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Campus Virtual Fiocruz

Diabetes Mellitus no SUS
Promoção, prevenção e o fortalecimento do autocuidado

Módulo 1 | Aula 2 Epidemiologia das comorbidades e complicações associadas ao Diabetes Mellitus

Tópico 3

Epidemiologia e vias de prevenção das complicações

O diabetes representa um desafio significativo para a saúde pública, tanto em termos de demanda por serviços de saúde quanto de custos diretos e indiretos, devido às suas complicações. Essas complicações são as principais responsáveis pelo impacto na qualidade de vida dos pacientes diabéticos.

Gastos com o Diabetes na saúde Pública do Brasil: O diabetes foi reconhecido como responsável por 4,7% do total de anos vividos com incapacidade (DALY, sigla em inglês para Disability Adjusted Life Years) e por 6,1% dos DALY originados por doenças crónicas não transmissíveis.

Entre 2008 e 2010, o diabetes foi responsável por cerca de 10% de todas as hospitalizações, enquanto sua prevalência em 2010 foi estimada em 6,3%.

Os gastos públicos com diabetes e suas complicações representaram 5,9% do total dos gastos públicos com saúde no Brasil em 2014. Esses gastos aumentam significativamente com a duração do diabetes mellitus e a presença de complicações.

O custo da doença renal crônica atribuível ao diabetes foi de aproximadamente US$ 180 milhões por ano entre 2010 e 2016.

Isso corresponde a 1,3% de todos os recursos fornecidos pelo Ministério da Saúde para cuidados de média e alta complexidade.

Fonte: Campus Virtual Fiocruz

A boa notícia é que já foi demonstrado, por meio de ensaios clínicos rigorosos e de grande abrangência, que é possível prevenir complicações do diabetes, ou pelo menos, reduzir sua incidência e/ou sua gravidade, a partir do controle de seus principais fatores de risco e de um acompanhamento proativo e concebido como parceria das pessoas portadoras de diabetes.

Panorama epidemiológico das complicações do diabetes

As complicações do diabetes são tradicionalmente categorizadas em complicações microvasculares, tais como:

  • retinopatia (afetando a retina);
  • nefropatia (afetando os rins);
  • neuropatia (afetando os nervos);
  • complicações macrovasculares (de fato, sinônimo de "cardiovasculares"), como doença coronariana (afetando artérias do coração), doença cerebrovascular e doenças vasculares periféricas (afetando artérias das pernas).

Apesar da falta de dados epidemiológicos internacionais sobre sua frequência exata, estima-se que o risco de complicações microvasculares em pessoas com diabetes seja de 10 a 20 vezes maior, enquanto o risco de complicações macrovasculares seja de 2 a 4 vezes maior em comparação com indivíduos sem diabetes.

No entanto, em números absolutos, as complicações macrovasculares são mais frequentes do que as complicações microvasculares. Isso pode ser ilustrado a partir dos resultados observados nos grupos controle do ensaio multicêntrico britânico UKPDS, que acompanhou mais de 5000 diabéticos tipo 2 recém-diagnosticados durante 10 anos.

Os cálculos mostram que, para cada óbito associado a uma complicação microvascular, ocorreram em média 50 óbitos de origem cardiovascular. Além disso, em termos de morbidade, revela incidências mais de duas vezes mais altas para as complicações macrovasculares graves do que para complicações microvasculares graves (falência renal terminal, cegueira, hemorragia intra-ocular). Observe as tabelas:

Duas tabelas. A primeira tabela é de Risco absoluto de complicações cardiovasculares nos grupos controle do UKPDS: incidências por mil pacientes por ano, a tabela é divida por: Complicações, UKPDS 33, UKPDS 34 (obesos) e UKPDS 38 (hipertensos).

Seguindo a ordem: Evento isquémico cardíaco, 29,7; 28,9; 40,6

Acidente vascular cerebral; 5,3; 5,9; 12,5

Arteriopatia periférica (óbito ou amputação); 1,9; 2,6; 3,0

Total cardiovascular; 36,3; 37,4; 56,1

Dos quais óbitos; 11,2; 12,3; 19,0.

A segunda tabela é risco absoluto de complicações reais e oculares nos grupos controle do UKPDS: incidências por mil pacientes por ano, dividido por: Complicações, UKPDS 33, UKPDS 34 (obesos) e UKPDS 38 (hipertensos).

Seguindo a ordem: Nefropatia (óbito ou diálise); 1,0; 0,7; 3,3

Retinopatia (fotocoagulação ou cegueira); 15,4; 12,5; 22,7

Extração de catarata; 7,4; 6,0; 4,7

Total rins + olhos; 23,8; 19,2; 30,7

Dos quais óbitos; 0,2; 9,2; 1,0.

Os dados do UKPDS foram obtidos no final dos anos 1990. Pouco se sabe sobre as tendências temporais desde então, porém parecem ser de diminuição.

A vigilância epidemiológica dos Estados Unidos permitiu mostrar que, ao longo de 20 anos (do 01/01/1990 ao 31/12/2010), houve grandes reduções absolutas observadas:

Tendências semelhantes de diminuição foram observadas em outros países, porém a maioria das observações vem de uma dúzia de países de alta renda na Europa, América do Norte, Austrália ou Ásia-Pacífico, com dados disponíveis principalmente para amputações de membros inferiores e mortalidade por todas as causas. Todavia, se sabe que ao menos para as doenças cardiovasculares, há uma redução contínua de incidência nas últimas décadas, observada em muitos países do mundo, e que em diabéticos, a mortalidade por essas doenças, que costumava representar mais de 50% dos óbitos, está em declínio.

No Brasil, uma revisão sistemática de estudos sobre as doenças crônicas avaliou, a partir do SisHiperdia, registro nacional de diabetes e hipertensão iniciado em 2002, que entre os mais de 1,6 milhão de casos registrados de diabetes:

Figura ilustrativa de um pé em azul-marinho.

4,3% tinham doença do "pé diabético" (complicação grave devida à combinação de arteriopatia e neuropatia) e 2,2% uma amputação prévia.

Figura ilustrativa mostrando dois rins.

7,8% tinham doença renal.

Figura ilustrativa de um coração.

7,8% tinham história de infarto do miocárdio.

Figura ilustrativa de um cérebro.

8,0% haviam sofrido acidente vascular cerebral.

O pareamento entre esses dados e o Sistema de Informações de Mortalidade mostrou que a mortalidade padronizada por idade e gênero em indivíduos com diabetes foi 57% mais alta que na população em geral. Do total de mortes, 6% foram causadas por doença renal, enquanto 38% foram relacionadas à doença cardiovascular.

Dados sobre a incidência das complicações do diabetes no Brasil são mais raros ainda. Merece destaque um estudo sobre a incidência de amputações de membros inferiores na região metropolitana do Rio de Janeiro, a qual foi de 13,9 por 100 mil habitantes para a população geral e de 180,6 por 100 mil habitantes para a população com diabetes, ou seja, uma taxa 13 vezes maior.

Outro estudo mais recente avaliou o risco relativo de uma pessoa com diabetes desenvolver doença renal terminal (necessitando diálise) a 6,1 vezes mais do que uma pessoa sem diabetes.

A prevenção das complicações do diabetes é possível…

Ensaios clínicos em larga escala realizados no período de 1990 a 2010 mostraram que era possível prevenir, ou reduzir a incidência e/ou a gravidade das complicações mais frequentes do diabetes. Esse benefício dependeu da melhoria do controle do açúcar no sangue e, em menor grau, do controle da pressão arterial.

O efeito positivo foi evidente e sem discussão para as complicações microvasculares. No entanto, houve mais incertezas em relação à prevenção das complicações macrovasculares, e até mesmo dúvidas sobre possíveis efeitos adversos para certas categorias de diabéticos, levando a rever as recomendações sobre controle glicêmico, em particular para pessoas mais idosas ou fragilizadas por comorbidades.

No entanto, essas incertezas sobre o impacto do controle da glicemia não devem desanimar os esforços de prevenção das complicações macrovasculares, pois o diabetes, sobretudo o diabetes tipo 2, não se resume à hiperglicemia que o define. Ele se insere no quadro mais geral da síndrome metabólica, conhecido fator de danos às artérias, e provavelmente, de fato, o maior responsável pelo alto risco de acidentes cardiovasculares dos diabéticos. Isso explica certamente porque os ensaios utilizando intervenções multifatoriais, com vista a reduzir não somente a glicemia, mas também todos os outros fatores de risco cardiovascular (sobrepeso, sedentarismo, pressão arterial, anomalias dos lipídios, tabagismo) trouxeram benefícios muito mais claramente evidenciados.

Estes e outros resultados embasaram as recomendações atuais para o acompanhamento dos diabéticos pelos serviços de saúde, com vista a reduzir a incidência das complicações, ou agir a partir de seu rastreamento precoce para evitar que evoluam para formas mais graves. Veja o quadro abaixo :

Recomendações usuais para prevenção das complicações do diabetes
1. Definição de objetivos precisos para o tratamento (níveis de glicemia e pressão a ser atingidos, controle dos outros fatores de risco cardiovascular,…)

Colaboração entre serviços de atenção básica e diversos especialistas (endocrinologistas, cardiologistas), com participação do próprio diabético para avaliar a real necessidade/possibilidade de atingir esses objetivos e estabelecer o plano de tratamento consequente.
2. Monitoramento regular para verificar se os objetivos estão de fato atingidos (e reajuste dos tratamentos se necessário)

Papel central da atenção básica e do próprio diabético, com ajuda de profissionais especializados como nutricionista, educador físico, e de outros recursos da comunidade (Academia da Cidade, ONGs de diabéticos,…).
3. Balanços regulares para buscar complicações incipientes (para as quais existem tratamentos específicos que podem frear a evolução ou diminuir a gravidade: por exemplo, fotocoagulação a laser, cuidados de podologia)

Colaboração entre a atenção básica/o próprio diabético (para garantir a regularidade destes balanços e seu agendamento) e diversos especialistas/níveis de maior complexidade.

...mas requer mudanças na organização da atenção à saúde

Atualmente, em todo o mundo, percebe-se que as recomendações usuais para prevenção das complicações do diabetes acima ainda estão longe de serem implementadas de maneira satisfatória.

Um dos principais obstáculos é que o modelo de atenção para portadores de diabetes, assim como para muitas outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), não corresponde ao modelo recomendado para o enfrentamento das enfermidades crônico-degenerativas.

No passado, o modelo de atenção à saúde foi construído e organizado para enfrentar basicamente as doenças infecciosas.

Atuando a partir da demanda espontânea dos pacientes, geralmente motivada pela existência de sintomas (febre, dor…), cabe ao médico a responsabilidade de estabelecer o diagnóstico e iniciar e acompanhar o tratamento, até que (na hipótese otimista) o paciente fique curado, e deixe de solicitar o médico.

Isso é diferente do cuidado necessário para pessoas com doenças crônicas, especialmente doenças assintomáticas como o diabetes. Para esses pacientes, é essencial um acompanhamento regular, mesmo na ausência de sintomas, pois não há perspectiva de cura, independentemente da qualidade do tratamento oferecido.

Devido à complexidade da doença e suas diversas complicações, a atenção adequada requer que diversos profissionais de saúde trabalhem em conjunto, sob a coordenação de um "organizador da linha de cuidado", que não necessariamente precisa ser um médico.

Além disso, a responsabilidade pelo tratamento e acompanhamento do plano de cuidados é compartilhada entre os profissionais de saúde e o próprio paciente. O paciente deixa de ser apenas um "paciente" e se torna um parceiro informado sobre sua saúde, assumindo um papel ativo na gestão da sua condição. Isso é fundamental para o sucesso no controle da doença e na prevenção de complicações.

Tudo isso ainda não é comum, nem entre as pessoas que procuram atendimento de saúde, nem para quem as atende, e o modelo "do passado" continua regulando muitas das interações entre "doente" e "provedor de cuidado".

O novo modelo de atenção à saúde, adequado às condições crônicas, requer não apenas mudanças nos hábitos de interação, mas também a mobilização de recursos do sistema de saúde como um todo, e até da comunidade. Esse modelo foi inicialmente concebido no final dos anos 1990 por pesquisadores do MacColl Institute for Healthcare Innovation, nos Estados Unidos, e é conhecido como Modelo de Cuidado Crônico (Chronic Care Model).

Fonte: Imagem adaptada de MacColl Institute for Healthcare Innovation (USA)

Infelizmente, apesar deste modelo ter sido amplamente difundido (mas raramente implantado de fato), as constatações apontam para falhas numerosas do acompanhamento das pessoas com diabetes, em relação a seus requisitos.

Por exemplo, estimativas recentes comprovam que ainda hoje, menos de 20% dos diabéticos atingem as metas de redução de fatores de risco cardiovascular – níveis de lipídios plasmáticos, pressão arterial, controle glicêmico, peso corporal e ausência de tabagismo – (Wong & Sattar, 2023).

A NCD Alliance (Aliança DCNT) lamenta que a realidade hoje ainda seja de sistemas de saúde fragmentados que continuam focados no tratamento de doenças específicas isoladas e apela para uma mudança em direção a um modelo integrado e centrado na pessoa que garanta cuidados seguros, apropriados e eficazes para todos, incluindo aqueles que vivem com comorbidades.

A situação podia ser diferente no Brasil, que tem um modelo original de atenção primária, a Estratégia Saúde da Família (ESF), que atua com vários elementos reconhecidos como fundamentais dentro do Chronic Care Model, sobretudo comparando com a situação vigente na maioria dos outros países, sejam ricos ou pobres:

  • equipe multiprofissional, apoio dos Núcleo de Apoio à Saúde da Família ( NASF), contribuindo para um atendimento básico resolutivo;
  • posição central na rede de atenção, favorecendo o papel de coordenadora da linha de cuidado;
  • territorialização que permite o acesso e o primeiro contato com as famílias, dentro de seu contexto;
  • cadastramento, facilitando a atenção longitudinal e o monitoramento das pessoas;
  • papel dos ACS, que reforça a atenção "pro-ativa" (dinâmica familiar, organização do ritmo das consultas, etc.);
  • educação para saúde, empoderando os usuários;
  • articulação e intervenções na comunidade, incentivando para a promoção da saúde.

No entanto, vários estudos conduzidos na Estratégia Saúde da Família mostraram que, apesar de avanços inquestionáveis, notadamente na implementação de ações educativas e no acesso aos medicamentos, a base do modelo assistencial permanece bastante tradicional, sem grandes diferenças no final com outros sistemas de saúde no rastreamento das DCNT, controle dos fatores de risco, acompanhamento rotineiro e processos de referência e contrarreferência.

Leitura
Complementar

Diabetes e hipertensão na atenção primária à saúde: reflexões, avanços e desafios

Livro com imagem de capa de uma xilogravura remetendo a literatura de cordel, no topo está escrito: Diabetes e Hipertensão, na atenção primária à saúde, reflexões, avanços e desafios. As ilustrações da capa são três pessoas conversando em frente a uma casa no quadro esquerdo da imagem e duas pessoas conversando em frente a uma árvore com maçãs do lado direito da imagem, no chão há um cacto e no céu um pássaro voando.
Fonte: Editora UFPE

Este livro celebra os 20 anos do Laboratório de Avaliação, Monitoramento e Vigilância em Saúde (LAM-Saúde), do Departamento de Saúde Coletiva do Instituto Aggeu Magalhães, unidade da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco. Ao longo dos seus 14 capítulos, oferece a gestores, profissionais de saúde, estudantes, pesquisadores e outros atores comprometidos com o bem-estar da população uma base de conhecimentos e perguntas atuais sobre dois agravos de destaque no mundo de hoje: a hipertensão arterial sistêmica (HAS) e o diabetes mellitus (DM). A publicação reúne os principais resultados dos trabalhos realizados pelo LAM-Saúde ao longo de duas décadas, resultados que contribuíram para a promoção de avanços científicos no campo da Atenção Básica referentes ao atendimento e acompanhamento de pessoas com hipertensão arterial e diabetes, assim como para a Saúde Pública brasileira.

Frente a essas constatações, os esforços atuais de gestores responsáveis pela saúde pública no Brasil se dirigem a adaptar e divulgar o Chronic Care Model para consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), como fez Eugênio Vilaça Mendes com o "Modelo de Atenção às Condições Crônicas".

O modelo está baseado nos conceitos da determinação social do processo saúde-doença e reafirma um papel central à construção de redes de atenção à saúde, centradas nos princípios da constituição brasileira de 1988: universalidade, equidade e integralidade das ações, tanto na atenção básica (como Estratégia Saúde da Família), como nos serviços de atenção especializadas, e ainda como no nível hospitalar quando necessário.

Mas no fundo, o que precisamos mesmo é mais conscientização, por parte de todos os atores do sistema de saúde, a respeito do modelo de cuidado específico exigido para enfrentar as enfermidades crônicas do século XXI.