Módulo 2 | Aula 1 Pessoas vivendo com HIV/Aids e
pessoas com IST

Tópico 1

Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/Aids

Nos anos 1980, Herbert Daniel, um ativista de grande destaque do movimento social brasileiro, definiu o HIV/Aids como um fenômeno social (ao longo deste tópico você entenderá melhor este fenômeno) ao afirmar que o estigma, o preconceito e a discriminação eram um vírus ideológico tão ou mais perigoso que o próprio vírus biológico da Aids.

Dimensões políticas e sociais da epidemia de Aids no passado

Durante as décadas de 1980 e 1990, o fato de a Aids ter sido associada à homossexualidade masculina e a outros grupos sociais marginalizados e não a uma doença grave, que poderia atingir qualquer indivíduo e que merecia uma resposta de saúde pública, evidencia exatamente a dimensão política e social da epidemia de HIV/Aids, para além da sua dimensão meramente biológica.

No Brasil, essa construção social estigmatizante foi reproduzida por setores conservadores da sociedade, inclusive na condução da gestão pública; mas, provocou uma forte resposta da sociedade civil organizada sob a forma de resistência, em especial por parte de ativistas do movimento LGBT e familiares de pessoas doentes.

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Confira a entrevista Viva a Vida: Herbert Daniel, o Amor e a Aids nos anos 80.

Sinopse: Entrevista de Herbert Daniel na TV Manchete em 1988, sobre a dimensão social da Aids no Brasil e no Mundo nos anos 1980.

Parte 1 de 3

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Parte 2 de 3

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Parte 3 de 3

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Respostas históricas ao estigma do HIV/Aids

Em diferentes países, a sociedade civil organizada teve um papel fundamental nas respostas contra o estigma e a discriminação em torno do HIV/Aids. Tais respostas incluíam diferentes formas de questionamentos e crítica social aos padrões vigentes de moralidade sexual, aos modos de tratamento das pessoas dependentes de drogas, aos princípios e alcances dos sistemas de saúde e a processos de opressão social relacionados ao gênero, à diferenciação racial e de classe. Além disso, muitos debates foram promovidos para afiançar a ideia de que o HIV/Aids era um problema de toda a sociedade e não somente de alguns segmentos sociais. Igualmente importantes foram as reflexões sociais suscitadas sobre a exclusão social das PVHA como uma sentença de morte.

Cabe recordar algumas ações promovidas pela sociedade civil organizada que buscaram combater a discriminação e estigma em torno da Aids. Por exemplo, o grupo norte americano – também muito ativo na França - Act UP, que até hoje atua na cidade de Nova Iorque, popularizou célebres campanhas e atos públicos. No Brasil, diversas associações e coletivos se organizaram para oferecer respostas à crescente epidemia, apoiando-se nos princípios da solidariedade, da não-discriminação e da cidadania. O Brasil também foi um contexto em que se produziram respostas sociais exemplares à epidemia.

A visibilidade em torno do HIV/Aids e os questionamentos dos processos de discriminação, realizados sobretudo por meio da ação política da sociedade civil organizada, contribuíram para a desnaturalização dos significados negativos e desqualificantes ligados ao HIV/Aids, trazendo sentidos positivos de ser uma PVHA.

Ao longo da história da Aids no Brasil, as parcerias entre o movimento social, ativistas, pessoas vivendo e convivendo com o HIV (PVHA) e profissionais de saúde e de outros setores, assim como instituições governamentais e privadas, resultaram no desenvolvimento de ações de prevenção, cuidado, solidariedade e direitos das PVHA no campo da saúde pública. Ou seja, se o principal problema da epidemia não era o vírus biológico e sim o vírus social, conforme reflexão de Herbert Daniel, o enfrentamento da epidemia também não deveria se limitar a ações biomédicas, mas, incluir ações de caráter social e político.

Desse modo, muito das repostas brasileiras à epidemia esteve vinculado às preocupações com direitos humanos, expansão dos direitos sociais, garantia das liberdades individuais e questionamentos das moralidades sexuais restritivas.

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Conheça o projeto Zero Discriminação nos Serviços de Saúde desenvolvido pela UNAIDS e o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, com o objetivo de criar um espaço informal de escuta dos usuários de serviços de saúde, a fim de conhecer suas experiências e entender suas expectativas e propostas para construção de serviços de saúde sem discriminação.

Aids na atualidade: avanços e desafios

Ao longo dos 40 anos da epidemia de HIV/Aids houve importantes avanços que resultaram no desenvolvimento e acesso a diferentes meios de prevenção e tratamento e a garantia de direitos para as PVHA. No entanto, a epidemia ainda representa um importante problema de saúde pública em vários países, particularmente entre grupos sociais marginalizados e em contextos de vulnerabilidade social. Tais grupos, hoje denominados de populações-chave, incluem: pessoas privadas de liberdade, homens que fazem sexo com outros homens (HSH), pessoas trans e travestis, pessoas que usam álcool e outras drogas e profissionais do sexo. A epidemia tem igualmente atingido segmentos de baixa renda (processo chamado de pauperização), jovens, mulheres heterossexuais e pessoas negras, sobretudo no Brasil.

Entender e controlar a epidemia de HIV/Aids no Brasil exige considerar que, para além do acesso aos meios de prevenção e tratamento, é necessário o enfrentamento das desigualdades sociais, de gênero e étnico/racial e dos processos de estigmatização relativos à Aids, diversidade sexual e à prostituição. É importante lembrar que tais fatores comprometem o acesso aos recursos preventivos e de cuidado atualmente disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).

Para uma melhor compreensão sobre os aspectos relacionados à persistência do estigma, a discriminação e o preconceito em relação ao HIV/Aids, recomendamos que você assista ao workshop de Richard Parker, diretor-presidente da ABIA.

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Confira o Workshop “Conceituação sobre Estigma, Preconceitos e Discriminação”.

Sinopse: A apresentação possibilita uma compreensão mais ampla da origem e das respostas sociais frente ao estigma da Aids ao longo dos 40 anos da epidemia.

Fonte: Youtube

Implicações do estigma da Aids

Como dito anteriormente, diversos estudos revelam que o estigma em relação às PVHA motiva atitudes negativas, discriminação e violência dirigidas a essas pessoas. Este processo faz com que essas pessoas experimentem uma desvalorização social, promovendo múltiplas vulnerabilidades.

Devido à intersecção de diferentes tipos de estigma e discriminações, as populações que vivem com HIV/Aids são ainda mais suscetíveis às disparidades de saúde relacionadas ao HIV/Aids (Stahlman et al., 2017). Por exemplo, as populações-chave vivendo com HIV/Aids (pessoas privadas de liberdade, homens que fazem sexo com outros homens (HSH), pessoas trans, pessoas que usam álcool e outras drogas e profissionais do sexo) enfrentam simultaneamente o estigma relacionado ao HIV/Aids e ao fato de fazer parte de um desses grupos sociais marginalizados, o que produz formas variadas de vulnerabilidade. Estas intersecções serão trabalhadas mais detalhadamente nas aulas subsequentes que tratam de outras formas de manifestação de estigma e suas interfaces.

A manifestação do estigma, ou seja, a discriminação, relativa ao HIV/Aids, registrada desde o início da epidemia na década de 1980, incluem o aumento da vulnerabilidade para agravos em saúde mental. Várias pesquisas têm demonstrado que o estigma em relação às PVHA leva à piora da saúde mental, menores níveis de uso dos serviços de saúde e menor adesão a medicamentos antirretrovirais. São exemplos de discriminação associada ao HIV/Aids agressões verbais, como fofocas e comentários discriminatórios, perda de fonte de renda ou emprego em função da sorologia positiva, exclusão em atividades sociais e agressões físicas. No contexto dos serviços de saúde, por sua vez, ocorre minimização do contato físico ou adoção de precauções extras descabidas (como a utilização de dois pares de luvas), recusa na assistência em saúde ou aconselhamento preconceituoso (sugerir não fazer sexo, por exemplo), exposição não consentida da sorologia positiva, além de agressões físicas e verbais.

Mesmo após o desenvolvimento dos medicamentos antirretrovirais que proporcionaram maior qualidade de vida às PVHA, uma série de mitos, estereótipos e crenças persistem no senso comum, contribuindo para o reforço deste tipo de estigma (Parker & Aggleton, 2021).

A manutenção desse tipo de estigma pode ser explicada por questões como a não possibilidade de cura, a associação do HIV/Aids com comportamentos sexuais e identidade de gênero estigmatizados (a evocada “promiscuidade”), a persistente culpabilização de quem contrai o vírus e crenças morais e religiosas a respeito do processo de adoecimento (Suit & Pereira, 2008).

Ao longo dos anos, vários estudos buscaram caracterizar o estigma e a discriminação direcionado às PVHA no Brasil. Estas pesquisas têm sido realizadas desde o final da década de 1990 especialmente nos campos da Psicologia, Antropologia, Saúde Coletiva e Serviço Social (Guimarães, 1996; Paiva et al., 2002; Carvalho et al., 2007; Pelucio, 2011 e Danfá et al., 2017). Veremos abaixo os achados de algumas pesquisas nacionais realizadas neste âmbito:

Mapeando o estigma associado à Aids

O impacto do diagnóstico tardio e da adesão ao tratamento, decorrente do estigma da Aids, tem motivado o mapeamento do nível de estigma e discriminação experimentado pelas PVHA, como indicam outras pesquisas:

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Pesquisa de Conhecimento, Atitudes e Práticas na População Brasileira: promovida pelo Ministério da Saúde, o estudo identificou os conhecimentos, práticas e atitudes das PVHA e outras IST.

Confira aqui
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O Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/Aids – Brasil é uma ferramenta para detectar e medir a mudança de tendências em relação ao estigma e à discriminação relacionados ao HIV, a partir da perspectiva das pessoas vivendo com HIV.

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Confira o vídeo: Como a discriminação afeta a vida das pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil?

Fonte: Youtube

A realização deste estudo inédito no país tornou-se possível graças a uma parceria entre diversas organizações e instituições: Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP+); Movimento Nacional das Cidadãs Positivas (MNCP); Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV e Aids (RNAJVHA); Rede Nacional de Mulheres Travestis e Transexuais e Homens Trans vivendo e convivendo com HIV/Aids (RNTTHP); ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero; Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) no Brasil; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil; e Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)PUC-RS).

O levantamento realizado em 2019, mostrou que das 1.784 pessoas entrevistadas, 64,1% já́ sofreu alguma forma de estigma ou discriminação pelo fato de viverem com HIV/Aids. Comentários discriminatórios ou especulativos já afetaram 46,3% delas, enquanto 41% do grupo diz ter sido alvo de comentários feitos por pessoas da própria família. As situações de discriminação incluem assédio verbal (25,3%), perda de fonte de renda ou emprego (19,6%) e agressões físicas (6,0%). Além disso, das pessoas entrevistadas, 15,3% afirmam ter sofrido algum tipo de discriminação por parte de profissionais da saúde pelo fato de viverem com HIV ou com Aids, incluindo atitudes como o esquivamento do contato físico (6,8%) e a quebra de sigilo sem consentimento (5,8%).

Chama ainda atenção que, embora estejamos na quarta década de epidemia, 87,8% dos entrevistados afirmam que ainda é difícil contar para as pessoas sobre sua sorologia positiva para o HIV; 36,7% sentem vergonha e 21% sentem nojo de ser HIV positivo. Tal fato denota como o estigma e a discriminação ainda são processos importantes de serem trabalhados neste grupo social.

Estigma imposto

Conceitualmente compreendido como um conjunto de experiências de perseguição, rejeição, agressão, violência ou discriminação motivadas pela orientação sexual, identidade e de gênero ou status sorológico. Por exemplo, estão caracterizados aqui os processos de agressão física e verbal, discriminação e exclusão social enfrentados em diferentes contextos como o dos serviços de saúde.

Preconceito internalizado

Definido como o processo individual no qual são interiorizadas atitudes sociais negativas de forma a assimilá-las como parte da identidade pessoal. Está associada à vergonha, evitação e comportamentos autodestrutivos. São exemplos os sentimentos de nojo e vergonha decorrentes da sorologia positiva ao HIV/Aids ou os desejos de modificação da orientação sexual e identidade de gênero. São componentes importantes de serem trabalhados nos contextos de aconselhamento pré e pós testagem para o HIV/Aids.

Encobrimento

Refere-se às tentativas do indivíduo em esconder a sua sexualidade, identidade de gênero ou estado sorológico pelo receio de punição e rejeição. Igualmente tem relação com a evitação de espaços públicos, como serviços de saúde, mesmo quando há a necessidade, antecipando uma possível discriminação em função da discriminação sofrida no passado. Por este motivo, há grande necessidade de formação continuada de profissionais de saúde de forma a reduzir a manifestação da discriminação que, como visto, impacta na evitação futura de serviços de saúde.

Avanços no campo dos direitos das PVHA

Para enfrentarmos a epidemia e proteger a integridade das pessoas vivendo com HIV e com outras IST, é necessário combater práticas discriminatórias, baseadas em estigmas, tendo em vista que elas causam sofrimento e podem motivar falhas na prevenção, diagnóstico e adesão ao tratamento. Algumas iniciativas e avanços no campo jurídico e político, que serão citadas neste curso mais adiante, devem ser destacadas:

Desde o final dos anos 1980, em diversos países o dia 1 de dezembro foi instituído como a data voltada para a visibilidade da agenda de luta contra o HIV/Aids. No Brasil, a campanha foi reforçada com a instituição da Lei nº 13.504, de 7 de novembro de 2017.

Em 2014, foi publicada a Lei nº 12.984, que define como crime a discriminação das PVHA no Brasil.

No Brasil, as PVHA têm direito ao auxílio-doença -- Lei nº 7.670/1988, também prevista na Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, revogada pela Instrução Normativa INSS Nº 77 e alterada pela Instrução Normativa INSS nº 117/2021 -- e aposentadoria independente do período de carência (Lei nº 8.213/91).

Além disso, as PVHA podem recorrer a outros direitos trabalhistas, como isenção do Imposto de Renda (artigo 6º, inciso XIV, da Lei n° 7.713/88) e saque dos valores depositados no FGTS (Lei nº 7.670/1988).

Pessoas com HIV têm assegurado ainda o direito à isenção do Imposto de Renda e o ressarcimento de valores retroativos a 5 anos a partir da comprovação da infecção, como previsto no artigo 6º, inciso XIV, da Lei n° 7.713/88. Por fim, há a garantia de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa incapacitada para a vida independente e para o trabalho (Lei 8.742/1993 e Decreto 3.048/1999).

Fonte: Ralf Schmitzer / Noun Project

Há dispositivos específicos que garantem o direito a não obrigatoriedade de testagem no emprego e a garantia do sigilo da sorologia positiva no contexto profissional público (Portaria Interministerial nº 869, de 12/08/1992,) ou privado (Portaria Ministro de Estado do Trabalho e Emprego – nº 1.927 de 10/12/2014 e Portaria nº 1.246, de 28/05/2010, do Ministério do Trabalho e Emprego). Isso inclui a admissão, testes periódicos ou de desligamento. Além disso, profissionais de saúde têm a obrigação de somente averiguar a capacidade laborativa do trabalhador nos exames legais (Art.168 da CLT), sem referência a seu estado sorológico.

Diversos municípios brasileiros também instituíram legalmente políticas de isenção das tarifas de transporte público para as PVHA.

Saiba mais...
  • No site do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis é possível acessar informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde sobre HIV/Aids, incluindo os direitos das PVHA.
  • Frente à importância da cultura na construção de representações políticas e sociais, os vários filmes que abordam a história das lutas, tensões e conquistas associada à epidemia de HIV/Aids podem ser usados para promover debates sobre o tema. Veja algumas sugestões: