Módulo 1 | Aula 1 Enfrentamento ao estigma e discriminação

Tópico 1

Estigma: aspectos históricos e suas implicações

Existem diversos exemplos históricos de marcas corporais que instituíam estigmas, cada um deles com sentidos específicos:

Na Antiguidade

Infecções e doenças que afligiam os humanos, especialmente as que produziam lesões e eram contagiosas, receberam interpretações religiosas relacionadas a pecados ou maldições, tornando-se exemplificadora do processo de estigma (Rotberg, 1978).


Era cristã

A ideia de possessão adquire um sentido relacionado à culpa e ao mal e as pessoas que sofriam de ataques epiléticos tornaram-se fortemente estigmatizadas (Scambler, 2009). Outras marcas corporais, como feridas, bolhas, lacerações, quando não infringidas intencionalmente por outros, também adquiriram, neste período, sentidos ligados à religião, como símbolos das chagas de Cristo ou à moralidade, sinal de culpa e pecado, delimitando o lugar social das pessoas que possuíam essas marcas (Costa, 2017).


Idade Média

A Hanseníase, por exemplo, era entendida como sinal de pecado e motivo de exclusão e isolamento social das pessoas acometidas pela doença. Esse entendimento se estendeu até outros períodos históricos (Manjunath, 2012), como você verá no Módulo 2 deste curso.

É importante perceber uma mudança: com o tempo, o estigma deixa de ser uma marca produzida fisicamente, e passa a ser uma marca produzida simbolicamente, a partir do olhar e da interpretação do outro. O estigma passa a expressar algo indigno, próprio do sujeito e que marca a totalidade dos seus atos.

Estes dois sentidos do estigma -- marca fisicamente infringida pelo outro para demonstrar seu poder ou marca moralmente atribuída para demonstrar uma deformidade de caráter -- não são opostos, mas sim complementares. Ambos apontam para da destituição dos direitos, privilégios ou prestígio de algumas pessoas ou segmentos sociais, em função de valores e interesses de pessoas ou grupos com poder de ditar normas que lhes favoreçam.

Neste caso, o relacionamento entre o estigmatizador e o estigmatizado deixa de ser apenas uma relação de poder e dominação, incluindo também a desqualificação moral e a humilhação do estigmatizado.

A relação entre estigma e saúde acontece em diferentes circunstâncias. Uma delas é o sofrimento das pessoas que possuam ou estejam vulneráveis a infecções e doenças estigmatizantes que, além de enfrentar os problemas de saúde, precisam lidar com as questões decorrentes do estigma, como: vergonha, medo de exposição, autoisolamento e culpa. A outra, diz respeito às pessoas que são estigmatizadas por características físicas, étnico-raciais, sexuais ou comportamentais e acabam se afastando dos serviços de saúde por medo de rejeição ou maus tratos (Monteiro e Villela, 2013; Zambenedetti & Both, 2013; Ew et al., 2018; Ventura et al., 2020).

Os problemas de saúde têm o potencial para a produção e reprodução do estigma, tanto pela tradição histórico-religiosa, quanto pelo hábito mental baseado no senso comum e no imaginário de muitos profissionais de saúde de culpar o doente por sua doença (Cohen e Ewing, 2018; Klein e Gonçalves, 2018).

Sendo a equidade um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e dada a importância cultural e normativa dos serviços e práticas de saúde, é evidente a urgência de seu compromisso com a tarefa de superação de estigmas.

O sociólogo canadense Erving Goffman (1988) argumenta que nas interações sociais o estigma institui o diferente, o estranho, ao mesmo tempo em que institui a ideia do igual, normal, desejável. Ele observou que as diferentes culturas produzem crenças, práticas e normas sociais voltadas para garantir sua coesão. Para ele, a produção do estigma seria um mecanismo desenvolvido para excluir os que, de alguma forma, não aderem a esses padrões. A pessoa estigmatizada torna-se desacreditada no seu grupo social, podendo vivenciar humilhações, chacotas e diferentes formas de segregação que dificultam o convívio social. Em contrapartida, aquele que estigmatiza pode reagir com indiferença ou até atuar de maneira mais velada de desqualificação, como a superproteção, infantilização ou a negação do direito à autonomia e privacidade.

Para tentar lidar com este problema, a pessoa estigmatizada desenvolve várias estratégias que podem ser acionadas seletivamente em função da situação vivenciada (Monteiro et al., 2016). Conheça as estratégias mais comuns:

Algumas pessoas buscam gerenciar a marca negativa pelo seu ocultamento. Esta alternativa, no entanto, provoca tensão e insegurança diante do “segredo” que pode ser revelado, a partir de algum descuido ou necessidade, como por exemplo: pessoas vivendo com HIV que iniciam relações sexuais ou amorosas sem dialogar sobre a sua sorologia e depois se deparam com o temor de revelação, que pode ser uma quebra de confiança.

Para refletir...

Numa perspectiva mais positiva, o sujeito pode simplesmente ignorar o estigma e agir como se fosse igual aos demais. Nos casos em que as marcas ou traços estigmatizantes não são visíveis ou perceptíveis, ou não dizem respeito diretamente ao sujeito, mas a algum familiar (no caso de filhos de estupradores ou outros criminosos, por exemplo), há sempre a possiblidade de se esconder ou omitir esta informação nos espaços de interação social, mas essa medida é paliativa, e pode causar desconfortos no futuro.

Em alguns casos a pessoa procura se aproximar daqueles que possuem as mesmas marcas para poder conviver entre iguais. Esta é uma alternativa que permite as pessoas expressarem outras características produzindo e estimulando a autoestima. Entretanto, esta estratégia gera debates sobre as suas limitações, pois não há como viver plenamente apenas entre pares e distante do restante da sociedade.

Há igualmente situações em que o estigmatizado passa a acreditar que de fato tem um valor menor e desiste de usufruir dos seus direitos. Neste caso, a perda da autoestima e a frustração, por se sentir condenado a viver à margem da sociedade, podem ter profundas repercussões negativas no desenvolvimento das suas capacidades e na saúde mental.

Para refletir...

Existem ainda as situações-limite onde o sujeito, imbuído pela crença da sua inferioridade e marginalização social, se comporta de acordo com as características negativas que lhe são atribuídas, assumindo comportamentos e realizando atos condenáveis socialmente (Elias, 2000).

Em outros casos, a característica tomada como estigma é percebida como algo que poderia ser modificado por vontade própria. Nesse caso, a pessoa se considera culpada pelo problema, atribuindo sua relutância em mudar como parte de sua fraqueza moral, o que aumenta a sua desqualificação. Esta perspectiva é frequente em relação a usuários de substâncias psicoativas ou trabalhadores sexuais, sobretudo as mulheres, como será abordado no Módulo 3. Tal situação, pode ser ilustrada pelo discurso científico que contribuiu para a associação histórica entre trabalho sexual e prevalência de infecções sexualmente transmissíveis. Para a pessoa estigmatizada, esta dupla condenação pode aumentar sua insegurança e afastamento dos serviços de saúde. (Villela e Monteiro, 2015)

Para além de buscar gerenciar o estigma pelo ocultamento, correção ou compensação da marca “indesejável” e de formar redes de ajuda e apoio mútuo entre “iguais” e simpatizantes, é importante ressaltar as formas de enfrentamento ao estigma pela ação política.

Mãos e punhos de pessoas brancas e pessoas negras segurando cartazes reivindicando por direitos: “Direito à Saúde”, “Todas as vidas importam”, “Saúde de qualidade”. Em primeiro plano uma mão branca segura bandeira arco-íris associada à comunidade LGBT com a palavra “Respeito”.

O enfrentamento ao estigma pela ação política se traduz pela luta de movimentos sociais organizados pelo direito das pessoas estigmatizadas, a fim de tornar visível a marca estigmatizante, por vezes ocultada, com o propósito de dissociá-la de atributos morais negativos. Ou seja, desnaturalizar a relação entre a marca e seus significados desqualificantes.

São inúmeros os exemplos de associações de pessoas acometidas por algumas infecções e doenças, como a Hanseníase ou a infecção pelo HIV, ou de segmentos sociais discriminados, como profissionais do sexo ou usuários de drogas, que se unem com o objetivo de assegurar seus direitos de cidadania, rompendo com a invisibilidade que o estigma produz.

É importante destacar que as respostas das pessoas estigmatizadas dependem de fatores individuais e contextuais, bem como da posição que ocupam no entrecruzamento entre os diversos eixos sociais de desigualdade.

Em primeiro plano, uma mulher negra e um homem branco, com a representação de um prédio hospitalar ao fundo. Há nuvens de chuvas e raios apenas sobre a mulher negra.

Um homem branco, de classe média, nível superior e inserido no mercado de trabalho qualificado, provavelmente terá mais facilidade de acessar serviços de saúde e receber tratamento adequado, do que uma jovem negra, moradora da periferia, desempregada e sem ensino médio, vivendo sem um núcleo familiar (Parker, 2019; Gonçalves et al., 2020).

Por isso, as análises sobre os processos de estigma e estratégias para seu enfrentamento devem se basear numa perspectiva interseccional, que considera a ação de vários sistemas de opressão sobre uma pessoa ou uma trajetória de vida, gerando formas de marginalização ou exclusão social. Cabe lembrar que a abordagem da interseccionalidade procura entender os efeitos da interação de múltiplas estruturas e sistemas de dominação, associadas às hierarquias sociais, raciais, de gênero, entre outras, nas trajetórias das pessoas (Piscitelli, 2008).