Módulo 2 | Aula 3 Pessoas acometidas por tuberculose e pessoas acometidas pelas hepatites virais

Tópico 2

Hepatites virais

Hepatite é qualquer infecção no fígado, as formas mais comuns dessa doença são as hepatites virais causadas por vírus hepatotrópicos, que na maioria das vezes ocorrem de forma branda e assintomática.

Aspectos históricos das hepatites virais

Existem relatos sobre a ocorrência de icterícia de origem infecciosa na Babilônia há 2500 anos e em escritos de Hipócrates há cerca de 400 anos A.C. A partir do final do século XIX, a ciência moderna começa a consolidar conhecimentos em torno do que hoje identificamos como hepatites.

  1. 1895

    Em 1895 documentou-se pela primeira vez na literatura especializada uma forma de hepatite transmitida de forma parenteral.

  2. 1917 - 1919

    Entre os anos de 1917 e 1919, durante a Primeira Guerra Mundial, foram registrados casos de hepatites agudas transmitidas de forma oral-fecal. Tratava-se provavelmente de casos de hepatite A, cujo vírus causador foi descoberto apenas em 1973.

  3. 1965

    Em 1965, o cientista Baruch Blumberg revelou a presença do antígeno “Austrália” em soros de pessoas com leucemia. Alguns anos depois, ele foi caracterizado como antígeno de superfície do vírus da hepatite B (HBsAg).

  4. 1989

    A identificação do vírus da hepatite C foi mais tardia, ocorrendo somente em 1989, mas representou um importante marco científico ao esclarecer parte das hepatites crônicas “não-A não-B” (Fonseca, 2010). Devido a esta descoberta, o Prêmio Nobel em Medicina de 2020 foi entregue aos cientistas Harley Alter, Michael Houghton e Charles M Rice envolvidos na identificação desse vírus.

Para entender melhor as particularidades das hepatites virais, é importante se atentar para suas formas de transmissão e os recursos para sua prevenção e tratamento.

Hepatite A

O vírus da hepatite A (HAV), pertencente à família Picornaviridae que é eliminado nas fezes.

Transmissão

A transmissão ocorre por via fecal-oral, geralmente pela ingestão de água e/ou alimentos contaminados. Isso ajuda a entender por que a prevalência da hepatite A é maior em áreas de ausência de saneamento básico. Embora a transmissão seja maior entre pessoas de alta vulnerabilidade social, a hepatite A pode ser transmitida ainda por via sexual decorrente de práticas sexuais oral-anal.

Sintomas

A infecção pelo HAV provoca hepatite aguda sem evolução para formas crônicas. A maioria dos indivíduos infectados apresenta sintomas leves e inespecíficos, como: mal-estar, fadiga, febre baixa e sintomas digestivos. Algumas pessoas podem apresentar quadros mais acentuados associados com icterícia e cerca de 1% pode evoluir para insuficiência hepática aguda.

Prevenção

Ocorre por meio da vacinação (dose única aos 15 meses de idade) e por medidas como lavagem das mãos, boa higienização de alimentos consumidos crus, cozinhar bem os alimentos, uso de instalações sanitárias e higienização adequada do corpo (principalmente região genital), e de acessórios eróticos.

Tratamento

Não existe tratamento específico, sendo o repouso e medicamentos para os sintomas suficientes para os casos de hepatite A. Nos casos de insuficiência hepática aguda (1%) é necessário realizar um transplante hepático.

Hepatite B e C

O agente etiológico da Hepatite B é o vírus HBV, pertencente à família Hepadnaviridae, enquanto na Hepatite C o vírus é o HCV, pertencente à família Flaviviridae.

Transmissão

Podem ocorrer por contato sexual, pela via perinatal, compartilhamento de seringas e agulhas e uso de instrumentos cortantes não esterilizados (alicates de manicure, agulhas para realização de tatuagem e de micropigmentação etc.).

Como você viu, o HCV só foi descoberto em 1989, portanto pessoas que receberam transfusões sanguíneas antes da década de 1990 podem ter sido infectadas por esse vírus.

As pessoas da população geral, mesmo menos vulneráveis, podem estar expostas se não se prevenirem dos vírus das hepatites B e C, a partir da utilização de seringas e agulhas estéreis e do uso do preservativo durante as relações sexuais.

Sintomas

As pessoas cronicamente infectadas pelos vírus das hepatites B ou C são geralmente assintomáticas até o desenvolvimento de cirrose hepática. Elas são identificáveis somente a partir de sinais de icterícia ou pelos exames sorológicos. Por isso, muitas pessoas desconhecem que estão infectadas. Pelo caráter de apresentação clínica assintomática da maioria dos casos de hepatites B e C, a testagem é essencial para encaminhamento para tratamento das pessoas infectadas e prevenção de novos casos.

Prevenção

A prevenção das hepatites B e C é realizada pelo uso de preservativo durante o ato sexual, pelo não compartilhamento de seringas, agulhas e objetos pessoais (barbeadores, alicates de manicure) e pelo uso de instrumentos cortantes esterilizados (instrumentos de procedimentos odontológicos e colocação de piercings, além de agulhas para realização de tatuagem e de micropigmentação).

A prevenção do HBV também é realizada por meio da vacina hepatite B. O esquema básico é composto por 03 (três) doses, com intervalos de 30 dias da primeira para a segunda dose e 180 dias da primeira para a terceira dose. Em 2016, a vacina hepatite B foi disponibilizada para toda a população brasileira.

Durante o acompanhamento clínico pré-natal, a transmissão mãe-filho pode ser prevenida pela vacinação da mãe, e na presença da infecção materna pelo vírus HBV, o uso de antivirais no final da gestação. Para prevenção da transmissão vertical de hepatites virais o Ministério da Saúde do Brasil recomenda que todo recém-nascido receba uma dose da vacina hepatite B ao nascer, preferencialmente nas primeiras 12h a 24h, ainda na maternidade e os nascidos de mulheres com HBV (HBsAg reagente) recebam também a imunoglobulina humana anti-hepatite B (IGHAHB). As demais doses da vacina devem ser administradas aos 2, 4 e 6 meses de vida da criança com a vacina Penta. Vale ressaltar que este documento não contraindica a amamentação.

Em relação à hepatite C, recomenda-se a testagem para HCV universal para as gestantes, na primeira consulta de pré-natal (preferencialmente no primeiro trimestre).

Tratamento

Medicamentos orais, seguros e altamente eficazes, chamados de antivirais de ação direta estão disponíveis para todas as pessoas acometidas pela hepatite C (acesso universal) pelo SUS. Porém, os medicamentos para tratamento são teratogênicos e não podem ser administrados durante gestação.

Apesar deste avanço tecnológico, a cascata de cuidado da hepatite C ainda é bastante deficiente no Brasil (Carvalho-Louro et al., 2020). Além disso, a pandemia do Covid-19 impactou de forma significativa na identificação de novos casos e no programa de eliminação de hepatites virais no país (Coutinho et al., 2021).

População-alvo para hepatites virais

Existem pessoas que estão mais vulnerabilizadas em relação às hepatites virais, são elas:

População em situação de rua

População indígena

Quilombolas

Trabalhadores(as) do sexo

Pessoas privadas de liberdade

População LGBTQIA+

Pessoas que consomem álcool e outras drogas

Pessoas vivendo com HIV

Ao longo desta aula serão abordados os estigmas que as pessoas acometidas pelas hepatites virais sofrem, e também estratégias, ações e práticas para o combate dessa infecção, do estigma e da discriminação que surgem a partir desse agravo.

Aspectos sociais das hepatites virais

O estigma associado às hepatites virais vem da falta de conhecimento sobre os tipos e formas de transmissão dos vírus. Erroneamente a presença das hepatites B e C é associada ao alcoolismo ou ao uso de outras drogas, à promiscuidade sexual, à homossexualidade e aos trabalhadores(as) do sexo.

Vale destacar que a testagem obrigatória para hepatites virais em estabelecimentos prisionais, entre profissionais do sexo e pessoas que usam drogas reforça o preconceito e a discriminação.

A descoberta da infecção pelos vírus HBV e/ou HCV pode resultar em sentimentos de ansiedade, depressão, medo, raiva e culpa (Sousa e Cruvinel, 2008).

Estes conflitos devem ser abordados com as pessoas com HAV, HBV e HVC para redução do estigma e melhora da sua qualidade de vida. A desinformação sobre a transmissão e o medo de infectar outras pessoas podem causar o isolamento social e dissolução de relacionamentos íntimos.

O estigma vinculado às hepatites virais impacta no acesso ao cuidado médico, na saúde mental e na capacidade para trabalhar e manter relacionamentos sociais. A maioria dos indivíduos com HAV, HBV e HVC interioriza percepções negativas da sociedade e experimenta barreiras para tratamento médico.

Para refletir...

Além disso, cerca de 40% das pessoas vivendo com hepatites virais crônicas relatam perda de emprego e/ou dificuldade de oportunidades de trabalho.

Você como profissional de saúde deve ter cuidado para não reforçar estereótipos e emitir julgamentos que podem impactar o curso do tratamento das pessoas com HBV e/ou HVC. A mudança deste comportamento ajudará a evitar o isolamento, provocando aumento na procura por atendimento médico e melhora na adesão ao tratamento, mas como promover essa mudança comportamental para minimizar o estigma e a discriminação?

Para que esse movimento de mudança aconteça, é importante que todos tenham acesso às informações e muito diálogo sobre essas questões, por isso é necessário utilizar algumas estratégias, como por exemplo: treinamentos da rede, treinamentos para gestores, discussão de casos, realização de parcerias locais no território para elaboração de atividades, dentre outras ações.

Normas e Legislações

Você sabia que é considerado crime caso algum médico ou outro profissional de saúde torne público que a pessoa é portadora da hepatite C?

Segundo artigo 154 do Código Penal essa atitude é considerada como crime de sigilo profissional:

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revelar alguém, sem justa causa segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem.

BRASIL (1940)

Além disso, o artigo 102 do Código de Ética Médica estabelece ser:

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vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, ou dever legal.

CFM 1.931/09

Pais e/ou responsáveis legais por crianças não são obrigados a informar a direção da escola sobre sua eventual condição de portador(a) de hepatite C. Caso a direção da escola seja comunicada pelos pais ou responsáveis, esta deve manter total sigilo sobre o fato e garantir os cuidados necessários à criança.

Segundo a ex-deputada Maria Lúcia Prandi, há diversos relatos de tentativas de demissão e de impedimento de acesso a vagas no trabalho. Isso mostra que ainda há muito a ser feito para assegurar o tratamento igualitário aos portadores da doença, em especial de hepatite C.

Por isso, é importante reforçar que o indivíduo com HVC não necessariamente terá implicações ou redução na sua capacidade para o trabalho. O art. 182 da Consolidação das Leis do Trabalho exige exames para apurar a aptidão física na função que deve exercer, o que torna desnecessária e discriminatória a solicitação de teste anti-HCV. Além disso, a Lei nº 9.029/95, proíbe:

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a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção.

BRASIL (1995)

Na tentativa de reduzir a discriminação e o estigma dessas pessoas, foi elaborado o PL 7651/14 que proibia a discriminação contra pessoa com HAV, HBV ou HVC. Veja alguns detalhes desse projeto:

Veja alguns detalhes desse projeto

Embora o PL 7651/14 tenha sido aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, infelizmente ele foi arquivado.

Contudo, em 2022 “foi sancionada a Lei Nº 14.289, de 3 de janeiro de 2022, que torna obrigatória a preservação do sigilo sobre a condição de pessoa que vive com infecção pelo HIV e hepatites crônicas (HBV e HCV), além da pessoa acometida pela hanseníase e tuberculose. A nova lei altera e atualiza a antiga legislação de nº 6.259, de 30 de outubro de 1975”.

Fonte: Agência de Notícias da Aids de 5/1/2022

A Sociedade Brasileira de Hepatologia divulgou uma cartilha (s/d) sobre os direitos e obrigações legais na hepatite C, elaborada pelo Grupo Otimismo de Apoio a Portadores de Hepatite C, no Rio de Janeiro e a FAÇA - Fundação Açoriana para o Controle da Aids, em Florianópolis, para atender às diversas situações com que se deparam os portadores de hepatite C. Em relação ao estigma e discriminação foram abordados a obrigatoriedade de testagem e a divulgação de infecção pelo HCV.

Ações e práticas comunitárias

A realização de ações de base comunitária, envolvendo organizações da sociedade civil para prevenção, rastreio e diagnóstico de infecção pelo HBV e/ou HCV em populações prioritárias, além do encaminhamento das pessoas infectadas para serviços de saúde, são essenciais no combate das hepatites virais no Brasil.

Desde 2003, o Ministério da Saúde apoiou projetos de organizações da sociedade civil (OSC) para fortalecer ou ampliar ações de base comunitária para a prevenção e o controle dessas doenças, como programas de educação, de ampliação do diagnóstico e de redução de preconceitos.

Recentemente o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) vem desenvolvendo, em conjunto com o Ministério da Saúde, a promoção de projetos para acesso aos serviços de prevenção, diagnóstico e tratamento de IST, HIV/Aids e hepatites virais para as populações-chave e demais populações prioritárias.

Como indicado no site do PNUD:

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No projeto com o PNUD, a [organização da sociedade civil] Vale a Vida tem realizado 100 testes de hepatite C, 75 testes de hepatite D e dez ações comunitárias mensais entre as populações prioritárias do município de Pelotas. A organização também prevê capacitar 300 agentes de saúde e agentes comunitários com um curso de sensibilização sobre hepatites virais. No caso da hepatite C, as populações-chave incluem pessoas com mais de 40 anos, pessoas em situação de rua, pessoas que usam álcool e outras drogas e profissionais do sexo. No caso da hepatite B, também são prioritárias pessoas com idade igual ou superior a 20 anos que não tenham completado o ciclo de vacinação.

PNUD (2021)

Um membro da organização Vale a Vida destaca a relevância de acompanhar pessoas com resultado positivo por meio de busca ativa. No mesmo site, Gerson Pereira, diretor do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde, afirmou:

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Assim, essa parceria com as organizações da sociedade civil é de extrema relevância para contribuir para que o teste chegue a populações que têm mais dificuldades de acessar ou ser acessadas pelo Sistema Único de Saúde, mas que são mais vulneráveis às infecções pelos vírus B e C.

Cabe lembrar que a diretriz de “Prevenção Combinada”, recomendada pelo Ministério da Saúde, indica a adoção de várias medidas de prevenção, de forma singular e simultânea, tomadas no nível dos indivíduos, das suas relações sociais e dos contextos a que pertencem, frente aos riscos e as vulnerabilidades para as infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV e hepatites virais. Portanto, esta estratégia associa diferentes métodos (ações) e auxilia tanto na prevenção destas doenças infecciosas, quanto na melhora da saúde integral das pessoas.

Informação, educação e comunicação em saúde
Peça de comunicação da Organização Pan-americana da Saúde. Fotografia de duas mulheres utilizando máscaras faciais, cabelos presos e vestes em tons de azul. Uma delas realiza a técnica de teste rápido (furo no dedo) na outra. Em primeiro plano, os dizeres em letras brancas e laranja: Pessoas que vivem com hepatites virais sem saber não podem esperar para fazer o teste. Não espero. Faça o teste. Isso pode salvar sua vida.” Logo abaixo da fotografia a logomarca da OPAS e o slogan “As hepatites não podem esperar”.
Dia 28 de Julho comemora-se o “Dia Mundial Contra as Hepatites Virais” com campanhas para aumento de acesso ao diagnóstico e tratamento e redução do estigma.
Fonte: OPAS

Ações de informação, educação e comunicação em saúde são essenciais para a prevenção de doenças infecciosas e melhora da qualidade de vida. A Sociedade Brasileira de Hepatologia, em conjunto com o Instituto Brasileiro do Fígado (IBRAFIG), vêm trabalhando em campanhas de comunicação em hepatites virais para redução do estigma e discriminação, além de auxiliar na prevenção de novas infecções.

Para assistir...

A campanha do Julho Amarelo de 2021 contou com a participação especial de um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina, Dr. Harvey Alter.

Fonte: Youtube

Atenção

Para esclarecer dúvidas sobre hepatites e obter informações sobre locais para a realização dos testes para hepatites virais é importante procurar os serviços do SUS. Além disso, o IBRAFIG coloca à disposição da população o telefone 0800 882 8222 e o canal de informação online Tudo Sobre Fígado.

Com o objetivo de incentivar o diagnóstico de hepatites virais B e C e cumprir a meta defendida pela OMS/OPAS de eliminar a doença até 2030, o IBRAFIG lançou a campanha nacional “Não Vamos Deixar Ninguém Para Trás”.