Módulo 2 | Aula 1 Momentos Críticos no Desenvolvimento de Normas Éticas para a Pesquisa envolvendo Seres Humanos
Iniciamos este módulo com o pensamento do sociólogo francês Edgar Morin:
"A ciência moderna só se pôde desenvolver em se livrando de qualquer julgamento de valor; obedecendo a uma única ética, a do conhecimento [...]. A ciência deve reatar com a reflexão filosófica, como a filosofia, cujos moinhos giram vazios por não moer os grãos dos conhecimentos empíricos, deve reatar com as ciências. A ciência deve reatar com a consciência política e ética."
Morin E. Ciência com consciência, 1996: 10-11.
Essa afirmação não é exagerada e os exemplos que a demonstram não são poucos. Em 1822, um médico do exército americano, William Beaumont, atendeu a um paciente ferido por um tiro no abdome. O médico percebeu que havia uma oportunidade de aprendizagem no episódio e, por cerca de oito anos, realizou mais de duzentos experimentos sem fechar a ferida, o que lhe dava acesso direto ao estômago do paciente.
Assim, pode-se dizer que a pesquisa em Medicina, até a II Guerra Mundial, era realizada a partir de iniciativas isoladas e pouco integradas e tinha como participantes indivíduos com a enfermidade que se buscava tratar. Em algumas situações, os médicos chegavam a testar medicamentos em si próprios, mas não era regra. Apenas a Alemanha contava com alguma normativa ética sobre pesquisas realizadas em humanos, primeiro com a “Instrução sobre Intervenções Médicas com Objetivos Outros que Não Diagnóstico, Terapêutica ou Imunização”. Nesta normativa, por exemplo, proibia-se a realização de experimentos com crianças, mas isso não impediu que ocorresse o chamado Desastre de Lübeck, quando 251 neonatos receberam três doses da vacina BCG – oral, em teste. Como a vacina estava contaminada pela micobactéria ativa, 173 lactentes desenvolveram sinais clínicos ou radiológicos de tuberculose, mas sobreviveram, no entanto 72 morreram. Em 1931, a Alemanha estabeleceu as “Diretrizes para Novas Terapêuticas e Pesquisa em Seres Humanos”.
Com a II Guerra Mundial tudo mudou. As pesquisas passaram a ser vistas como parte do esforço de guerra, tanto na Alemanha como nos EUA, Inglaterra e outros países beligerantes e órgãos financiadores governamentais foram organizados. Destaque-se que na Alemanha já havia uma normativa sobre o tema, o que torna os abusos cometidos mais graves.
Com o fim da segunda grande guerra, os países vencedores, sabedores dos abusos cometidos pelos nazistas em judeus, ciganos, pessoas com deficiências ou prisioneiros políticos dentre outros, decidiram criar uma normativa, de validade mundial, para impedir novos abusos: o Código de Nuremberg.
O Código de Nuremberg foi um decálogo que limitava as possibilidades de experimentos com humanos. Veja a seguir alguns dos princípios estabelecidos:
Mas, como dissemos, essa norma parece ter sido elaborada especificamente para os derrotados na guerra, já que o médico bioeticista americano Henry Beecher, em 1966, publicou na New England Journal of Medicine, o Ethics and Clinical Research, um estudo sobre 22 experimentos realizados nos Estados Unidos da América (EUA) que tinham evidências de violação das normas éticas para pesquisa com humanos.
Antes mesmo dessa publicação, em 1964, a Associação Médica Mundial, em sua 18ª Assembleia, divulgou a Declaração de Helsinque, buscando reaproximar os médicos dos ensinamentos do Código de Nuremberg.
A Declaração de Helsinque tem legitimado várias práticas de pesquisa, como o uso de placebo — e até mesmo o que muitos pesquisadores do sul global entendem como duplo padrão —, bem como relativizando o acesso ao produto testado no pós-estudo, o que fez com que o Brasil deixasse de subscrever a íntegra desta Declaração a partir de 2008 (Resolução nº 1.885/2008 do CFM).

Um exemplo marcante de violação ética foi o Caso Tuskegee, um estudo conduzido nos Estados Unidos para observar o curso natural da sífilis sem oferecer tratamento adequado aos participantes. Esse experimento permaneceu em andamento por décadas até que, em 25 de agosto de 1972, o The New York Times publicou uma reportagem de Jean Heller denunciando sua existência. Esta reportagem, publicada em 25 de agosto denunciou a realização de um experimento na cidade de Tuskegee envolvendo 600 homens negros, com o objetivo de estudar o curso natural da sífilis, desde 1932. O objetivo do estudo era conhecer a história natural da doença em homens negros. Mesmo com a disponibilização da penicilina para civis, ainda na década de 1940, esta não foi oferecida para os participantes da pesquisa.
A divulgação dessa denúncia em 1972 levou o Congresso Americano a criar uma comissão (National Commission for the Protection of Human Subjects in Biomedical and Behavioral Research) que deveria estabelecer os princípios éticos a serem obedecidos por pesquisadores nos EUA. Suas conclusões foram divulgadas em 1978 no documento que ficou conhecido como Relatório Belmont, que apresenta três princípios éticos que devem ser considerados no contexto da pesquisa:



Cada um desses princípios serve como uma diretriz fundamental e deve ser considerado na condução de pesquisas com seres humanos. Quando há conflito entre eles, é necessário ponderar qual deve prevalecer e de que forma. São chamados de princípios prima facie, pois não há uma hierarquia prévia entre eles.
No mesmo ano, dois filósofos estadunidenses que participaram da Comissão de Belmont, divulgaram um livro com o título Principles of Biomedical Ethics. Neste livro, os autores não se restringem a discutir a ética em pesquisa, mas incluem toda a prática profissional. Sua proposta teórica mantém a ideia de princípios prima facie, mas os explicita como “respeito à autonomia das pessoas, respeito aos princípios da beneficência, não maleficência e da justiça”. Essa formulação com quatro princípios é a que tem inspirado/fundamentado diferentes diretrizes éticas em pesquisas envolvendo seres humanos. Suas raízes podem ser reconhecidas desde o tempo de Hipócrates (primeiro não fazer o mal; fazer o bem) ou no enunciado liberal da Revolução Francesa (igualdade, liberdade e fraternidade).
Observe a seguir, os momentos críticos no desenvolvimento de normas éticas para pesquisa envolvendo seres humanos.
1940
2ª Guerra Mundial
1947
Código de Nuremberg
1960
Escândalo nos EUA: experimentação médica em crianças na América da Guerra Fria.
1964
AMM - Helsinque
1966
Publicação do artigo de Henry Beecher
1972
Denúncia da pesquisa Tuskegee
1979
Divulgação do Relatório de Belmont.
Publicação da primeira edição do livro Principles of Biomedical Ethics.
1988
Publicação da primeira normativa ética no Brasil (Resolução do CNS 01/1988).
1996
Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde.
2002
Publicação da reportagem de Solano Lopes no Correio Brasiliense, com denúncias graves de pesquisas realizadas no Brasil.
Apenas depois do fim da última ditadura e depois da promulgação da Nova Constituição Brasileira, em 1988, é que passamos a ter alguma normativa sobre o tema. A primeira resolução do Conselho Nacional de Saúde após este evento foi para normatizar pesquisas na área da saúde e fazia considerações sobre ética em pesquisas, mas seu impacto foi pequeno. A partir de 1985, o Conselho Nacional de Saúde passou a promover uma discussão com diversos segmentos profissionais e da sociedade civil que têm interesse na temática como uma estratégia de construção de um mínimo consensual para a elaboração de uma nova diretiva. Participaram pesquisadores, conselhos profissionais, representantes de Igrejas, da OAB, de centros de pesquisa, de usuários do SUS e associações que congregam indivíduos com determinadas enfermidades. Deste processo surgiu a Resolução 196/1996 do CNS que era bem mais completa que a anterior e representativa de diferentes campos da prática científica. A vantagem de a regulamentação estar em documentos infralegais é a facilidade com que se pode atualizar e aperfeiçoar a regulamentação, "pari passu" ("simultaneamente") ao desenvolvimento tecnocientífico.

Como em diferentes países, também a existência de uma regulação sobre o que se pode ou não se deve fazer em pesquisas no Brasil não impediu que diversos escândalos acontecessem, como denunciou o jornalista Solano Nascimento no jornal Correio Brasiliense em 17 de março de 2002. Ele encontrou em publicações científicas, a exemplo do que Beecher fez na década de 1960 evidências de práticas inaceitáveis, do ponto de vista ético, de pesquisas realizadas com humanos. Entre outras, pesquisas com a provocação de sintomas para testar medicamentos específicos (crianças com história de broncoespasmo), ou apenas para que os pesquisadores pudessem observar o fenômeno (pacientes com síndrome do pânico que tiveram ataques de pânico provocados pelos pesquisadores) e mesmo uso de placebo em crianças acometidas por enfermidade parasitária para avaliar o dano provocado por esta doença ao crescimento e desenvolvimento das pacientes.