Módulo 1 | Aula 3 Implicações éticas em saúde

Tópico 3

Das teorias e princípios às práticas

As diferentes abordagens éticas requerem que duas perguntas fundamentais sejam respondidas:

  • Por que devemos agir de uma forma e não de outra?
  • Quais argumentos corroboram e sustentam as normas de conduta que aceitamos como boa ou justa?

Cortina & Martinez, 2005.

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"Cada pessoa oferece a outra o seu dever ético. Um profissional de saúde, por exemplo, respeita o direito do paciente de tomar decisões informadas sobre aceitar, ou não, um tratamento proposto. De forma recíproca, o paciente respeita o direito do profissional de não levar adiante um tipo de tratamento que ele julgue ser contraindicado ou desnecessário, com base no compromisso de ‘não fazer o mal’, ou pelo qual ele ou ela tenha objeções conscientes. O profissional respeita a escolha consciente do paciente, transferindo seus cuidados a outro profissional, caso ele ainda solicite o tratamento. O profissional age antiteticamente escondendo informações sobre a disponibilidade legal de uma opção de tratamento à qual ele se opõe conscientemente."

(Cook et al., 2004)
Ética profissional

A ética profissional abrange os códigos éticos profissionais e adota uma perspectiva predominantemente na ética baseada nos deveres (deontológica), normativa, prescritiva, que determina o que deve ser feito.

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A ética profissional tem como objeto a análise do conjunto de normas, argumentos e conflitos éticos decorrentes de atividades profissionais. É dedicada às repercussões sociais que envolvem as práticas profissionais, como no âmbito da saúde.

As regulamentações estabelecem os valores, princípios e regras integrados em um sistema ético e legal para atuação do profissional, enfatizando o respeito aos indivíduos e/ou grupos das intervenções e aos direitos humanos, individuais, sociais e coletivos, bem como as obrigações e responsabilidades dos profissionais e instituições que desenvolvem atividades de saúde. Também definem as instâncias institucionais e os procedimentos para análise e deliberação de infrações éticas.

As principais normas são:

  • Fazer o bem, não fazer o mal.
  • Fazer apenas o que é legalmente permitido.
  • Obedecer ao código estabelecido e adotar determinada postura profissional exigida para aquela corporação.

Para refletir...

Aqui a nossa provocação para você é:

Pensar numa ética em saúde que proponha uma ideia de cuidado emancipadora, baseada na compreensão das diferenças morais e respeito à autonomia de quem cuida e de quem é cuidado.

A conduta ética requer reflexão, ponderação e autocrítica no desenvolvimento de valores em prol da promoção do bem comum. Deve sempre ser compatível com a existência digna de todos. Uma vida digna é quando o indivíduo pode ter suas necessidades (incluindo as de saúde) atendidas, respeitar a si mesmo (autoestima) e aos outros (Dias, 2016). O conceito de saúde deve ser amplo e considerar como essencial “a capacidade [do indivíduo] de reagir aos diversos fatores que vulnerabilizam o equilíbrio vital, a fim de reorganizar, na subjetividade e em interação com o contexto socioambiental, os elementos biológicos, psicológicos e simbólicos. Saúde é a capacidade de autorrefazer-se ou de auto-organizar-se como sujeito e depende, essencialmente, da articulação entre subjetividade e ambiente” (Junges & Zoboli, 2012).

Nesse sentido, o uso de métodos baseados na derivação de regras e princípios no processo de deliberação ética é importante, mas insuficiente. A complexidade da realidade exige considerar as circunstâncias, os resultados das alternativas de ação e as situações incertas, em busca da melhor e mais razoável decisão fundamentada possível. Você deve ir além da obrigação individual -- para além da ética deontológica -- e incorporar o exercício de ouvir e dialogar para compreender; de agir com prudência quando não se sabe qual decisão seria melhor, especialmente, nas situações dilemáticas quando dois ou mais valores, princípios ou regras se opõem.

As principais implicações éticas tratadas no âmbito da bioética clínica, envolvendo profissionais de saúde e usuários, são relacionadas à autonomia individual no processo terapêutico, aos valores e preferências individuais das partes envolvidas, aos aspectos técnico-científicos das intervenções propostas, à qualidade da assistência à saúde e à responsabilidade ética e legal dos profissionais e do sistema de saúde. Vejamos alguns exemplos de situações nos cenários de práticas dos profissionais de saúde:

Atenção

Ao longo da leitura, procure lembrar de suas experiências.

Em um ambiente de um quarto hospitalar, em primeiro plano, um profissional de saúde com uma prancheta nas mãos conversa com uma pessoa de cabelos curtos. Ao fundo, uma pessoa deitada em uma cama hospitalar recebendo soro venoso.

A justificativa profissional de omissão da informação sobre o grave estado de saúde da pessoa assistida, em razão do impacto da má notícia, ou a não informação a familiares ou amigos da sua condição de saúde, tem implicações éticas relevantes. Essas condutas conflitam os princípios éticos do respeito à autonomia, que incluiu o dever de informar, o sigilo profissional e o dever de produzir benefício ao assistido.

Considerando uma abordagem ética mais ampla é esperado que você cumpra os deveres, aplicando de forma balanceada os princípios éticos envolvidos. Algumas alternativas podem ser consideradas, como recorrer à equipe para uma ação conjunta e mais adequada, que envolva o doente, familiares e amigos, que podem informar sobre as preferências do doente e mesmo apoiar a equipe no momento da comunicação.

Em um ambiente de consultório médico, em primeiro plano, um profissional de saúde conversa e gesticula com uma pessoa de cabelos curtos, que presta atenção. Ambos estão sentados com uma mesa entre os dois, e há um papel escrito sobre essa mesa. Ao fundo há cartazes na parede com as frases “Use camisinha” e “DST: previna-se”.

O conflito entre o dever de comunicação de diagnóstico de HIV ou outras infecções sexualmente transmissíveis a(o) parceira(o) sexual expressa certa contradição com o dever de sigilo e o direito de autonomia do(a) assistido(a).

Uma alternativa adequada envolve a condução cooperativa com a pessoa diagnosticada e o estabelecimento de compromissos entre as partes, capaz de considerar a redução de riscos ou danos para o(a) parceiro(a) e a própria pessoa. Lembre-se que saúde é também a “capacidade de autorrefazer-se ou de auto-organizar-se” (Junges & Zoboli, 2012) e uma comunicação abrupta pode trazer resultados irreversíveis à saúde da pessoa atendida e constituir-se em infração ética do dever de beneficência.

Para escutar...

Confira o podcast Abia 1: como o estigma leva à discriminação e preconceitos em relação ao HIV

Os anos de 2020 e 2021 foram extremamente desafiadores em função da pandemia de Covid-19. Neste cenário, percebemos como a desinformação, o desrespeito à ciência e as boas práticas recomendadas, nossas velhas conhecidas na luta contra a Aids e ao preconceito relacionado a ela, são tão letais quanto qualquer vírus.

O acesso à informação e aos direitos e a luta política podem trazer o despertar da consciência, do valor e da autopreservação, essenciais para a prevenção e assistência de qualquer doença. Nesse episódio, temos o prazer de ouvir o Desembargador Federal Roger Raupp Rios, um grande pesquisador na área de direitos humanos, direito da antidiscriminação, direitos sexuais e direito à saúde, para falar sobre estigma, discriminação e preconceito em relação ao HIV e outras doenças.

Em um ambiente de consultório médico, em primeiro plano, uma profissional de saúde conversa e toca em uma mulher de cabelos presos em um rabo-de-cavalo abaixo da altura dos ombros, que presta atenção. Ao fundo há cartazes na parede mencionando “Lave as mãos” e “SUS”.

Omitir informação da possibilidade legal de realizar o aborto no atendimento de uma adolescente ou mulher na atenção aos agravos de violência sexual, ou a denúncia da pessoa que fez o autoaborto, são condutas que infringem a ética e as leis brasileiras. É uma violação dos direitos humanos e uma discriminação de gênero e contra a mulher.

O direito à confidencialidade, que protege a intimidade, privacidade e liberdade, é correspondente ao dever de sigilo profissional e essencial na relação de confiança e solidariedade entre profissionais e usuárias, favorável à revelação de fatos íntimos importantes para o diagnóstico, tratamento e orientação. Mesmo nos sistemas legais onde o(a) profissional está obrigado(a), por lei, a revelar informações, deve se restringir aos aspectos clínicos e informar, previamente, à usuária sobre as razões legais e éticas que determinam a quebra do sigilo. Deve atuar em conjunto com profissionais de outras áreas, favorecendo a redução de danos psicológicos, sociais e legais que a usuária poderá sofrer.

Para assistir...

Confira a reportagem sobre direito à saúde, abuso sexual e aborto.

O caso Alagoinha

Sinopse: O vídeo é composto por entrevistas que permitem compreender o difícil caminho percorrido por meninas e mulheres para conseguir exercer seus Direitos Humanos Sexuais e Reprodutivos.

Saiba Mais

Direito & Saúde: o caso de Alagoinha

Fonte: AADS - Ações Afirmativas em Direitos e Saúde

A realização de intervenções médicas em pessoas com eminente risco de morte e em situação de emergência, sem o seu consentimento, em prol da sua própria vida; a obrigatoriedade da vacinação ou de quarentena em situações de risco de transmissão de doença para entrada em determinado local ou país, com restrições de direitos individuais em prol do coletivo, exemplificam que o critério ético estabelecido prioriza o dever de beneficência e justiça e reduz a aplicação do respeito à autonomia em prol da proteção à vida e à saúde, de direitos coletivos sob os individuais.

A alegação de que os afetados pela decisão profissional não têm capacidade para compreensão de questões mais complexas é um tipo de conduta discriminatória, vedada pela ética e as leis. Os profissionais devem sempre buscar conduzir o diálogo de forma a alcançar as pessoas que estão sob seus cuidados.

As condutas a serem adotadas nas situações ilustradas exigem buscar alternativas satisfatórias para todos, respeitado o dever ético e legal da informação, sem infringir outros deveres profissionais e direitos das pessoas envolvidas.

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"A lei define as circunstâncias dentro das quais as escolhas éticas podem ser exercidas de forma prática, mas a ética determina os limites dentro dos quais a lei é obedecida e respeitada, de forma voluntária, como uma expressão dos valores e aspirações da sociedade na qual ela é aplocada".

(Cook et al, 2004)

A Bioética pública trata das relações dos profissionais de saúde, instituições e sistema de saúde e as implicações éticas, considerando os níveis macro, meso e microético. Abstratamente, os princípios em conflitos são o da autonomia profissional com a autoridade sanitária e a do usuário do sistema com os profissionais e/ou autoridade sanitária. As reflexões e deliberações nesse caso recorrem ao balanceamento entre respeito à autonomia, beneficência e o princípio da justiça, especialmente, o de justiça sanitária, entendida como a distribuição de bens/serviços, riscos/danos, recursos de saúde e a garantia de segurança sanitária e segurança dos usuários na atenção à saúde.

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"Certamente relacionada à ética em saúde e à ética profissional, a valorização e aceitação deste compromisso é tarefa que demanda esforços em múltiplas direções (...) A crise da assistência apresenta inúmeras faces, entre elas, os problemas de acesso e elitização da assistência; a despersonalização dos cuidados e a burocratização assistencial; a falta de motivação profissional e as más condições de trabalho. De um modo geral, o conjunto de fatores críticos resultam em baixa qualidade da assistência, sobretudo diante do possível em outros países, portadores de maiores recursos e maior satisfação pessoal dos médicos e outros profissionais".

SCHRAIBER (1997, p. 124).

É importante que você não perca de vista a repercussão prática da saúde como um direito humano e de cidadania. Essa é a chave para o reconhecimento da assistência à saúde como um direito do cidadão-usuário do SUS e dever do Estado dimensão ética-jurídica essencial, conforme recomenda a Constituição brasileira. Na aula sobre Práticas de enfrentamento ao estigma e discriminação nos serviços de saúde, do módulo 5, são apresentados os fundamentos dos direitos dos cidadãos no SUS, garantidos pela Constituição Federal e pelas legislações. A partir dessas informações, os profissionais de saúde podem ter uma melhor compreensão sobre os direitos dos cidadãos no acesso à saúde e os canais possíveis de denúncia e/ou comunicação diante de práticas discriminatórias.

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Uma expectativa ética geral é de que a lei seja observada apesar de que as leis extremamente opressivas ou injustas devem ser eticamente desafiadas. No entanto, de forma recíproca, a lei busca, em geral, respeitar as escolhas éticas, e tenta não compelir condutas que a profissão médica ou alguns médicos considerem antiéticas.”

(Cook et al, 2004)