretor-geral de Saúde Pública, a febre amarela era o principal problema sanitário do Rio de Janeiro. Só em 1902, quase mil pessoas morreram na cidade em virtude da doença. Não admira que por causa dela, o Rio tenha sido chamado na época de “túmulo dos estrangeiros”.

A teoria dos miasmas propunha que as doenças transmissíveis provinham do envenenamento do ar. Em relação à febre amarela, ela foi questionada na virada para o século XX, quando a tese do médico cubano Juan Carlos Finlay sobre a transmissão da doença pelo mosquito Stegomyia fasciata (atualmente chamado de Aedes aegypt, que também transmite a dengue) foi testada com êxito em Cuba por uma comissão de especialistas do Exército norte-americano.​

Conhecidas como “Teoria Havanesa”, as teses de Finlay foram abraçadas com entusiasmo por Oswaldo Cruz, que baseou sua campanha contra o mosquito nas ideias do cientista cubano. Iniciada em abril de 1903 com a criação do Serviço de Profilaxia Especial da Febre Amarela, a campanha foi estruturada, como vimos, em moldes tipicamente militares.

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A cidade foi dividida em dez distritos sanitários subordinados às delegacias de saúde. Estas recebiam a notificação de doentes, aplicavam multas e intimavam os donos de imóveis considerados insalubres a reformá-los ou demoli-los.

“Mata-mosquitos”​

Para impedir a proliferação dos transmissores da febre amarela foram criadas equipes de “mata-mosquitos” que tinham a incumbência de visitar os diversos distritos da cidade, realizando a desinfecção de todos os locais onde pudessem ser encontradas larvas do vetor da doença. As equipes usavam inseticidas e substâncias que, incineradas, produziam fumaça que espantava os insetos.​

No âmbito da saúde pública, foi criada uma Seção de Isolamento e Expurgo, responsável pela desinfecção das casas e pelo isolamento domiciliar ou hospitalar dos doentes.

Conselhos do Povo​

A fim de divulgar suas ações, Oswaldo Cruz criou os Conselhos ao Povo, uma coleção de folhetos educativos publicados na imprensa com os quais o sanitarista buscava convencer a população e a classe médica do acerto das medidas adotadas.​

Como a maioria da população não sabia ler e muitos médicos ainda se mantinham refratários às ideias de Finlay, a iniciativa não foi capaz de superar as resistências à campanha.​

O combate à peste bubônica​

A peste bubônica retratada em charge do humorista português Alfredo Candido.
A peste bubônica retratada em charge do humorista português Alfredo Candido.
Fonte: Acervo COC.

Em 1904, com o combate à febre amarela ainda em curso, Oswaldo Cruz pôs à frente uma nova iniciativa: a campanha contra a peste bubônica.

Dessa vez o processo foi mais simples porque a forma de transmissão da doença, pela picada das pulgas de ratos infectados, era conhecida e socialmente aceita. ​

Em 1894, os médicos Alexandre Yersin e Shibasaburo Sato haviam descoberto a bactéria por eles denominada Yersinia pestis, responsável pela transmissão da doença.

Tratava-se agora de vacinar os que residiam em regiões de risco, utilizar o soro aos que estivessem doentes e destruir os ratos que infestavam a cidade.

Charge em homenagem a Oswaldo Cruz por sua atuação à frente do Instituto de Manguinhos.
Charge em homenagem a Oswaldo Cruz por sua atuação à frente do Instituto de Manguinhos. Chanteclair, Paris, 1911.
Fonte: Acervo COC.

Um instrumento central utilizado na campanha contra a peste foi a notificação compulsória. Ela permitia que a saúde pública conhecesse os locais onde havia focos da doença para aplicar a vacina e isolar os doentes.​

Outra medida posta em prática foi a desratização da cidade. Para isso foram destacados funcionários da Diretoria Geral de Saúde Pública. Eles tinham uma espécie de meta a cumprir: levar a seus superiores 150 ratos mortos por mês. Os que batiam a meta ganhavam uma recompensa em dinheiro. A Diretoria também passou a comprar ratos mortos da população.

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O comprador de ratos, 1904.
O comprador de ratos, 1904.
Fonte: Revista da Semana, 7 de agosto de 1904.

“Como qualquer pessoa estava autorizada a vender ratos para o governo, logo surgiria uma nova profissão na cidade: a dos ratoeiros – indivíduos que corriam as ruas comprando ratos a baixo preço, para depois revendê-los à DGSP. Houve até quem se dedicasse a criar roedores em casa com essa finalidade. E não faltou quem fosse buscá-los em outras cidades. Em pouco tempo, o ofício de ratoeiro se transformou num grande negócio.​

A 'guerra aos ratos' virou motivo de deboche e piada entre os cariocas, servindo de inspiração para inúmeras charges e caricaturas, crônicas e até canções populares. Obviamente, o alvo preferido e personagem principal dessas obras chamava-se Oswaldo Cruz”.​

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“Apesar de ter caído num ritmo mais lento do que o da febre amarela, o número de óbitos por peste bubônica na capital também experimentaria uma sensível redução, revelando o acerto da campanha.

Os casos fatais da doença, que em 1903 atingiram o índice de 48,74 mortes para cada 100 mil habitantes, seriam drasticamente reduzidos nos cinco anos seguintes.

Em 1909, ano em que Oswaldo Cruz deixou a DGSP, esse índice chegou ao seu mais baixo patamar: 1,73 mortes para cada 100 mil habitantes.”

A luta contra a varíola​

Entre as epidemias que Oswaldo Cruz procurou debelar no Rio de Janeiro, no período em que atuou como diretor de Saúde Pública, a mais controversa foi sem dúvida a campanha contra a varíola. ​

Em meados de 1904, uma violenta epidemia de varíola voltou a atingir o Rio de Janeiro provocando a morte de mais de 3.500 pessoas. Uma lei de 1837 havia tornado a vacina contra a doença obrigatória para crianças. Nove anos depois, a obrigatoriedade fora estendida aos adultos, mas, de forma semelhante ao que hoje vemos em diversos setores, a lei não pegou.​

Tentando ampliar a utilização da vacina, Oswaldo Cruz sugeriu que o governo levasse ao Congresso Nacional um projeto de lei reafirmando a obrigatoriedade da vacina em todo o território nacional. Entre outras medidas, a proposta previa a aplicação de multas para quem se recusasse a se vacinar e estabelecia a exigência de atestados de vacinação para matrícula nas escolas e para o ingresso no serviço púbico.

A nova lei da vacinação obrigatória recebeu a desaprovação de vários segmentos da sociedade carioca, o que incluía desde parcelas da oficialidade do Exército, até monarquistas e republicanos radicais, além de operários, estudantes, partidários do positivismo, jornalistas e médicos contrários ao paradigma pasteuriano. Chamado pelo povo de “Código de Torturas”, sua tramitação no Congresso foi acidentada e duramente combatida pela oposição. O movimento deu origem à Liga contra a Vacina Obrigatória.

Oswaldo Cruz e os defensores da vacina argumentavam que ela havia sido adotada com sucesso na Europa, mas, para seus opositores, a obrigatoriedade da vacinação constituía um grave atentado à liberdade individual. Alguns chegaram a difundir a ideia de que a própria vacina ajudaria a espalhar a doença. Isso sem falar no aspecto moral embutido em muitas dessas críticas: o fato de que, para serem imunizadas, as mulheres teriam de se submeter à indecorosa situação de desnudar seus braços, suas coxas ou até mesmo suas nádegas perante os servidores da saúde pública, maculando, dessa forma, sua imagem e a honra de seus maridos.​

Atenção

Apesar de toda a polêmica que suscitou, a lei da vacinação obrigatória acabou sendo aprovada pelo Congresso em 31 de outubro de 1904. Mas isso não significou o fim dos conflitos.​

Com a regulamentação da lei nove dias depois, a crise ganharia contornos dramáticos. No dia 10 de novembro, a Revolta da Vacina explodiu nas ruas do Rio. Foi o início de um dos maiores movimentos de insurreição popular da história da cidade.​

A Revolta da Vacina​

"Durante uma semana, milhares de pessoas saíram às ruas do Rio de Janeiro para protestar. O comércio fechou as portas em várias localidades; o transporte público entrou em colapso. Em meio à rebelião, uma insurreição militar tentou depor o presidente Rodrigues Alves. O desfile de 15 de novembro, que naquele ano comemorava 15 anos de República, teve de ser cancelado.

Com o apoio de tropas do Exército, Rodrigues Alves resistiu ao ataque e negou-se a demitir Oswaldo Cruz, principal alvo das manifestações. A decretação do estado de sítio no dia 16 permitiu ao governo recuperar o controle da situação."

"A Revolta da Vacina” in Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz.

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Charge sobre a lei de obrigatoriedade da vacina contra a varíola, sob o título: 'Liga contra a vacina obrigatória'.
Charge sobre a lei de obrigatoriedade da vacina contra a varíola, sob o título: "Liga contra a vacina obrigatória".
Fonte: Instituto Oswaldo Cruz (IOC).

A reação do governo foi violenta: 30 mortos, 110 feridos e 945 prisioneiros. Destes, quase a metade foi enviada para o Acre, onde muitos foram submetidos a trabalhos forçados.

A vitória de Rodrigues Alves não foi, entretanto, completa. Desgastado, o governo foi obrigado a ceder e anunciou o fim da vacinação obrigatória.

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Em 1906, o número de mortes por varíola no Rio de Janeiro caiu para menos de dez casos. A boa notícia, no entanto, não durou muito tempo. Dois anos depois, a epidemia voltava com toda força, vitimando desta vez aproximadamente 6.500 almas. Foi o preço a se pagar pelo fim da vacinação obrigatória.

A população, assustada, correu então para se vacinar. Em pouco tempo, a cidade estaria finalmente livre do mal.

 Oswaldo Cruz examina microscópio em laboratório de Manguinhos, observado por seu filho Bento Oswaldo Cruz e por Burle de Figueiredo.​
Oswaldo Cruz examina microscópio em laboratório de Manguinhos, observado por seu filho Bento Oswaldo Cruz e por Burle de Figueiredo.​
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz.

Com o prestígio em alta por ter conseguido debelar a febre amarela, Oswaldo Cruz conservou-se à frente da DGSP na presidência de Afonso Pena (1906-1909). Depois de enfrentar com êxito as principais epidemias que atormentavam a vida dos cariocas, preparava-se agora para dar combate a um novo inimigo: a tuberculose, sua nova prioridade.

Desta feita, no entanto, seus planos não foram adiante. Faltaram-lhe os recursos necessários e um apoio mais efetivo do governo. Assim, quando entrou em vigor uma lei proibindo a acumulação de cargos no serviço público federal (novembro de 1909), não foi difícil a decisão: Oswaldo optou por permanecer à frente do Instituto Soroterápico Federal e renunciou à direção da DGSP.​